Contagem decrescente para uma vida sem Cunningham
Estamos sentados no demasiado pequeno e familiar Joyce Theatre, na 8.ª Avenida com a 155, a ver a companhia de Merce Cunningham dançar e não conseguimos imaginar que daqui a uns meses vai deixar de ser possível ver um espectáculo deste coreógrafo. Por decisão testamentária, a companhia dissolver-se-á após a última apresentação, a 31 de Dezembro de 2011, num evento ao ar livre na Park Avenue Armory, em Nova Iorque, EUA. Será o culminar daquilo a que chamaram "tournée da despedida" de alguém que revolucionou a forma do corpo e levou mais longe a transição do moderno para o contemporâneo.
Cunningham parece estar nos bastidores do teatro. O modo como se fala da companhia, as experiências que se trocam e as memórias que se cruzam daqueles que estavam lá quando as peças Antic Meet (1958), Quartet (1982) e CRWDSPCR (1993) foram criadas dão a estranha sensação de que Merce não morreu em 2009, aos 90 anos.
Trevor Carlson, o director executivo da companhia, diz que "não é possível falar de um sentimento único quando se vê os bailarinos dançar". "São os últimos", diz, caindo num silêncio emocionado. São 14 bailarinos, sete homens e sete mulheres que, tendo sido escolhidos pelo coreógrafo, asseguram que o que por ele foi determinado assim será respeitado.
Nos últimos anos, Cunningham, devido à incapacitação que o levara a deslocar-se numa cadeira de rodas, tinha começado a desenvolver coreografias que, não deixando de o incluir - muitas vezes em vídeo -, eram também formas de compreender como prolongar a presença do corpo do bailarino em palco. Um corpo que, tendo contribuído para o desenho das peças - pelo modo como estruturava as linhas, desenhava formas, compunha sequências -, se revelava, ele mesmo, uma massa em busca de organicidade interna. Muitas das imagens criadas por Cunningham partiam desse princípio: depois do estabelecimento do cânone contemporâneo, onde o corpo urbano e quotidiano havia substituído desenhos formais e abstractos, a reacção deveria ser a sua integração e ampliação, e não a simplista mistura.
O que pudemos ver no Joyce Theatre é exemplo disso mesmo. Antic Meet (nas fotografias) foi estreada em 1958 e definida por Robert Rauschenberg, que criou os cenários e figurinos, "como uma enorme tela". Intensamente iluminado, o ciclorama não deixa perceber as linhas do rosto dos bailarinos. Ao centro, um homem e uma cadeira. "Foi assim que o vi a primeira vez [ao Merce]", diz uma mulher sentada ao nosso lado. Não se percebia quem ia quebrar primeiro, se a cadeira, se ele".
Como se fosse uma panorâmica burlesca, a peça, com banda sonora independente de John Cage, companheiro de Cunningham, colocava os figurinos de Rauschenberg em primeiro plano. Vemos bailarinos envoltos em mangas que não acabam ou em fatos que sugerem lustres, procurando eles próprios, pelos movimentos, a lógica interior desses movimentos.
Em Quartet - que, na verdade, é interpretada por cinco para uma composição musical de David Tudor, Sextet for Seven, onde o quinto elemento era o próprio Cunningham, imóvel e de costas para o público, enquanto os outros bailarinos formulam hipóteses de formas que nunca completam - é uma peça negra, mais emocional, onde as restrições ao movimento implicam com a sua orgânica. A tensão que aquele corpo, aparentemente imóvel, sugere, acaba por ser mais livre do que os desenhos feitos pelos outros quatro bailarinos.
Corpo inconstanteEm CRWDSPCR, a partir de música de John King, é a própria ideia de instabilidade que os bailarinos perseguem, num jogo de conquista espacial. O próprio título pode ser lido como "Crowd Spacer" ou "Crowds Pacer". De certo modo, a impressão definida por Cunningham sugere um movimento constante, frenético, só interrompido por um solo feminino. Desta dessincronia nasce uma obra instável, onde os saltos e os voos, repetidos intensamente, abalam a estrutura formal definida pelo jogo de luz, a aridez da banda sonora e a simplicidade dos figurinos.
Vistas em conjunto, são três peças que resumem o essencial da obra de Merce Cunningham: um corpo inconstante num espaço formal, um jogo de dependências interdisciplinares e uma composição aparentemente finita, mas permanentemente em reestruturação.
