Libertar as imagens para as vermos de novo

Foto
Na sua "masterclas" da Casa da Música, no Porto, Thom Andersen falará da proximidade entre o cinema e a arquitectura enquanto "artes do espaço" JOÃO BRITES

Um dos mais fascinantes cineastas do nosso tempo, Thom Andersen, vai estar no Porto para uma "masterclass". A seguir, rodará um filme em torno da obra de Eduardo Souto Moura. Diante do seu cinema, renascemos como espectadores - e como cidadãos. José Marmeleira

Rejubilem. O ano não começa mal. Por encomenda das Curtas Vila do Conde para os 20 anos do festival, um dos mais fascinantes cineastas do nosso tempo, Thom Andersen (Chicago, 1943), vai rodar um filme sobre a arquitectura de Eduardo Souto Moura. O realizador está no Porto onde apresentará, já na próxima segunda-feira, às 22h, uma "masterclass" na Casa da Música. E não, por favor, não desvalorizem o pedido que abre este artigo. Andersen, crítico e professor no California Institute of the Arts, é o autor de duas maravilhosas obras já exibidas em Portugal (Curtas Vila do Conde e IndieLisboa, Culturgest e Cinemateca): "Los Angeles Plays Itself" (2003) e "Get Out Of The Car" (2010).

Organizada pelo Estaleiro (um projecto de formação do Curtas Vila do Conde) e pela Ordem dos Arquitectos (no âmbito do ciclo de conferências "Em trânsito"), a "masterclass" de dia 9 permitirá ouvir e conhecer, face a face, o pensamento de um amante exigente da arte do cinema. Quanto ao filme sobre Souto Moura, Prémio Pritzker em 2011, sabe-se apenas que será realizado por alguém cujo olhar crítico e analítico se estende à arquitectura.

Permitam recordar "Los Angeles Plays Itself". Exclusivamente, composto de fragmentos de outros filmes, revê uma história de Los Angeles à luz e à sombra do cinema. O assunto é sensível para Andersen. Além de habitante orgulhoso da cidade, sabe que os filmes comunicam ideias e que estas têm efeitos concretos na vida das pessoas. Por isso destapa, com ironia e humor, o ataque que Hollywood moveu à arquitectura modernista da cidade (tornando-a residência de traficantes, "gangsters" e pornógrafos), a representação de Los Angeles como metáfora do crime e da perdição ou a mensagem, dominada pelo cinismo e pela derrota, de filmes como "Chinatown", de Roman Polanski, ou " L.A. Confidential", de Curtis Hanson.

Um ajuste de contas que é também uma carta de amor à cidade e ao cinema (antecipando-se a "Of Time and City, de Terence Davies). A partir da ficção cinematográfica, contam-se e recordam-se factos: os efeitos destrutivos de certas de políticas urbanas, a degradação dos serviços públicos de transportes ou a corrupção da polícia. Mas resgatam-se, também (dando-lhes uma representação visual), outros sujeitos e lugares: as zonas Sul e Leste da cidade, as minorias étnicas, uma classe operária sem acesso (físico e económico) às praias de Malibu.

Um cinema de não-lugares

Este retrato de Los Angeles, que faz da ficção matéria documental, constrói-se partir de fontes diversas, quando não opostas: o cinema "mainstream" (clássico e contemporâneo, de Billy Wilder a Ridley Scott, passando por Lawrence Kasdan), a série B (de H.B. Halicki), o cinema experimental (Warhol e Maya Deren) e europeu (Antonioni, Demy), e os filmes independentes de Billy Woodberry, Charles Burnett ou Kent MacKenzie. "O meu ponto de vista, o que defendo em "Los Angeles Plays Itself´", diz o realizador horas antes de apanhar o avião para Portugal, "é que os filmes precisam de ter tanto uma noção de personalidade como de lugar. Ora muitos filmes de hoje limitam-se a mostrar não-lugares. Sinto isso nos filmes que representam Los Angeles. Talvez por ser uma cidade que me é muito familiar".

