Vítor Bento: “Sou contra a saída do euro, mas devemos discutir esse cenário”

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Foto: Nuno Ferreira Santos

Em entrevista ao PÚBLICO, onde procurou "fazer pedagogia", admitiu que o cenário de saída do euro, a que, aliás, se opõe, deve ser discutido. E não excluiu um referendo clarificador.

Como avalia o modo como está a ser aplicado o programa de austeridade em Portugal? Julgo que razoavelmente bem. É esse o sentido das avaliações feitas pela troika e pelos observadores externos, incluindo governos da zona euro. É um programa com um amplo apoio político interno, uma vez que foi subscrito pelos três partidos do chamado arco da governação e que consubstanciam 80% da representação política. É desejável que essa coligação de apoio se mantenha. Mas também admito que um apoio amplo, envolvendo governo e oposição, precise de um mecanismo de “governance” adequado para o preservar, pois pode ser complicado a quem esteja na oposição que só lhe seja pedido que carimbe decisões.

Qual é a sua proposta? Não se trata de criar nenhuma instituição, mas apenas do processo de concertação, formal ou informal, para as decisões em que seja requerido, ou seja desejável, o apoio das duas partes – governo e principal partido da oposição. Acredito que haverá a inteligência necessária para o efeito, de modo a prevenir que uma das partes se possa sentir refém da outra e abrir espaço para uma desafectação do apoio. O amplo apoio político e social que suporta o programa de ajustamento é um trunfo a favor do País e que nos ajudará a ter mais sucesso do que de outra forma teríamos.

Como avalia a actuação do Primeiro-Ministro?

Favoravelmente. Está a cumprir as suas obrigações com o sentido de responsabilidade que seria de esperar num contexto muito difícil como o actual.


Portugal está a fazer o trabalho de casa, para que no final da ajuda internacional haja uma luz ao fim do túnel?

Espero bem que sim. Reconheço que o Governo está a fazer o que está ao seu alcance para cumprir os compromissos. Mas o espaço de manobra é reduzido e a envolvente externa é muito instável. O País não dispõe de todos os instrumentos que seriam necessários para lidar com a totalidade do problema. A receita típica do FMI para lidar com este desequilíbrio – excesso de despesa interna e sucessão de défices externos – é reduzir a procura e desvalorizar a moeda. Este é também o meu quadro analítico para lidar com um problema desta natureza, no curto prazo. Mas não temos como fazê-lo. Só temos forma de actuar sobre a procura. Está-se a apertar a política orçamental, como seria indispensável e para o que não há escolha. Mas não temos a taxa de câmbio para estimular, no imediato, a produção de bens transaccionáveis e compensar o aperto interno. Em cima disso tudo e ao mesmo tempo, estão a apertar-se as condições monetárias da economia, reforçando a componente contraccionista. A situação é, pois, muito complicada.


O seu quadro analítico é semelhante ao do FMI?

Neste tipo de situações é muito próximo. Admito que possa haver quem tenha soluções diferentes, mas gostava de as ver bem explicadas. Alternativas que apelam à acção de terceiros podem ser apelativas, mas se não dispusermos de instrumentos para levar os outros a fazer o que nós queremos, parece-me conversa gratuita. O que não quer dizer que não se insista dentro da zona euro por acção alargada e concertada a nível macroeconómico, porque o problema da zona euro não se resolve apenas com austeridade. Mas voltando ao nosso caso e creio que nisso o FMI também estará de acordo, para crescermos sustentadamente, a médio e longo prazo, temos que fazer as chamadas reformas estruturais, flexibilizando a economia e estimulando a produtividade. Porque só através da produtividade poderemos melhorar sustentadamente o nível de vida da sociedade. E neste campo receio que se esteja a perder o momento político.


O que quer dizer com isso?

Ainda não vi medidas significativas do ponto de vista estrutural, nomeadamente no mercado laboral, no funcionamento dos mercados e na economia das rendas. À medida que o tempo passa, as condições políticas não ficam mais favoráveis e as forças do status quo reganham capacidade de resistência. A complicação que se gerou à volta da meia hora de trabalho parece-me um mau presságio.


