Apocalipse no "call center"

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O segundo volume das aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy inclui um desvio a Fátima, e até o terceiro segredo é para aqui chamado RUI GAUDÊNCIO

Graças a Filipe Melo, o apocalipse andou a rondar Lisboa. Mas também graças a ele e a uma providencial viagem a Fátima, Dog Mendonça e Pizzaboy, heróis de banda-desenhada, salvam o mundo com a ajuda de Nossa Senhora (e com isso ganham um prefácio de George Romero). Gonçalo Frota

Um grupo de pessoas anónimas, com as caras tapadas por máscaras, empunha cartazes que dizem "Acordem!" e, rua abaixo, bate violentamente nas janelas dos restaurantes, tentando provocar sobressalto em quem, de talheres em riste, se apega aos restos de normalidade. Isto, na cabeça de Filipe Melo, podia muito bem ser o início de um filme de John Carpenter, um "Eles Vivem" ou algo do género. Isto, na realidade, é uma noite recente no Bairro Alto lisboeta. E, para um amante de todo o cinema que meta mortos-vivos e sangue a espirrar em barda, é talvez um prenúncio de que um dia destes, "quando as pessoas não tiverem dinheiro para levar comida aos filhos, vai haver um filme de terror". Melo, pianista de jazz, realizador do primeiro filme de zombies português ("I"ll See You in My Dreams") e argumentista das aventuras (primeiro "Incríveis", depois "Extraordinárias") de Dog Mendonça e Pizzaboy, lançou há pouco o segundo volume da sua banda-desenhada assente, conscientemente, nos clichés do cinema de terror e fantástico. A homenagem, no caso, faz com que estas histórias sejam "um gesto de amor por uma série de coisas que fizeram com que a nossa juventude fosse mais colorida". Esse gesto implica a revisitação. Mas Melo acredita que, dado o momento presente, a vontade de fazer um terceiro tomo possa ter como ponto de partida um medo bem menos fantasioso: "Ter a conta negativa a dada altura e precisar de dinheiro para pagar nem que seja os impostos". Mas estamos a adiantar-nos. Antes do terceiro, o segundo.

"As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy II: O Apocalipse" (daqui em diante designadas por "Extraordinárias") arrancam com um Pizzaboy que deixou de entregar pizzas e se transformou num enfadado empregado de "call center", "símbolo dos tempos que passamos, a típica história do jovem licenciado". Ou como, neste universo muito particular, só num contexto da mais entediante e bafienta normalidade pode levantar-se um herói capaz de salvar o mundo. "O Pizzaboy representa o lado mais puro do ser humano", diz Filipe Melo, "e pô-lo a trabalhar num "call center" pareceu-me que seria o mais lógico para ter um contraste com a viagem em que ele descobre que se resignou mais uma vez. Também é um medo que me afecta a mim e a toda a gente - o de que possa perder a chama". Como mandam as regras destas histórias, a heroicidade nasce do simples facto de não haver melhor alternativa para passar o tempo. Chovem milhões de gafanhotos sobre as Amoreiras, o dia do Julgamento Final abate-se sobre Lisboa, mas Dog, Pizzaboy, Gárgula e Pazuul salvam o mundo porque caso contrário estariam simplesmente a limar as unhas num escritório imundo, a resolver remotamente problemas de ligação à Internet, a vigiar Lisboa das alturas e a observar alguém a limar as unhas, respectivamente.

O apocalipse, em jeito de aparição, mostrou-se a Melo em Tondela: "Estava de férias e em Tondela não se passa grande coisa. Tinha lá a Bíblia, comecei a ver aquilo e a lembrar-me destas coisas do apocalipse. Depois pus-me a googlar e a pesquisar sobre o assunto e pensei em isolar tudo o que tivesse uma interpretação minimamente ambígua e agarrar a mais básica de todas escarrapachando-a aqui". Não voltou a ler a Bíblia de uma ponta à outra - "já me bastou quando era garoto e tinha uma cadeira chamada Religião e Moral" - e foi directo ao Livro das Revelações. Mais tarde, com os argentinos Juan Cavia (desenhador) e Santiago Villa (colorista), foi a Fátima. Até porque o terceiro segredo é chamado a entrar na história. Não pelo conteúdo que foi revelado há uma década (tentativa de assassinato de João Paulo II) e que foi como um balde de água gelada derramado sobre a cabeça de Melo, mas por tudo aquilo que, na verdade, ele sempre esperou que fosse (o fim dos tempos). "Eu dava muita credibilidade à coisa", confessa. "As pessoas da minha geração acreditavam genuinamente que tinha acontecido qualquer coisa de sobrenatural. Quando estão três crianças a passear no campo e vêem o fantasma - isso metia-me algum medo. Mas diziam-me que não podia ter medo porque era uma senhora do Bem, que tinha revelado um segredo que só podia ser contado ao Vaticano e que um Papa tinha desmaiado ao ouvi-lo. Grande parte desta história também tem a ver com isso - quando temos uma religião que consegue assustar mais do que "A Noite dos Mortos-Vivos", é natural que uma pessoa acabe por agir de determinada forma por medo e não por vontade própria".