Até Dezembro, a companhia ainda vai passar por França, Alemanha, Israel, Rússia, Holanda, México e Inglaterra. Portugal fica de fora do seu roteiro. Em cada cidade, um conjunto de remontagens de peças em repertório, num quadro exemplificativo das propostas e transformações do percurso de Cunningham. Entre elas, Rain Forest (1968), a peça das nuvens de prata que pôde ser vista em 1999, na instalação que o Museu de Serralves apresentou.
Em todas elas, a combinação perfeita de rigor e experiência. Em todas elas, "a celebração justa da vida e do trabalho de Merce", resume Trevor Carlson.
Há ainda muito trabalho a fazer antes de se fecharem as portas do famoso estúdio do número 55 da Bethune Street, na West Village. A companhia continua a ensaiar todos os dias, logo a partir das oito da manhã. Vemo-los entrar como se fosse um dia normal e não um dia a menos num ritual que há anos fazem de cor. O que vão fazer a partir do primeiro dia do resto das suas vidas vai ser "garantir que a memória de Merce seja respeitada", explica-nos o director executivo.
"Temo-nos dedicado inteiramente a isso. A preservação do legado do Merce é essencial, tal como ele a definiu. A razão prende-se com as leituras que Merce fez, e as conversas que teve, sobre o aproveitamento tácito que muitas administrações de companhias fizeram do trabalho de artistas. O modelo de financiamento das companhias e instituições norte-americanas, onde o financiamento público é insignificante quando comparado com as doações privadas, levou Cunningham a querer proteger o seu legado. Assim, explica Trevor Carlson, "o desmantelar da companhia será mesmo o fim da companhia tal como Merce a entendeu".
Conversão de carreirasO programa de digressões que estava estabelecido, aquando da morte do coreógrafo, manteve-se, agora com esta aura, ou esta carga, de despedida. O que significa que o trabalho a fazer passa pela reconversão da carreiras dos bailarinos, todos eles ainda na plenitude das suas capacidades. "Temos procurado as melhores soluções para eles", diz Carlson, não entrando em detalhes quanto a compensações financeiras. O mesmo se aplica aos técnicos e demais pessoal administrativo a trabalhar.
Mas o fim da companhia não significa necessariamente o fim das apresentações das peças de Cunningham. No início do mês, havia quatro peças em repertório noutras companhias: Rain Forest, na Rambert Dance Company em Londres, Duets (1980) e Fragments (1953), para o Ballet de Lorraine, em França, Landrover (1972), para o Spectrum Dance Theater de Seattle, e Septet (1953), para o New York Theater Ballet.
A administração continuará a licenciar peças para outras companhias e, garante, essa será a única forma de continuar a ver, ao vivo, as mais de 50 obras que o coreógrafo deixou (muitas delas releituras feitas por si, ao longo dos anos). Todas elas, explicam-nos, serão acompanhadas de perto pela administração, mas não está assegurado que a responsabilidade de acompanhamento dos ensaios caiba a ex-bailarinos. "Enquanto entidade produtora, a companhia termina. Enquanto responsável administrativo pelo legado, vamos continuar a trabalhar até se justificar", explicam.
Ao longo dos anos, Cunningham foi registando as suas peças, em vídeos, onde o próprio explicava o processo de trabalho, muitas vezes - e foi quase sempre assim até ao fim dos seus dias - exemplificando ele como se fazia.
Esse material, o que já é público e pode ser adquirido em DVD, e o que é inédito, está neste momento a ser estudado, classificado e arquivado pela New York Public Library, num trabalho iniciado em 2003. É um arquivo extraordinário, feito com o labor da paixão, onde se encontram não apenas materiais de trabalho como memorabilia pessoal que justificam as obras.
O arquivo pessoal de Cunningham, em parte também ali depositado, permite perceber as diferentes transformações pelas quais o trabalho passou. É lá que estão guardados os esquemas dos cenários de Andy Warhol ou Robert Rauschenberg, as pistas de gravação das composições sonoras feitas por John Cage ou David Tudor, os desenhos para os movimentos que Cunningham ia fazendo, até altas horas da noite, todos os dias, após cada apresentação. "Tem sido fascinante poder reviver essa história", diz Trevor Carlson, "por muito doloroso que seja imaginar que tudo isto é já memória". "Tem sido assustador, porque emocionante, arrumar em caixas esta história que parece incompleta", resume. "É um processo de memorização".
Merce Cunningham procurou, precisamente, preservar essa ideia de incompletude. A sua intenção de terminar a companhia tem a ver com isso mesmo. "O olhar dele foi sempre inquisitivo, quis sempre responder às perguntas que ele próprio formulara, nunca achou que tinha dado a resposta certa", conclui.