Uma livraria onde os escritores e os leitores eram vistos como anjos

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PAULO RICCA

Era "um refúgio literário" para quem a visitava e frequentava. Por ela passaram os principais nomes da Beat Generation. O poeta português Nuno Júdice também a frequentou. E dedica-lhe o poema, inédito, que aqui publicamos

George Whitman já não mora ali, naquela casa de fachada dickensiana que sobressai no cenário parisiense da margem esquerda do Sena, no alinhamento da catedral de Notre-Dame. O cidadão norte-americano que a dada altura da sua vida quis ter sempre Paris à sua porta morreu no dia 13, aos 98 anos. Foi o fim de uma vida cheia de viagens e aventuras, mais de metade da qual dedicada aos livros, aos seus autores e leitores, à frente da livraria Shakespeare and Company, um ex libris da capital francesa quee surge normalmente citada na lista das mais belas lojas do mundo.

A Shakespeare and Company foi fundada por George Whitman em 1951, num edifício do século XVI que chegou a fazer parte de um mosteiro, situado na Rue de la Bûcherie. Começou por lhe chamar Le Mistral, em homenagem a uma poetisa chilena cuja obra admirava, Gabriela Mistral (Nobel da Literatura em 1945). Em 1962, passa a designá-la Shakespeare and Company, retomando o nome de outra livraria que já tinha feito história em Paris, pela mão de Sylvia Beach (1887-1962), também americana, e que tinha igualmente escolhido viver na Cidade-Luz e à volta dos livros.

Amiga pessoal de James Joyce, Sylvia Beach fundara a sua livraria em 1919, perto do Odéon, no Quartier Latin, e ela depressa se transformou em mais do que uma loja de venda de livros. Por lá passavam (e ficavam, e residiam mesmo) figuras como Joyce, mas também Ezra Pound, Ernst Hemingway, Scott Fitzgerald ou Gertrude Stein - quem viu recentemente o filme de Woody Allen, Meia-Noite em Paris, pôde viajar no tempo até esse lugar e reconhecer esses ícones da história da literatura. A livraria acabaria por fechar em 1941, na sequência da ocupação de Paris pelo exército de Hitler.

"Um refúgio literário"

Ao recuperar o nome Shakespeare and Company, em 1962 (ano da morte de Sylvia Beach), George Whitman não só homenageia a sua antecessora como dá continuidade a essa relação pouco convencional com o comércio dos livros. "Mais do que um vendedor de livros, Mr Whitman via-se a si próprio como o patrono de um refúgio literário", escreve a jornalista do The New York Times Marlise Simons, num artigo sobre a morte do livreiro americano.

De facto, George Whitman - "Eu escolhi gerir uma livraria porque acho que o negócio dos livros é o negócio da vida", disse um dia - tomava também à letra o significado de refúgio: a casa de três pisos da Shakespeare and Company era uma loja de venda, troca e empréstimo de livros, mas era também a sua própria casa, além de que acolhia e hospedava regularmente jovens escritores ou aspirantes às Letras. Whitman assumia a máxima que fora beber a Yeats, e que inscrevera mesmo na fachada da casa: "Sê hospitaleiro para os estranhos; eles podem ser anjos disfarçados".

É assim que a Shakespeare and Company era procurada por toda a espécie de autores e leitores. E se a sua antecessora tinha sido ponto de encontro e tertúlia dos escritores americanos da Lost Generation, a nova livraria perto de Notre-Dame tornou-se o poiso natural da Beat Generation: Allen Ginsberg, William Burroughs, Gregory Corso e Lawrence Ferlinghetti eram visitas e hóspedes frequentes. Este último tornou-se especial amigo de Whitman, que conheceu em Paris no final dos anos 40. O autor de A Coney Island of the Mind viria, de resto, a replicar em São Francisco a experiência do seu amigo de Paris, fundando na Califórnia a City Lights Books.

O poeta português Nuno Júdice, que foi conselheiro cultural da Embaixada de Portugal e director do Instituto Camões em Paris, teve a oportunidade de conhecer George Whitman e cruzou-se com Ferlinghetti na Shakespeare and Companhy (ver poema ao lado). Ao P2, recorda, desse lugar, "o ambiente de uma memória quase só reconhecível pelo mobiliário e por esse cheiro inconfundível de livros com uma larga experiência de proprietários, ligada a paixões, e dramas que acabaram na sua venda apressada por necessidade ou raiva que só o mau estado de capas e folhas por vezes denunciava".

Entre os inúmeros poetas com que se cruzou na livraria, Nuno Júdice evoca especialmente Lawrence Ferlinghetti, a quem chegou levado por Virgílio de Lemos, em 1981. "Lembro-me porque tinha comigo, recém-publicado, O voo de Igitur num copo de dados, que o Virgílio me obrigou a mostrar a Ferlinghetti para lhe dar a conhecer que havia poetas em Portugal depois de Pessoa, de quem ele foi o primeiro editor americano na tradução de Susan Brown."

O poeta português recorda também o cenário afectivo da loja: "Os livros empilhados numa aparente desordem que, quando começava a ver, tinha por detrás uma lógica que nunca compreendi, mas que estava na cabeça daquele homem que andava no meio deles". E as sucessivas sessões de leitura e de autógrafos, recitais, encontros. Algo que "hoje é uma memória, mas continua aberta", acrescenta.

Tudo leva a crer, de facto, que o desaparecimento de George Whitman não irá colocar em risco a continuidade da livraria, que já passou por vários momentos de crise. A loja era desde há muito gerida pela filha do proprietário, Sylvia Beach Whitman (o nome é um evidente gesto de homenagem à fundadora da marca), que tem mantido a tradição da casa, tendo inclusivamente criado um prémio literário, aberto aos jovens escritores.

Não conseguindo fugir ao roteiro mais turístico do circuito parisiense, "num país onde a Cultura faz parte da paisagem", como nota Nuno Júdice, a Shakespeare and Company é ainda uma experiência diferente no roteiro das livrarias.

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