Vaclav Havel O impossível também acontece

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Fotografado pelo PÚBLICO na véspera da mudança para a residência oficial, em 1989 luís vasconcelos/arquivo

O antigo Presidente checo afirmou que não se pode queixar do modo como irá passar à História. No início do ano, pressentiu que a morte estava cada vez mais próxima: uma floresta que se transforma em clareira

No ano em que o mundo voltou a mudar, um homem pequeno, de olhos azuis, tornou-se a prova viva de que o improvável acontece por vezes. A verdade é que nesse ano longínquo de 1989 estava a acontecer quase todos os dias, mas a Vaclav Havel, que ontem morreu aos 75 anos, como ao seu país que já não existe, a Checoslováquia, o que parecia impossível impôs-se quase num piscar de olhos.

A 29 de Dezembro de 1989, o dissidente e dramaturgo Vaclav Havel tornou-se o primeiro chefe de Estado não comunista do Bloco de Leste. Foi eleito por unanimidade por um Parlamento ainda com maioria comunista. Seis meses antes, estava preso, mais uma vez declarado inimigo do Estado pelo regime comunista, que, pouco depois, em Novembro, também se iria abaixo em apenas dez dias. Voltou a ser eleito por mais duas vezes, mantendo-se neste cargo até 2003.

Morreu ontem ao amanhecer, na casa de campo a 150 quilómetros de Praga onde, durante o regime comunista, se reunia com outros dissidentes e que se tornou também, nos últimos anos, o seu refúgio de doente. Foi-lhe detectado um cancro do pulmão em 1996, no mesmo ano em que morreu a sua primeira mulher, Olga. Uma pneumonia contraída e mal sarada durante os primeiros cinco anos que passou na prisão e um passado de grande fumador ajudaram ao que veio depois: uma série de infecções respiratórias que ditaram várias hospitalizações, a última das quais em Março passado.

Tornara-se um homem ainda mais magro, com perda de equilíbrio e de memória. Um mês antes deste novo internamento, antecipava, numa entrevista, a morte que ontem se consumou. A AFP lembrou as suas palavras: "Reflicto cada vez mais sobre a morte. Tenho a impressão que me encontro numa floresta onde estão a abater as árvores uma a uma e que se está a tornar aos poucos numa clareira".

Ainda como Presidente, passou alguns períodos de convalescença numa casa que, em 2000, comprou no Algarve e que vendeu poucos anos depois. A ligação de Havel a Portugal data de 1989. Começou com o apoio que lhe foi dado por um grupo de estudantes portugueses, que lhe compraram um carro para a sua tomada de posse, e pelo então Presidente Mário Soares, o único estadista estrangeiro que convidou para a sua primeira tomada de posse.

A nova Primavera

Tinha 53 anos, e um passado activo de dramaturgo e combate pelos direitos humanos, quando se tornou o ícone da "revolução de veludo". Foi assim que os media baptizaram o que aconteceu na Checoslováquia em Novembro de 1989: o regime comunista, instalado 41 anos antes, soçobrou quase sem sangue, em contraste absoluto com a outra vez em que os checoslovacos bateram o pé e o país acabou invadido por tanques do Pacto de Varsóvia, liderado pela também já extinta União Soviética. A "Primavera de Praga" de 1968 voltava à vida no Outono de 1989, embora também com outra diferença radical: o desafio já não era o de tentar um "socialismo com rosto humano" mas sim a democracia praticada no Ocidente.

Havel, cujas peças estavam proibidas há mais de 20 anos, foi escolhido para dar o pontapé de saída. Pouco antes, tinha formado o movimento Fórum Cívico, que simbolicamente se instalou na antiga sede da Associação de Amizade Checoslováquia-URSS. Dois anos depois, coube-lhe a ele anunciar a extinção do Pacto de Varsóvia. Por causa sobretudo deste acto, dirá mais tarde numa entrevista: "Não me posso queixar quanto à forma como passarei à História". Foi também Havel quem dirigiu a integração do país na NATO e os preparativos da sua adesão à União Europeia. Mas o Presidente que, em 1989, também foi eleito na rua pelos estudantes, de braço no ar, frente ao Parlamento, acabaria por abandonar a vida política sem glória e sem apoios.

Enquanto chefe de Estado, considerou que a sua principal derrota foi a de não ter conseguido impedir a independência da Eslováquia que, em 1992, partiu o seu país em dois. Mas os primeiros anos de democracia foram também de guerrilha constante entre ele e o primeiro-ministro, agora Presidente, Vaclav Klaus, um admirador de Margaret Thatcher, que passara pelo Fórum Cívico. Havel foi acusado várias vezes de intromissão nos assuntos do Governo, intitulado de arrogante e viu-se praticamente reduzido a funções simbólicas. Os checos também parecem não lhe ter perdoado o casamento com uma actriz 20 anos mais nova. Ontem, Vaclav Klaus prestou-lhe homenagem.

Uma marca do passado

Fã dos Rolling Stones, amigo de Frank Zappa e do Dalai Lama, Havel prosseguiu nos anos seguintes o seu combate de sempre em defesa dos direitos humanos. Também voltou a escrever e estreou-se como realizador de cinema. Incomodava-o "a resignação dos homens e dos cidadãos". Entre as frases reveladoras, escolheu uma que pertence ao filósofo alemão Heidegger: "Apenas alguma espécie de Deus pode salvar-nos".

Do seu passado nas prisões comunistas pouco falava. Mas não o esquecia. Um dia depois da sua posse em 1989, acompanhado de Mário Soares, depôs uma coroa de flores na estátua da Praça Wencelas, em Praga, onde o estudante Jan Pallach se imolou pelo fogo em 1969, em protesto contra a invasão dos tanques soviéticos. Levou vestido o casaco que usava quando, meses antes, fora preso pela polícia comunista nesse mesmo local.

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