Nos nossos dias ninguém corresponde melhor à ideia de um cineasta “trota-mundos”, em permanente errância, do que Werner Herzog. Tão depressa o apanhamos em Nova Orleães a filmar polícias alucinados como no vale do Ródano, preocupado com grutas do paleolítico, ou a investigar a “death row” de uma prisão texana - seja documentário, seja ficção, vai a todas, onde quer que elas estejam. Louve-se, que disto nunca houve muito e hoje, como de resto se passa com tudo, ainda há menos. A prisão texana é o último filme de Herzog (“Into the Abyss”), ainda não visto por cá; o que agora nos interessa é o das grutas do Ródano, o penúltimo.
“A Gruta dos Sonhos Perdidos” ou, mais exactamente, a “gruta Chauvet”, assim chamada em homenagem a um dos seus descobridores. Foi descoberta nos anos 90 e desde então, estando em estudo e conservação permanentes, o acesso a ela tem sido exclusivo de arqueólogos, espeleólogos e outros especialistas. Herzog conseguiu convencer o Ministério da Cultura de França a deixá-lo visitar a gruta e filmá-la - ou conforme outras versões da génese do filme, foi o próprio Ministério a convidá-lo e a encomendar-lhe a obra. Seja lá qual for a versão correcta da história, “A Gruta dos Sonhos Perdidos” corresponde a uma “première”: pela primeira vez o grande público tem acesso visual ao interior da “gruta Chauvet”.
A gruta é notável, entre outras coisas, pelos seus desenhos rupestres (animais, sobretudo), tidos como os mais remotos exemplos de arte paleolítica alguma vez encontrados. Mesmo sem desenhos, é um cenário fabuloso, a secura das paredes rochosas e a plasticidade gelatinosa da calcite, das estalactites e das estalagmites combinando-se para criar um décor que seria convincente num filme de ficção científica. Mostrar a gruta, os seus desenhos e as suas esculturas naturais, é a prioridade de Herzog - com a ajuda das 3D, processo que embora acabe por se tornar tão cansativo como na generalidade dos casos em que tem sido empregue faz aqui um sentido diferente, mais necessário: não se trata de “encher o olho”, mas de ajudar a compreender um espaço, nas suas dimensões e proporções.
Mostrar a gruta, Herzog mostra-a bem, talvez até demais. As sequências finais são bastante repetitivas, as mesmas paredes, as mesmas gravuras, as mesmas câmaras, mostradas uma e outra vez. Por essa altura, no entanto, o filme está já em território herzoguiano: deixa de ser apenas a gruta mas, a partir da gruta, imaginar o inimaginável, quer dizer, quem eram aqueles homens que há milhares de anos a frequentaram e pintaram, que faziam ali, como se relacionavam, que mundo era o deles, que fauna povoava os bosques europeus. A gruta como um portal para outro tempo, outro lugar, outro universo. Diversos especialistas são convocados para acrescentarem elementos pertinentes a esta imaginação. Mas em última análise, prevalece o peculiar misticismo, com queda para a grandiloquência, da voz “off” dita pelo próprio Herzog. Conhecemos isto doutros filmes dele, ficção ou documentário, umas vezes funciona outras não. Aqui é só meias-tintas, com o pormenor, ora divertido ora exasperante, de o seu carregadíssimo sotaque germânico (a locução é em inglês) tornar impossível distinguir a que ponto (alguma) ironia se vem imiscuir na empolada seriedade com que ele diz o seu texto (o leitor lembrar-se-á que isto já acontecia num filme como “Grizzly Man”, mas aí o grau de absurdo e de loucura era outro, a ironia não precisava de ser “provocada”). Herzog, claro, também é um cineasta da proeza, do filme como aventura vivida, em primeiro lugar, por ele próprio. Mestre das rodagens difíceis, não perde uma oportunidade para dizer e mostrar quão difícil foi rodar “A Gruta dos Sonhos Perdidos”. Não duvidamos. Mas como noutros momentos da sua obra (até nos seus “clássicos”: “Aguirre” ou “Fitzcarraldo”), ficamos com a ligeiramente frustrante sensação de que a aventura do filme foi muito mais entusiasmante do que o filme da aventura.
Entretanto, e como bom aventureiro, Herzog já partiu para outra. Venha daí o tal filme sobre condenados à morte no Texas, este é só assim assim.