Uma autenticidade obsessiva

Não havendo notícia de grande tradição biográfica em Portugal, “Puta Que Os Pariu!” carregava a expectativa de poder ser excepção ímpar no género. Desde logo porque o biografado, Luiz Pacheco, se presta a matéria de fundo: nem aqueles que pouco o leram passaram ao lado de uma ou outra entrevista em que manifestava a sua verve provocadora (capaz de revelar pormenores íntimos dos inimigos ou mesmo dos amigos), da mesma forma que mesmo os que nunca foram leitores da obra pachecal conhecem este ou aquele pormenor rocambolesco da sua vida (no mínimo ouviram falar de gravidezes de raparigas menores, deste ou daquele desvio homossexual, da rara capacidade de pedir emprestado e nunca pagar de volta, fora a mania de ir à rua com pouca roupa).

Pacheco foi um caso raríssimo na literatura portuguesa: ao contrário do que é de bom tom, nunca escreveu um romance. A sua obra é composta de textos de raiz diarística e de crítica, sendo que em todos os géneros há uma fortíssima vertente autobiográfica. Foi também um extraordinário editor, que lançou - entre outros - Herberto Hélder, não sendo de descurar a importância que teve na crítica literária: é com ele que acabam os paninhos quentes com que se tratava a literatura menor que os passeantes dos salões culturais produziam. Digamos assim: com ele elevou-se a fasquia. Também esteve preso várias vezes e passou fome - tudo pormenores que sem dúvida contribuiram para a sua aura de “escritor maldito”. Contudo, os pormenores exactos das prisões, da falta de pão e do excesso de álcool permaneciam, pelo menos na factualidade possível, desconhecidos - até esta edição.

Há dois ou três pormenores discutíveis em “Puta Que Os Pariu!”, o primeiro dos quais poderá ser considerado uma implicação. O livro abre com a reprodução da certidão de nascimento de Pacheco, seguido de algumas palavras de João Pedro George, antes de passar a palavra ao escritor. Depois George pega de novo na narração, descrevendo com admirável minúcia o ambiente social em que Pacheco nasceu. Contudo, em momento algum se diz que Pacheco é natural de Lisboa. Fala-se do parto numa casa da Estefânia, há o trecho em que Pacheco recorda que os pais casaram na casa de Benfica (contextualizando a época), mas falta esse pequeno detalhe que - e isto pode parecer ridículo, mas não o é para quem conhece o país - deixa à toa quem não é de Lisboa: Estefânias há muitas.

George opta muitas vezes por uma espécie de enxerto em que, no decurso do seu discurso, entram as palavras de Pacheco - o que faz teoricamente sentido dada a oralidade da escrita do biografado e o muito que ele escreveu sobre si próprio, muitas vezes narrando os mesmos acontecimentos em obras diferentes. Mas isto coloca problemas práticos: quando o cerzir dos discursos de George com o de Pacheco não é particularmente bem conseguido entre travessões, o texto, entre parêntesis (rectos e curvos) e aspas, assemelha-se a um cruzamento com excesso de sinalização. Ademais surgem confusões de tempo e de sujeito. Exemplo simples, da página 40: “Bebé de três meses, ''ainda me levavam a comida à comida'', Luiz Pacheco (...)”. O mecanismo de inserção da citação de Pacheco é literário, porém ineficaz. Na página anterior há um exemplo mais cabal: “Quando em 1932 ingressou no ensino primário [...] quem o levou à escola no primeiro dia foi o pai, ''um ritual que me faz lembrar o meu pai (....)''”. Neste caso impunham-se dois pontos, para evitar a mudança de narrador.

Nenhum livro é imaculado, e estes pormenores não invalidam o que se segue: uma profundíssima investigação que se abeira de todos os aspectos possíveis de todos os momentos da vida de Luiz Pacheco, a que se une uma ponderada reflexão sobre as origens e as circunstâncias da figura e do próprio país (ou do seu meio cultural) na época.

Mais do que cronologicamente, George optou por dividir “Puta Que Os Pariu!” em secções (“Primeiros Passos”, “As Mulheres, as Prisões”, “Crítico”, “Editor”, “Escritor: pedincha, alcoolismo e marginalidade”, etc.), decisão que faz todo o sentido mesmo que apresente uma dificuldade maior para quem não conhece a figura, visto por vezes um capítulo acabar num determinado ano e o capítulo seguinte voltar atrás duas décadas para abordar outro aspecto.

