Spaghetti Eastern

Entre as muitas acusações injustas de que Haruki Murakami já foi alvo - a de ser considerado um candidato plausível ao Nobel, a de ser comparado a Don DeLillo ou Philip K. Dick, a de escrever bem, etc. - a mais desconcertante é a que o tenta encaixar na categoria de escritor “experimentalista”. O termo tem um significado literário preciso, que remete para inovações técnicas ou formais, e que não é de todo adequado para descrever a obra derivativa e convencional de Murakami. Pode afirmar-se, ainda assim, que conseguiu induzir um impulso quase vanguardista nas editoras que o publicam. Os três livros que compõem “1Q84” surgiram no Japão em duas tranches: um primeiro volume com os livros 1 e 2 em 2009, um segundo com o livro 3, um ano mais tarde. A tradução inglesa foi servida em 2011, com duas opções: três volumes individuais, ou o pacote completo em encadernação de mil páginas. Em Portugal, a Casa das Letras optou por uma terceira abordagem, lançando os três volumes separadamente (o primeiro, único até agora, saiu em Novembro passado). Ao ritmo a que isto vai, é uma questão de tempo até que alguém se lembre de publicar o livro uma página de cada vez. Entretanto, para enevoar ainda mais o panorama, o autor sugeriu recentemente que um quarto acrescento (prequela ou sequela) não está fora de hipótese, o que nesta altura parece menos um brinde do que uma ameaça.

Como acontece quase sempre com os livros de Murakami (os maus e os razoáveis), “1Q84” tem um bom começo e uma premissa intrigante. Em Abril de 1984, Aomame, professora de artes marciais e assassina em “part-time”, encontra-se retida dentro de um táxi, numa auto-estrada elevada em Tóquio. Um colossal engarrafamento está prestes a impedi-la de cumprir uma tarefa importante e o motorista sugere-lhe um atalho secreto: umas escadas de emergência que levam ao subsolo, acessíveis a quem esteja disposto a transpor uma vedação. Antes de lhe abrir a porta, o motorista (um dos habituais oráculos figurantes de Murakami, exibindo o seu sorriso “que podia ser interpretado de várias maneiras”) adverte-a ominosamente para a hipótese de “as coisas não serem sempre aquilo que parecem”. Deixando para trás o táxi, o engarrafamento, 1984 e a literatura, Aomame chega a uma realidade paralela que decide baptizar, por nenhum motivo aparente que não o de proporcionar um título e um trocadilho, 1Q84 (a letra “q” e o número “9” pronunciam-se da mesma forma em japonês).

1Q84 não é radicalmente diferente de 1984: há duas luas no céu, EUA e União Soviética organizam missões espaciais conjuntas e os polícias de trânsito envergam uniformes de qualidade superior, mas tudo o resto permanece mais ou menos na mesma. Recuperando o mesmo esquema bipartido de “Kafka à Beira-Mar”, a história vai prosseguindo em capítulos alternados. A outra personagem focal é Tengo, professor de matemática e romancista encalhado, atraído para um fraudulento esquema editorial: reescrever um manuscrito intitulado “A Crisálida do Ar”, submetido por Fuka-Eri, uma quase-autista rapariga de 17 anos, a um concurso literário destinado a primeiras obras. A tarefa consome-o. Elementos fantásticos do livro vão infiltrando gradualmente a sua realidade: um céu inflacionado por súbitos satélites adicionais, e criaturas misteriosas conhecidas como “Povo Pequeno” que saem da boca de uma cabra morta e têm a capacidade de ler pensamentos, fazer explodir cães, e malandrices afins. Torna-se claro que “A Crisálida do Ar” cumpre uma dupla função equivalente às escadas de emergência de Aomame: um portal para outra dimensão, e uma licença para não fazer sentido.

Os enredos paralelos vão convergindo com a lenta inexorabilidade de uma colisão de carroças. Coisas acontecem - e acontecem muito devagar. Um sub-enredo envolvendo o líder de um culto religioso ameaça tornar-se interessante durante centenas de páginas sem nunca se decidir. Depois temos os longos interlúdios em que nada acontece, também muito devagar, deixando bastante tempo livre para as personagens se dedicarem a actividades tipicamente murakamianas: abrir e fechar frigoríficos, preparar refeições caseiras à base de esparguete, beber whisky, ouvir jazz, falar de gatos, manter longas conversas telefónicas, comparar tamanhos de seios, reflectir sobre orelhas, e ter sexo absolutamente ridículo (a dada altura, uma vagina é comparada a uma orelha “atenta ao som de uma campaínha distante”; no mesmo capítulo, uma sequência de erecções é comparada a uma “remodelação governamental”). Outros elementos familiares também picam o ponto no romance: o mesmo exotismo transnacional e desenraízado, o mesmo “ennui” urbano pontuado por alusões culturais, os mesmos voos de introspecção supérflua - uma divagação excruciantemente banal sobre Tchékhov prolonga-se durante quatro páginas - capazes de murchar a remodelação governamental de qualquer um.