José e Pilar

A estética dos filmes-catástrofe dos anos 70 que Filipe Melo importa para os seus livros de banda-desenhada encontra como referências máximas "A Torre do Inferno" ou "Terramoto". Mais do que qualquer nova vaga de produções televisivas. Em casos como "Walking Dead", aliás, série com a qual Filipe não consegue deixar de esbanjar algum amor, sobressai ainda assim uma irritação maior - por George Romero, realizador de "A Noite dos Mortos-Vivos", não ganhar um tostão de direitos de autor. "Isso choca-me imenso", refere. "Devia ter havido uma maneira de patentear os zombies. Mas suponho que os herdeiros do Bram Stoker também não ganham nada com o "Twilight". O Romero gosta do "Walking Dead" e convidaram-no até para realizar um episódio, mas recusou porque gosta mais de contar as historinhas dele. É incrível quando um sucedâneo se transforma em algo de gigante. Eu gosto mais daqueles filmes com zombies mal feitos do Romero".

Mas o nome de Romero não aparece por acaso. O realizador norte-americano foi convidado por Melo a escrever o prefácio para "Extraordinárias" quando esteve em Lisboa, em 2010, a convite do festival de cinema de terror MoteLX. Dois dos organizadores, amigos próximos de Melo, convidaram-no a ir jantar com Romero a uma tasca na Praça da Alegria. "Normalmente fico cheio de medo quando conheço alguém que me influencia muito", reconhece. Mas o convite era irrecusável. "Todas as coisas de que gosto têm que ver com o Romero. O "Thriller", que foi a primeira coisa que me meteu medo na vida, é um tributo ao Romero. Ele é o avô de tudo isto. É uma pessoa que teve um papel essencial na minha vida. Foi por causa dele que aconteceu aquilo do "I"ll See You in My Dreams"". Convencido o realizador, o prefácio chegou mais tarde, uma semana antes de Romero se apresentar este Verão como presidente do júri do festival de terror de Estrasburgo. Filipe fez-se à estrada com mais um par de amigos só para lhe entregar uma garrafa de vinho do Porto em agradecimento pelo prefácio e fugir temporariamente ao ar pesado em Portugal.

Apareceram no hotel, depositaram a garrafa nas mãos de Romero e este convidou-os a jantar na zona histórica. Era o aniversário de Filipe e a sua vida dificilmente poderia estar em melhores mãos do que aquelas que haviam criado os mortos-vivos: "Houve uma altura em que ele estava a falar, com aquela manápula - ele é gigante -, e eu a pensar "está aqui o gajo que um dia se lembrou que os mortos se iam levantar, iam comer humanos e morrer quando se lhes dispara para o cérebro". Para a maioria das pessoas são apenas zombies, mas para mim ele é um visionário que, quando foi convidado pelos vizinhos a ir à inauguração de um centro comercial, olhou à volta e disse "era para aqui que as pessoas viriam se perdessem o lado humano"". Ao lado de Romero, Filipe conheceu também uma "mulher encantadora, que foi a bóia de salvação do gajo". Por isso, diz que aquele casal "é um José e Pilar com zombies". Uma história de amor plantada no meio de seres putrefactos.

A maldição do terceiro

Se Romero prefaciou "Extraordinárias" e John Landis as "Incríveis", Filipe Melo sabe que - mandam as regras das sagas - deverá entregar o terceiro prefácio a "um realizador de merda". Não há uma única saga, defende, que escape à maldição de ter um péssimo terceiro episódio, pelo que parece aceitar pacificamente que o próximo será um desastre. Mesmo que, após ter assistido a um concerto de Ana Moura, comecem a surgir ideias entusiasmantes como a possibilidade de Dog Mendonça, um receptáculo privilegiado de brutidade, aparecer daqui a cinco anos como guitarrista de dedos sapudos numa casa de fados, solução para quem, não sabendo lidar com a pressão de ser um herói, preferisse o anonimato do fado-masoquismo. "Gosto desse contraste de serem heróis, os únicos que têm a capacidade de salvar o mundo, e [ao mesmo tempo] uns pobres coitados como todos nós que andam aí a penar".

Certo é que, depois da edição norte-americana pela enorme Dark Horse - Landis entregou um exemplar ao presidente da editora de "Sin City" ou "Hellboy", o resto é história - prevista para 2012, a haver um terceiro episódio, uns quantos mandamentos terão de ser respeitados: o quarteto terá de salvar o mundo num prazo de 24 horas; a Gárgula terá de ser decepada; os vilões terão de respeitar arquétipos clássicos; e, finalmente, cada história terá de acabar como uma música de acorde em suspenso. Nada nunca se acaba. Porque o terror, para ser terror, não pode ter um fim. Mas pode ter promessas. E Melo despede-se com uma: se este livro chegar à quinta edição, vai até Fátima a pé.

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