Concorda com ela?

Não quero discutir pormenores porque nos desviam do essencial. E o essencial é que a contracção orçamental e as reformas estruturais são inevitáveis. E, dentro do meu quadro analítico, é preciso desvalorizar a taxa de câmbio real se se quiser travar e reverter o desemprego e amenizar a recessão que a austeridade acarreta. Mas sem uma deflação relativa dos nossos custos e dos preços dos sectores não transaccionáveis, não estou a ver como isso se consiga no curto prazo, mas estou sempre aberto a aprender. E uma deflação relativa só tem duas vias: ou os outros inflacionam e nós mantemos, ou nós deflacionamos pura e simplesmente.


Propõe mexidas nos salários e nos preços?

Por muito que nos custe, os custos laborais terão que ajustar em baixa. A descida da Taxa Social Única (TSU) permitiria fazer isso sem mexer nos salários. O meu receio é que, se nada se fizer proactivamente, o ajustamento da competitividade acabe feito à bruta, através de uma recessão muito grande para que o mercado ajuste automaticamente. Uma solução concertada política e socialmente seria preferível. Mas como a maior parte do emprego e dos empresários está nos sectores protegidos, não creio que tal concertação seja provável. Por outro lado, a ignorância sobre a substância dos nossos problemas é imensa, mesmo entre a elite empresarial que, focada nas suas árvores, não consegue ver a floresta.


E qual é a substância dos nossos problemas?

Ao longo dos últimos 50 anos, o rendimento disponível foi sempre superior ao PIB (5% em média). Isto é, o que tínhamos para gastar foi sempre mais do que produzíamos, graças às remessas dos emigrantes e ao que vinha da UE, basicamente. Podíamos gastar mais do que produzíamos, até um certo ponto, sem gerar desequilíbrios. Desde 1995, porém, o rendimento disponível, em percentagem do PIB, entrou em “queda livre”, tendo perdido cerca de nove pontos percentuais: caiu de 7% acima do PIB, para 2% abaixo. Mais: pela primeira vez em mais de 60 anos (que é a série que tenho) e desde 2005, o rendimento disponível tornou-se inferior ao PIB, o que quer dizer que o que temos para gastar já é menos do que produzimos.


Quer aproveitar para explicar a que se deveu a queda do rendimento disponível?

À redução das transferências, juntamente com o aumento dos juros a pagar ao exterior. Entretanto, a sociedade não interiorizou esta alteração estrutural, continuando orientada para um padrão de consumo, privado e público, que deixou de ter sustentação. Por isso, à medida que tinha menos rendimento disponível, mas ia mantendo o mesmo nível de despesa, a sociedade foi-se endividando para cobrir a diferença. A dívida ia acumulando e os juros a pagar ao exterior aumentavam, consumindo Rendimento que deixava de ficar disponível. Os juros pagos ao exterior tornaram-se superiores às transferências. Daí a perda de rendimento que referi. Agora, ajustar este desequilíbrio implica baixar o peso dos consumos no PIB em cerca de oito pontos percentuais. Mas há mais...


Há mais?

Em 1995, por exemplo, a balança corrente com o exterior estava quase equilibrada. A componente transferências e rendimentos era positiva (3,5% do PIB) o que permitia que a balança comercial – exportações menos importações – pudesse ter um défice equivalente ao simétrico daquele valor. Entretanto e como já referi, aquela componente tornou-se negativa (á volta de 3% do PIB), pelo que hoje, para termos equilíbrio externo, temos que ter uma balança comercial positiva. Temos de exportar mais, e/ou importar menos, em percentagem do PIB, do que em 1995. O que significa que, de então para cá, a taxa de câmbio de equilíbrio da economia se desvalorizou. Isto é algo que eu ainda não vi referido por mais ninguém. E quer dizer que, para podermos atingir o equilíbrio externo, os custos e preços da produção nacional deveriam ter descido face aos do exterior. Não obstante, os custos e os preços relativos entre a produção nacional e a produção estrangeira subiram, pelo que a taxa de câmbio real efectiva se apreciou, agravando o seu gap face às necessidades da economia. E isto explica muita coisa.


