Anjos e demónios

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Músicos que conhecem de trás para a frente, e profundamente, a história e a energia das cinco décadas de rock"n"roll

Ouve-se a gentileza de uma canção Roy Orbison, enquanto por perto uma orelha é cortada. O cenário é de David Lynch, mas serve como boa ilustração para a música dos Tiguana Bibles, banda que trespassa inocências de standard com a incerteza de um sorriso malévolo. Rock"n"roll, pois claro. Mário Lopes

O nome da banda foi descoberto numa sex-shop. Confere. A banda gravou em EP uma versão de "Lonesome town", de Ricky Nelson. Também confere. A banda, que se chama Tiguana Bibles, corruptela de Tijuana Bibles, título dado a uma série de cartoons pornográficos em circulação nos EUA durante a Depressão, reúne o guitarrista Victor Torpedo (era ele que trabalhava na sex-shop) e o baterista Carlos Mendes (Kaló), que se conhecem desde os tempos dos Tédio Boys, ao contrabaixista Pedro Serra, sumidade conimbricense do rockabilly e um ex-Ruby Ann & The Boopin" Boozers, ao guitarrista Augusto Cardoso, que também encontramos nos A Jigsaw, e à vocalista Tracy Vandal, escocesa que, lá atrás no tempo, cantou nos Karelia, por onde andava um senhor chamado Alex Kapranos.

O nome da banda confere, tal como a gravação, no EP de estreia, de uma gravação de "Lonesome town", clássico absoluto na categoria "coração solitário", porque os Tiguana Bibles não habitam um mundo pintado a preto e branco. A música tem algo das canções vaporosas da década de 1950, naquele toque de classe sobre o tremolo da guitarra, e dos girl groups da década que se lhes seguiu, mas o sorriso malévolo do diabo está sempre à espreita e a harmonia cristalina do som é corrompida por camadas de reverberação ou pelo silvo do theremin. Os Tiguana Bibles são atraídos pelo mais duradouro ying yang que a Humanidade conhece. O bem e o mal, escrevemos nós. "O que parece angélico e o diabólico", concretiza Victor Torpedo. O guitarrista, de novo a viver em Coimbra depois de vários anos em Londres, durante os quais fundou os Parkinsons e os Blood Safari, não demora a mergulhar naquilo que é da essência da banda. Está tudo na voz de Tracy Vandal, a vocalista e companheira de Torpedo, que transporta para canção aquilo que, há três anos, começaram por ser instrumentais rock"n"roll que Quentin Tarantino poderia pilhar para uma qualquer recriação do cinema negro da década de 1950. "O Afonso [vocalista dos Parkinsons] funcionava bem porque eu fazia canções a pensar na forma como ele canta". Corrige: "Como ele canta não, como ele grita". Nos Tiguana Bibles, que começaram por ser uma brincadeira de Victor Torpedo, Kaló e Pedro Serra, e que se transformaram em banda a sério quando o trio foi convidado a entrar em estúdio - sem alguém ter ouvido uma nota que fosse, só pelo interesse suscitado pela reunião daqueles três nomes -, aquilo que ouvimos no EP "Child Of The Moon", em 2008, e aquilo que ouvimos agora no álbum de estreia, "In Loving Memory Of", nasce porque Torpedo, o compositor, canalizou a sua energia criativa em Tracy Vandal - e também, clarifica, porque tinha por perto Pedro Serra, "um rapaz dos 40s e 50s, do rockabilly, do hillbilly e do western swing": "a partir do momento em que ele faz parte da banda, a sonoridade tinha que ir por outro lado [que não o rock"n"roll mais visceral que conhecíamos das bandas de Vítor Torpedo ou dos Bunnyranch de Kaló e Augusto Cardoso]".

A doença

Com Tracy Vandal, chega-se ao ambiente de sombras e de incerteza. Não é por acaso que David Lynch, habitualmente citado nos textos que abordam os Tiguana Bibles, é referido por Torpedo: "No "Blue Velvet", enquanto estás a ouvir uma música óptima do Roy Orbison, pode estar alguém a cortar uma orelha a outra pessoa. O David Lynch é mestre nisso [nesse jogo de paradoxos]". E os Tiguana Bibles, formados por músicos que conhecem de trás para a frente, e profundamente, a história e a energia das cinco décadas de rock"n"roll, sabem como transportar essa energia para o imaginário que criaram. Sem mariquices. Preocupados com aquilo que é cada uma das canções e não com estafadas questões de originalidade. "O punk, para mim, é energia, liberdade e despreocupação no fazer", dir-nos-á Victor Torpedo. Por isso, irrita-se quando lhe dizem que se calhar, cuidadinho, não vão por aí, isso parece a banda tal ou tal. "Detesto isso. É a música que queremos fazer e que vamos continuar a fazer". É, em termo técnico, "a doença". Aplica-se o termo da seguinte forma: "Desde que peguei na guitarra, nunca pensei se o que faço é bom para português, se é bom para o que quer que seja. Faço música e continuo a tocar por", aqui têm, "doença".

E de facto, só essa "doença" que é a vontade de fazer e de fazer porque sim, porque não haverá nada de mais interessante e compensador para ocupar a vida, terá permitido aos Tiguana Bibles chegar aqui, a este primeiro álbum que, no domingo, será prenda natalícia à cidade do Porto - tocam dia 25 no Armazém do Chá.

Quando a banda começou, Victor e Tracy viviam em Londres e Augusto Cardoso não era ainda guitarrista. No seu lugar estava o inglês Paul Hofner, um dos melhores amigos do casal. Com ele gravaram o primeiro EP, com ele andaram em digressão os Tiguana Bibles. Entretanto, as gravações do álbum atrasam-se, fruto da distância com o resto do grupo. Terminada uma primeira gravação, Paul Hofner sofre um ataque cardíaco. Morre a um par de dias de os Tiguana Bibles iniciarem uma digressão em Portugal. Um choque. Pensam em desistir, em acabar com tudo. Decidem, porém, que continuar seria a melhor homenagem a Hofner - e a mulher dele, recorda Víctor Torpedo, incentiva-os com humor: "o Paul iria de certeza aproveitar um momento como este para conseguir a melhor promoção possível". Augusto Cardoso torna-se um Tiguana Bibles, a digressão é cumprida, o álbum, cuja primeira gravação ficara perdida no computador de Hofner, é regravado. O título, como se percebe, recorda-o. E a banda, como decidido, prossegue.

No momento em que falamos, Victor Torpedo já olha em frente. "Gravámos as canções há tanto tempo que estamos desesperados por fazer coisas novas". Ilustra-o com uma analogia curiosa: "Os New Order eram uma banda tão boa quanto os Joy Division. Eram duas vertentes das mesmas pessoas. Os Tiguana estão nessa fase, não em termos de som, mas no sentido de haver uma luta constante: alguns elementos puxam para um lado mais retro, outros puxam mais à frente. Está a ser óptimo".

Nós ainda ouvimos as reverberações de "In Loving Memory Of...", mas eles já preparam o próximo passo. A "doença" dos Tiguana Bibles só lhes faz bem.

Ver crítica de discos págs. 33 e segs.

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