“A Quimera do Riso”, de Preston Sturges (1941)

John Lloyd Sullivan (Joel McCrea) propõe-se percorrer o país na condição de mendigo, com apenas dez cêntimos no bolso

Poster Sullivan's Travels
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Para a entrada no ano que nos anunciam como sendo “de todos os perigos”, escolhi "A Quimera do Riso", uma comédia dedicada pelo realizador-produtor-argumentista Preston Sturges à memória de “todos aqueles que nos fizeram rir”. A dedicatória não é postiça nem irrelevante, já que o filme que se lhe segue é uma demonstração prática da importância do humor na vida real, especialmente em “tempos difíceis” como o de 1941 e o de agora, cada vez mais.

Sofisticadamente, assistimos a uma tomada de consciência social por parte de um realizador de “cinema de entretenimento”, John Lloyd Sullivan (Joel McCrea), que pretende quebrar a sequência ditada pelas produções anteriores e passar a uma inspecção profunda do fenómeno da pobreza. Mais: propõe-se percorrer o país na condição de mendigo, com apenas dez cêntimos no bolso. Ao horror dos chefes do estúdio perante semelhante ideia junta-se a objecção do seu próprio mordomo, que muito fleumaticamente lhe diz que a pobreza nada tem de interessante, a não ser para os teóricos e que os teóricos normalmente são ricos.

Entre as mais notáveis características próprias das comédias de Sturges, tal como já tínhamos visto em “The Lady Eve”, destaquemos a escolha dos actores, a forma como são dirigidos, a sua expressividade – mesmo nos casos das expressividades contidas, milimétricas, como as do mordomo ou do motorista da autocaravana de luxo – e as palavras que foram escritas para eles dizerem.

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Veronica Lake, com o seu longo penteado tapa-olho adoptado em 1988 por Jessica Rabbit em “Quem Tramou Roger Rabbit?” e entusiasmando um empregado de balcão apenas com a menção da palavra “cinta” (não a cintura, mas uma peça de roupa interior feminina hoje quase desconhecida), acrescenta sensualidade à medida da época, que não dá espaço para muitas liberdades. Mesmo assim, Sturges insiste em mostrar as pernas de uma secretária durante uma perseguição automóvel frenética em que na autocaravana vai tudo de pantanas, cumprindo a regra válida para qualquer história: “With a little sex in it”. A devassa, no entanto, é protegida por uma peça de roupa interior de enormes proporções.

William Demarest e Franklin Pangborne, como executivos do estúdio, Eric Blore e Robert Greig, como criado de quarto e mordomo de Sullivan, demonstram até que ponto os papéis secundários podem ser tratados como parte essencial de toda a construção, que exige uma conveniente apreciação. E atendendo à velocidade dos diálogos e de muitas das cenas, é fundamental obter uma versão legendada e consagrar ao filme a atenção que ele precisa para ser decifrado. Por outras palavras, nada de telemóveis, campainhas de porta, análise de correspondência ou conversas de qualquer espécie.

Definitivamente: não é para ver em grupos de mais de duas pessoas. Gente a levantar-se e a sentar-se alternadamente, servindo-se de comes e bebes e comentando e rindo sobre coisas que não são para aqui chamadas, é sacrilégio. Tal como tudo o que merece ser feito merece ser bem feito, também tudo o que foi bem feito merece ser bem visto. E pode ser um bálsamo para as agruras, de qualquer espécie. Oxalá seja.

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