Ainda assim, a fragmentação existencial de Pacheco justifica de facto a divisão temática. Em “Primeiros Passos”, o ambiente em que Pacheco cresceu é reconstituído com admirável detalhe: a mãe que via Deus seria, possivelmente, sifilítica, condição que lhe teria sido transmitida pelo marido, fruto da sua vida boémia. Pacheco cresce asmático e solitário, distante da mãe e assistindo a terríveis cenas entre os pais. Fica também claro que o pai de Pacheco iniciou um processo de descolagem face ao seu meio social ao ser o primeiro que recusou seguir a via militar, e não há margem para dúvidas que a relação desequilibrada que Pacheco teve com o dinheiro se deve à própria incapacidade do pai em não estourar tudo. Também nos é mostrado que o pai de Pacheco tinha interesse pela cultura, o que terá levado o miúdo Pacheco a devotar-se aos livros.

Pacheco inicia-se sexualmente sendo repetidamente violado por um amigo da casa, o que diz bem da falta de atenção a que era votado. A sua experiência sexual seguinte deu-se num bordel. João Pedro George faz notar que a experiência da violação o levou vez após vez a ter sexo com menores, não apenas as mães dos seus filhos mas igualmente outras raparigas e rapazes - o que aliás lhe valeu várias prisões.

Alguns dos episódios da vida de Pacheco são caricatos, com o o seu primeiro casamento: o tio de uma empregada lá de casa acusa Pacheco de abuso, pelo que este é forçado a casar com a rapariga; no entanto, quando o tio da moça soube que os Pacheco não tinham dinheiro, quis desistir da queixa e do casamento. Outros, que se passam mais tarde, são simplesmente trágicos: contrariando as suas crenças, Pacheco aceita que uma das mães dos seus filhos faça um aborto, sendo a parteira paga com uma lampreia d''ovos. A descrição é genuinamente pungente.

A leitura de “Puta Que Os Pariu!” torna claro que um dos momentos fundamentais da vida de Pacheco foi o abandono do seu emprego no Estado português (uma cunha) para se dedicar exclusivamente à escrita - de certo modo, era como se finalmente ultrapassasse o pai, que nunca tinha conseguido afirmar-se criativamente. Por outro lado, é como se tivesse cumprido esse desejo do pai. No livro, é imaculada a reprodução dos esforços de Pacheco enquanto editor, das dificuldades que teve para editar no meio da sua biografia rocambolesca. Também fica bem claro que Pacheco era um bom leitor e um crítico duro, porém justo, que via o meio literário como um conjunto de burguesitos que se afagavam uns aos outros.

Não deixa de ser curioso que Pacheco sempre tivesse misturado obra com autor: como João Pedro George faz notar, nunca se ficava apenas pelo que pensava sobre um livro, também tinha de escrever sobre o escritor. George não avança esta hipótese, mas parece haver em Pacheco uma necessidade constante de denúncia do abuso - como se o facto de em Portugal se produzirem obras de baixa qualidade, quase sempre amparadas pela crítica devido a razões de amizade, constituísse para o leitor e para a literatura um abuso. Tendo em conta que Pacheco foi abusado sexualmente, e além disso vítima de abandono pela mãe e de violência psíquica pelos pais, é perfeitamente natural que denunciasse formas de abuso (mesmo que as praticasse). É também muito possível que essa incapacidade de aceitar que autor e livro fossem coisas autónomas tenha ditado a sua escassa produção de ficção. Pacheco era, como diz alguém a dada altura, de uma autenticidade “obsessiva”.

João Pedro George coloca com veemência a hipótese de a produção literária de Pacheco ser um produto da sua biografia: no meio das prisões, dos imensos filhos, das separações, ser-lhe-ia difícil escrever algo com maior fôlego, e de facto, lido “Puta Que Os Pariu!”, a hipótese faz todo o sentido. Esta biografia reconstrói a vida de Pacheco com um detalhe verdadeiramente inacreditável - e recria também várias épocas e a sua evolução, sendo igualmente uma admirável composição sobre a família e o meio literário português. Não deixa, no entanto, de estar cheia de histórias que vão do escabroso ao delirante, pelo que o leitor comum terá por certo muito por onde pegar.

O cuidado de George com a figura de Pacheco é tal que acaba o livro com um capítulo dedicado à “Produção Social do Maldito”, analisando a crítica à obra de Pacheco, a imagem que ele foi construindo nos jornais, etc. Contudo, e como é notório na introdução e na conclusão que o biógrafo assina, mesmo havendo simpatia e fascínio nunca se esconde o que era esta figura - que muitas vezes se comportou como um pária.

Enquanto escritor, Pacheco foi um estilista admirável com uma noção de oralidade notável, capaz de ir onde os outros tinham medo de ir - escreveu páginas notáveis sobre a família, a fome, a sexualidade. Contudo, sempre me pareceu que não se cumpriu inteiramente. Essa ideia não mudou com “Puta Que os Pariu!”, mas agora ponho a hipótese de a sua obra fazer sentido tal como está. Um grande livro faz isto: põe-nos dúvidas. E é isso que é “Puta Que Os Pariu!” é: não apenas uma biografia notável, mas também um grande livro.

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