Dá então razão ao economista João Ferreira do Amaral que discordou da nossa adesão ao euro?

São coisas e planos diferentes. Há ainda discussão sobre se entrámos no euro com a taxa adequada. E entrámos, mas com a taxa adequada às condições do momento da entrada e atendendo ao que era a balança de transacções correntes da altura. Só que a taxa de câmbio já não é adequada às condições de hoje, que se deterioraram.


O que responde aos que defendem que a resposta aos nossos problemas passa hoje pela saída do euro?

É verdade que com taxas de câmbio fixas – como já aconteceu com o padrão ouro nos anos 30 –, a única forma de ajustar a taxa de câmbio real é através de uma deflação de custos e preços e isso é extremamente violento. Mas a saída do euro provavelmente terá uma violência ainda maior.


Acredita numa eventual saída do euro, por pressão externa? Devemos discutir publicamente esta possibilidade?

Espero que não aconteça. Mas é verdade que há quem esteja a propor a saída do euro. Não devemos recusar discutir esse assunto, como se fosse um dogma religioso. Devemos ter disponibilidade para discutir todos os cenários. Mas quem defende essa via deve pôr em cima da mesa as implicações desse cenário.


Mas qual é a sua opinião?

Na minha opinião o abandono do euro implicará, entre outras coisas, uma queda do valor dos salários e das poupanças não inferior a 30 a 50%. Ou seja, teríamos um grande e imediato empobrecimento. Além disso e durante uns meses iria haver uma tremenda confusão na marcação dos preços e com a ausência de notas e moedas para transaccionar. Contrariamente ao que alguém disse, não seria possível carimbar notas de euros. Seria uma situação muito caótica e onde os menos informados e mais vulneráveis seriam facilmente explorados pelos oportunistas e vigaristas.


Porque é que, em caso de saída da moeda única, não seria possível carimbar as notas do euro?

Porque as notas (euro) são um activo do Banco Central Europeu e não do Banco de Portugal pelo que continuariam a valer euros.



Recentemente João Ferreira do Amaral veio defender que devíamos negociar a saída do euro, de modo ordenado, e admitiu que haverá uma queda do poder de compra violenta, mas, em contrapartida, diz que o ajustamento será mais rápido?

Faz-se mais rapidamente porque a desvalorização da taxa de câmbio real é imediata. Mas a contrapartida é o considerável empobrecimento imediato. Assim, ao rebaixar muito o ponto de partida, é fácil criar a sensação de melhoria. Mas não me custa admitir que, se o ajustamento em curso não produzir o resultado esperado num tempo razoável e se a recessão se aprofundar demasiado, engrosse a opinião a favor da recuperação do controlo sobre a moeda e a taxa de câmbio, sejam quais forem os custos imediatos. Assim como também não me custa admitir que o emprego recuperasse mais depressa. Mas seria à custa de uma substancial desvalorização dos salários. Acho é paradoxal que, face às consequências de uma saída, aqueles que a defendem recusem ajustar os salários, ainda que mais moderadamente, para nos mantermos.


O Governo e o Presidente da República não deveriam estar já a preparar mecanismos para antecipar esta situação, caso se torne irreversível? Isto, enquanto procuram evitar a saída do euro a todo o custo?

Não. A partir do momento em que as instituições se prepararem para a saída do euro, esse cenário precipitar-se-á porque se desencadeará uma fuga de capitais. E se há quem defenda essa solução temos que a pôr em cima da mesa e discuti-la.


Não corremos o risco de nos acontecer o mesmo que em 1974, em que Marcelo Caetano se recusou a preparar o país para a descolonização que era uma inevitabilidade?

Não é comparável. Temos que ponderar os custos de estar dentro e os custos de sair, e enquanto os custos de estar dentro forem menores, devemos fazer todos os possíveis para ficar no euro. Além disso, o euro não pode ser visto nem discutido apenas na perspectiva económica. O euro faz parte de um projecto de integração, que tem como objectivo último a paz na Europa. E isso tem que ser devidamente ponderado. O problema tem que ser visto e resolvido sob o ângulo político, embora este não possa deixar de respeitar as restrições económicas e de se conformar com o espaço de possibilidades da economia. Caso contrário, os ideais políticos serão inviabilizados pela realidade.