Ensaísta e crítico (é um dos autores convidados de "Cem Mil Cigarros", monografia dedicada ao cinema de Pedro Costa), Thom Andersen confessa-se distante do actual cinema americano. Prefere as histórias secretas que se escondem num plano secundário às ficções, os objectos e os espaços que desapareceram com o tempo, as paisagens e os lugares invisíveis aos média e ao poder político. O seu cinema liberta as imagens para que possamos olhar outra vez.

Se em "Los Angeles Plays Itself" Los Angeles parece irresistível, mas apenas quando visto ao longe, de noite (como sugere Roman Polanski), "Get Out of the Car", que conquistou o prémio de melhor documentário na última edição do Curtas Vila do Conde, celebra a cidade na sua dimensão mais vernacular, com "close-ups" de pinturas murais, painéis publicitários, letreiros e fachadas de edifícios. E música (rhythm and blues). "Quem percebe espanhol vai descobrir um filme político, sobre a experiência dos imigrantes do México e da América Central em Los Angeles e sobre a cultura que eles criaram aqui", considera. "Mas quem não entende o espanhol não vai ter essa noção. Tentei, também, mostrar uma história de L.A. através da música latina e negra. Por isso quase não há músicos brancos, com excepção do Woody Guthrie, que canta "Deportee (plane wreck at Los Gatos)".

Contra o esquecimento

Tanto nos seus artigos (como os que escreveu para a "Cinemascope") como nos seus filmes, Thom Andersen reserva palavras e imagens para os vencidos e os esquecidos da História: Phil Spector, a comunidade mexicana, Richard Berry (o autor de "Louie Louie"), os murais chicanos (que Agnes Varda já havia iluminado em "Mur Murs", em 1981), espaços e edifícios emblemáticos da cidade (velhos estúdios musicais, estações de transporte) ou o cinema empenhado na representação da vida das minorias étnicas, de Haile Gerima, Charles Burnett, Billy Woodberry e Kent MacKenzie.

"Até no centro mundial da indústria existem pessoas que a combatem. Usam os mesmos meios, mas com fins diferentes. As obras desses cineastas pertencem a uma tradição menos popular do que a das produções de Hollywood e tinha esperança de que "Los Angeles Plays Itself" pudesse divulgá-las. Creio que isso tem acontecido. Obras como "The Exiles" [de Kent MacKenzie] e "Killer of Sheep" [de Charles Burnett] foram editadas em DVD; o filme de Billy Woodeberry ["Bless Their Little Hearts"] foi restaurado. Um dos mais importantes feitos do meu filme foi ter contribuído para este reconhecimento".

Sobre a preservação de certos edifícios e monumentos da cidade, é mais cauteloso. "Em Los Angeles há um forte movimento de defesa do património, mas ainda há lugares significativos que desaparecem, como o South Central Farm, onde as pessoas podiam fazer jardinagem. Foram forçadas a sair e até hoje permanece vazio. As classes altas já se preocupam com a arquitectura modernista do Rudolphl Schindler, mas não com os lugares das zonas desfavorecidas, no Sul e no Leste da Cidade. E certos edifícios culturalmente importantes, de habitação social, continuam a degradar-se".

A recepção oficial de "Los Angeles Plays Itself" (ainda sem distribuição no circuito comercial, devido à recusa das grandes produtoras em ceder os direitos das imagens) e "Get Out Of The Car" merece um comentário ambíguo: "Os políticos, pelo menos os que os viram os filmes, dizem que mostram a legitimidade e a singularidade da cidade. E muitos espectadores têm a mesma opinião. Para os meus estudantes, que vêm de todo o mundo, servem de introdução a Los Angeles. Encorajaram-nos a explorá-la".

Será porventura entre o cinema e a arquitectura que a obra de Andersen continuará a fazer-se. A "masterclass" do Porto aponta nesse sentido: "Vou falar sobre ambos enquanto artes do espaço. E mostrarei diferentes abordagens ao acto de filmar arquitectura. Um dos exemplos principais será a cena de "A Paixão dos Fortes", [de John Ford] em que o xerife Wyat Earp se dirige, na companhia de Clementine Carter, à igreja que está a ser construída. Também apresentarei "Get Out of the Car" e excertos de outros filmes sobre arquitectura, como os de Heinz Emigholz".

Sugerir correcção