Este zodíaco patenteável pretende gratificar as expectativas de um determinado tipo de leitor veterano, que sente uma vaga lisonja ao regressar a território tão familiar, como se encontrasse um quartinho decorado com os brinquedos de infância por um avô diligente. É uma fórmula que Murakami utilizou com charme moderado em livros anteriores, e ajuda a explicar a peculiar hibridez da sua reputação: autor “de culto”, mas à escala planetária.

Mas a arquitectura destroçada de “1Q84” nunca permite o ritmo e a fluência displicente que são os mais fiáveis dos seus limitados atributos. A narrativa é perra, e cada capítulo parece cirurgicamente concebido para ser pior e mais lento do que o anterior. Mesmo a sua facilidade de improvisação está entorpecida. Nos melhores momentos de “Em Busca do Carneiro Selvagem” ou “Crónica do Pássaro de Corda”, acontecimentos arbitrários eram ocasionalmente dotados de uma furtiva aura de estranheza, que facilitava a aplicação automática de adjectivos como “surreal” ou “onírico”. “Surreal”, no entanto, não serve para classificar a monótona barafunda de “1Q84”. Um efeito surreal é alcançado quando se cria uma incongruência ressonante ou uma justaposição genuinamente insólita; mas o surrealismo de Murakami resume-se agora a afirmar que algo surreal está a acontecer. É uma fantasia por decreto, que perde fôlego em cada nova derrapagem e revela o triste espectáculo de um autor totalmente à mercê dos seus mais débeis automatismos. A impotência é realçada pela frequência com que todas as sensações de estranheza são declaradas em vez de evocadas. Quase não há capítulo em “1Q84” em que uma ou outra personagem não confesse a sua sensação de que “algo de estranho”, ou “algo fora do normal” está a acontecer. Personagens são repetidamente descritas através de etiquetas de mistério “ad hoc”: são “enigmáticas”, são “inescrutáveis”, é “difícil adivinhar o que pensam”. Mesmo esta marcada predilecção por dizer em vez de mostrar não serve muito tempo como regra; a espaços, impera a lei da rolha: “Olhou para Tengo com uma expressão que parecia dizer: ainda é cedo para falar sobre esse assunto”. Este é o lema de “1Q84”: é sempre demasiado cedo para falar sobre o assunto, até ao ponto em que o assunto tem de ser repetido.

Os diálogos são um pesadelo de redundâncias sobrepostas. É rara a interacção em que uma personagem não repita o que a outra acabou de dizer, com ligeiras modificações. É rara a interacção em que uma personagem não repita, com ligeiras modificações, o que a outra acabou de dizer. O oitavo capítulo do livro 1 fornece um exemplo de descontrolo “vintage”. Em discurso directo, Tengo pergunta a Fuka-Eri que tipo de livros é que ela lê: “Levantou a questão não apenas por aborrecimento, mas também porque tinha a intenção de indagar sobre os seus hábitos de leitura. Fuka-Eri olhou na sua direcção e virou o rosto novamente para a frente. - Eu não leio livros - respondeu simplesmente. - De todo? Ela assentiu. - Isso quer dizer que não tens qualquer interesse em ler livros? - perguntou ele. - Demora tempo - disse ela. - Tu não lês livros porque demora muito tempo? - perguntou ele, sem ter a certeza de que tinha entendido correctamente. Fuka-Eri continuou a olhar em frente. A sua postura parecia transmitir a mensagem de que ele não tinha qualquer intenção de negar a sua sugestão”.

O ponto de convergência das narrativas paralelas deveria ser a culminação de uma história de amor - um amor com uma origem tão implausível e um desenlace tão anti-climático que seriam necessárias proezas sobre-humanas de suspensão da descrença para não desatar a rir. Mas chegados a esse ponto, 900 páginas depois, já não temos energia para continuar a acreditar em coisas inacreditáveis; acreditar que continuámos a ler até ali já exigiu esforço suficiente. Ler “1Q84” demorou demasiado tempo. E a postura do livro parece transmitir a mensagem de que não tem qualquer intenção de negar esta sugestão.

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