A Grécia será forçada a abandonar o euro?

Espero que não, pois abriria um precedente perigoso.


... e tornaria inevitável a saída de Portugal?

A razão por que não vou responder é porque vamos entrar numa espiral da qual não há saída. É a história da dívida: a partir do momento em que as taxas atingem um certo patamar, já não voltam para baixo. O processo auto-alimenta-se. Espero que a Grécia não saia e, se sair, que não sejamos obrigados a segui-la. Parte daquilo que conseguimos ser na vida, depende daquilo que queremos ser. Se quisermos, é mais fácil conseguirmos. Desde que nos apliquemos, claro. Uma eventual saída da Grécia tornará mais difícil, num primeiro momento, lutar pela nossa permanência e poderá exigir mais sacrifícios. Mas não é inevitável. Depende da vontade que pusermos no objectivo.


Não terá sido o que aconteceu nos meses que antecederam a vinda da troika para Portugal ? Quando economistas, analistas e decisores políticos, ao longo dos meses, vieram pedir ou dar como um facto adquirido a intervenção externa? Isso não terá dado força aos mercados e tornado a intervenção inevitável?

Essa era inevitável.


Há cerca de um mês o governador do Banco de Portugal disse que a Sr.ª Merkel nunca quis a intervenção...

Não quero alimentar a discussão que é autodestrutiva por natureza.


A semana passada o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates, Freitas do Amaral, acusou a Alemanha e a França de quererem correr com Portugal do euro

Parece-me uma intenção pouco consistente com o facto de nos emprestarem o equivalente a metade do PIB.


O Governo de Dublin já veio admitir poder referendar o euro. Portugal devia fazer o mesmo?

Com uma representação política que recentemente obteve 80% das preferências eleitorais – já depois de estar assinado o compromisso de ajustamento – a expressar um sólido consenso favorável à permanência de Portugal no euro, um referendo seria um desnecessário desafio à essência da democracia representativa. Mas é preciso que um tal consenso seja consistente. Isto é, que não se limite apenas a desejar a permanência no euro, mas que seja extensível às condições instrumentais necessárias para a assegurar. Caso contrário, gera-se uma desgastante contradição, que um referendo poderia, de facto, resolver de forma definitiva.


Nos últimos meses, e depois de ter recebido a ajuda internacional, a Irlanda voltou a aparecer como sendo um caso de sucesso ao dar sinais de estar, aparentemente, a sair da crise. Mas recentemente não conseguiu ir levantar fundos, mesmo com garantia europeia. O entusiasmo era prematuro?

Quando estes processos de ajustamento começaram, achei sempre que havia demasiado optimismo no objectivo de se regressar aos mercados ao fim de um ou dois anos. Estes processos vão demorar tempo, até que os resultados sejam claros e convincentes. E além dos problemas intrínsecos de cada país, criou-se um problema sistémico de toda a zona euro, que fez levantar a dúvida sobre a sua sobrevivência. Até tudo isso ficar clarificado, os mercados vão manter-se fechados, pelo menos, para estas economias.


O ex-director do FMI, o economista Raghuram Rajan, avisou que podermos estar na eminência de enfrentar uma crise de dimensões catastróficas? Acha que este risco é real?

Está na nossa mão evitar que isso aconteça. Mas se olharmos para o que se passou nos anos 30, com o rebentamento de uma crise financeira em 1929 e a que seguiu uma década de crise económica, com uma profunda depressão, não podemos deixar de ponderar as semelhanças da situação actual. Há muitos ingredientes parecidos, de facto. Já estamos em crise há quatro anos e a Europa continua em grande efervescência. Só que hoje há mais instrumentos e mais conhecimento, pelo que temos a obrigação de evitar que a história se repita.


