Um vinho à altura do sonho dos Jorgensen

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Cortes de Cima. O nome desta propriedade da Vidigueira já não deve ser estranho a nenhum português mais ligado ao negócio do vinho. A sua história recente é tão extraordinária que cabe nessa espécie mirífica dos contos de fadas, desses que davam um grande filme.

Em poucas frases, pode resumir-se assim: num dia de 1888, Francisco Correia, um açoriano da ilha Graciosa, emigrou para os Estados Unidos, onde foi barbeiro e cortou o cabelo a muitos cowboys famosos, como Wyatt e Virgil Earp. Teve dois filhos e duas filhas e o mais velho dos quatro teve mais filhos e netos. Uma das netas chamava-se Carrie, que veio a casar com um dinamarquês, Hans Jorgensen. Engenheiro mecânico, Hans ganhou muito dinheiro na Malásia e, um dia, quis tornar-se viticultor. Compraram um barco e começaram a viajar pelo mundo à procura da melhor vinha. Depois de terem visitado várias regiões do mundo, os Jorgensen descobriram o que procuravam perto da Vidigueira. Tinham chegado a Cortes de Cima, onde, em 365 hectares de terra, não havia uma só videira e apenas se produzia cereal. Mas o clima e a simpatia das pessoas foram suficientes para terem decidido concretizar ali o sonho vitícola. Estávamos em 1988. Cem anos depois de Francisco Correia ter ido à procura do sonho americano, o destino colocava Carrie no país de origem do seu bisavô.

Desde então, o casal Jorgensen transformou Cortes de Cima num dos mais bem-sucedidos projectos vitícolas nacionais. Foi tudo muito rápido e bem sucedido. Tão bem-sucedido que os Jorgensen se dão ao luxo - não há outra expressão para o dizer - de vender o vinho a preços quase estratosféricos para os padrões portugueses. Nomeadamente, nesta altura de crise. Mas, se os vinhos têm saída, só se pode fazer uma vénia aos Jorgensen por conseguirem, por exemplo, vender o Cortes de Cima Petit Verdot 2009 a 50, 29 euros, o Incógnito 2008 a 60 euros e o Reserva 2008 também a 60 euros. Dos últimos lançamentos, há ainda um Cortes de Cima Aragonês 2009 a 16,95 euros, um Trincadeira 2009 igualmente a 16,95 euros, um Syrah 2010 a 13 euros e o Homage To Hans Christian Andersen 2009 a 29,95 euros.

Valem o que custam? Um vinho, como outro produto qualquer, vale o que as pessoas estiverem dispostas a dar por ele. Por isso, olhemos apenas para o valor intrínseco de cada um deles. Os mais baratos, os Cortes de Cima Syrah 2010, Trincadeira 2009 e Aragonês 2009, são vinhos de estilo Novo Mundo, cheios de fruta e notas baunilhadas, excelente volume e amplitude, taninos adamados, acidez bem proporcionada e final persistente. Despertam o prazer da gula junto de iniciados e fazem boa companhia na mesa.

O Homage to Hans Christian Andersen 2009, feito unicamente com Syrah, é um vinho muito bem trabalhado na vinha e no lagar. Causa um grande impacto sensorial, impressionando pela frescura, densidade e opulência.

É muito mais consensual do que o Cortes de Cima Petit Verdot, por exemplo. Este custa quase o dobro, mas a impressão qualitativa não é proporcional. Começa, aliás, por causar alguma decepção. Percebe-se, no entanto, que estamos perante um vinho que precisa de tempo e arejamento. Um ou dois dias depois da primeira prova volta-se ao vinho e já não sentimos a mesma austeridade e amargor, nem a sensação de fruta demasiado doce na boca é tão óbvia; e o desencanto dá lugar à admiração.

Com o Incógnito, um vinho 100% Syrah, foi difícil a empatia. Está muito bem no aroma, bastante delicado e complexo. Porém, na boca mostra uma doçura excessiva, devido à conjugação de um volume alcoólico um pouco alto com notas de fruta muito madura, o que afecta a impressão geral. Tem um preço claramente desajustado.

E chegamos finalmente ao Cortes de Cima Reserva 2008, que custa o mesmo que o Incógnito. Enquanto este é feito apenas de Syrah, o Reserva é um vinho de lote (Aragonês, Touriga Nacional, Syrah e Petit Verdot). No Incógnito, prevalece quase só a generosidade da natureza; no Reserva, prevalece também a arte do enólogo.

No caso deste 2008, o resultado é notável, a começar pela geometria do vinho. Não há aresta que prejudique a precisão do conjunto. Bebem-se uns goles e ficamos rendidos aos deliciosos aromas primários de fruta do bosque e às notas mais quentes e apimentadas do estágio em barrica (especiarias, tabaco), à elegância e textura aveludada que revela na boca, aos taninos altivos e sedosos, à complexidade, equilíbrio e sapidez geral.

Os grandes vinhos nem sempre mostram tudo o que valem ao princípio. Mas um vinho só pode aspirar a ser grande se nascer sem defeitos. Este Cortes de Cima Reserva 2008 nasceu sólido e sem mácula e já mostra ser um belíssimo vinho, não desmerecendo a história e o sonho dos Jorgensen.

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