Horas antes da reunião da cúpula da União Europeia, na última cimeira, a agência de rating Standard & Poor's ameaçou rebaixar a nota da Alemanha, Áustria, Finlândia, França, Luxemburgo e Holanda. O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schauble, classificou a decisão como “a melhor motivação" para que se aprovasse as propostas franco-alemãs. O que tem a dizer sobre isto? As agências de rating tem uma agenda política? Duvido muito das teses conspirativas e prefiro seguir a “lei da parcimónia” ou “lâmina de Occam”, que diz que, entre várias explicações concorrentes, a verdadeira é geralmente a mais simples, ou a que precisa de menos assunções. A minha explicação para o comportamento das agências é que elas são apanhadas numa espiral que se auto-alimenta: sem perspectivas de crescimento, a sustentabilidade da dívida torna-se duvidosa; logo, aumenta o risco de crédito; a agência sinaliza-o reduzindo o rating; redução do rating faz subir o prémio de risco e, portanto, as taxas de financiamento; com taxas mais altas, a sustentabilidade torna-se mais duvidosa; e assim sucessivamente. Aliás, nos anos 30 passou-se praticamente a mesma coisa com os ratings... Agora, muito do poder que as agências têm, é-lhes dado pelos reguladores, que obrigam à utilização dos seus ratings pelas instituições financeiras supervisionadas e usam esses ratings para as suas próprias acções. Se as autoridades acham que são perniciosas, tirem-lhes as licenças, proíbam-nas de actuar, retirem-lhes o valor que lhes dão... Fico com a sensação de que as agências são usadas como bodes expiatórios para aquilo que os políticos não fazem ou fazem mal.

A última cimeira europeia de 9 de Dezembro foi anunciada como sendo a cimeira do tudo ou nada. Ficou surpreendido com os resultados?

A experiência já nos devia ter ensinado que nunca há cimeiras decisivas. Há cimeiras que vão construindo soluções, pedaço a pedaço. Esta foi mais uma. No fundo, vão-se acumulando decisões parciais, provavelmente com demasiado atraso face ao que era o desejo de todos. Mas também temos que compreender que gerir uma cooperativa a 27, com interesses e visões particulares, por vezes divergentes e até contraditórias, não é fácil, pois os vários interesses vêem os problemas com perspectivas e urgências diferentes. E veja-se a complicação processual: numa mesa com 30 participantes, se cada um falar 10 minutos, só para expor a sua posição de entrada, gastam-se 5 horas só com a primeira vaza do jogo. De qualquer modo nesta cimeira julgo que houve um sinal muito forte de querer manter a unidade da zona euro. E isso é importante. Continua, porém, a faltar pôr dinheiro em cima da mesa e aceitar um papel mais activo do BCE.


No quadro da cimeira europeia o Presidente do BCE, o italiano Mario Draghi, anunciou medidas que facilitam o acesso dos bancos à liquidez e, por essa via, de estímulo à economia real, mas recusou envolver-se na ajuda aos estados...

O BCE tem um estatuto que limita a sua acção nessa matéria. Segundo muitos, já foi mais além do que os estatutos lhe permitem, invocando implicitamente um estado de necessidade. Para poder ir mais longe precisará, julgo, de uma alteração dos estatutos ou, pelo menos, de um amplo consenso político que escude a sua responsabilização.


Mas podia ter ido, sem o tal apoio político, mais além na sua intervenção?

Eu acho que o BCE poderia ter sido mais ousado, desde há mais tempo, naquilo que é o seu papel principal e que os estatutos não limitam. Deveria ter tido uma política monetária mais acomodatícia. As suas duas últimas subidas de juro foram dois graves passos em falso. Em 2008, nas vésperas da grande debacle mundial, e há um par de meses, nas vésperas do agudizar da crise do euro. Vive demasiado obcecado com a inflação que, neste momento, é o menor (e de qualquer forma o mais controlável) dos riscos da zona euro. E deveria ter descido mais as taxas e há mais tempo. Assim como deveria mostrar mais preocupação em contrariar o aperto monetário em que se encontra uma parte da união monetária porque esta, como tal, hoje não funciona e está segmentada. A liquidez não flui e os mecanismos de transmissão da política monetária não estão a funcionar. Isso provoca um grande aperto monetário numa parte importante da UE, ao mesmo tempo que esta está a pôr em prática um grande aperto orçamental. Do ponto de vista macroeconómico é uma combinação contraproducente. O BCE deveria, em minha opinião e por exemplo, estar mais empenhado em aliviar esta dupla tenaz do que em acelerar a desalavancagem nos mercados que estão isolados da união monetária.


Essa é a grande preocupação da Alemanha. Acha que, hoje, à frente do BCE está um alemão a falar italiano, Mario Draghi?

Acredito que o BCE tenha nascido com um grande complexo de merecer a confiança do bundesbank. Mas acho que isso não é justo para Draghi, até porque com ele o BCE já baixou as taxas de juro e já anunciou a disponibilidade para aumentar o fornecimento de liquidez aos bancos. É um bom caminho


Mas não acha que uma declaração lida pelo presidente do BCE, Draghi, horas antes de começar a cimeira, tem um peso diferente do que se for dita por Vítor Constâncio, o seu vice-presidente?

Estas questões não podem ser excessivamente personalizadas. Não é o Mario Draghi que toma as decisões isoladamente. Ele terá uma posição liderante, e cabe-lhe coordenar toda a instituição. Mas ele faz a declaração interpretando aquilo que foi a decisão do Conselho de Governadores. E todos os governadores participam nas decisões e são por elas responsáveis. Estou convencido que hoje o BCE, e todos os que ocupam um lugar no BCE, vivem um dos raros momentos históricos em que não vão passar despercebidos. O que quer que façam, bem ou mal, vai ficar registado na História, e esta vai responsabilizá-los. Normalmente as pessoas passam pelas instituições, e tirando a vizinhança temporal da sua estadia, passam despercebidos da História. Desta vez, a equipa que está no BCE não passará despercebida.



Como interpretou o facto de os mercados não terem reagido positivamente aos resultados da cimeira?

O tempo dos mercados é mais rápido do que o tempo das decisões políticas. Estas levam muito tempo a montar o puzzle da solução. Aqueles reagem rapidamente, em função do que têm em cima da mesa. E neste momento a única coisa que há são partes da solução que vai sendo construída. O que é pouco para os mercados.


Nos últimos dias, o euro iniciou uma trajectória de queda face ao dólar? É um episódio ou é uma tendência que se vai manter? Neste caso é um mau sinal?

Para saber se é uma trajectória, ou apenas um sinal de volatilidade, precisamos de esperar mais tempo. De qualquer forma, uma desvalorização do euro seria favorável aos países da chamada periferia.


Recentemente Mário Soares acusou Angela Merkel de “cada vez que abre a boca dizer disparates”. Foi justo?

Em relação à Sr.ª Merkel, independentemente de gostarmos ou não do que tem feito, há que reconhecer uma coisa, isto do ponto de vista prático: é que algumas das suas decisões hoje são aceites - e que conseguem ser postas em prática -, se ela as tivesse tentado tomar há um ano, teriam sido liminarmente rejeitadas no seu país e teriam ficado provavelmente impedidas de voltar a ser consideradas. E há que perceber que ela também está condicionada pelo eleitorado alemão e pelas balizas estabelecidas pelo seu Tribunal Constitucional.


O ex-presidente da Comissão Europeia, entre 1999 e 2004, Romano Prodi acusou Merkel de não estar a altura das circunstâncias. Qual é a sua opinião?

Para mim essas afirmações não passam de exercícios de arrogância estéril. Ainda por cima vindos da parte de quem classificou de estúpido o Pacto de Estabilidade e contribuiu intelectualmente para o descalabro financeiro que agora nos está a consumir. Quanto à Sr.ª Merkel e como já disse, é preciso compreender o seu quadro mental e as suas condicionantes. Porque a solução destes problemas, envolvendo actores com interesses e visões diferentes – contraditórias, por vezes – é um processo político que tem que passar por extensas negociações. Nessas negociações é importante ter argumentos sólidos e é preciso ser-se perseverante, investindo muito no processo. Que não pode ser conduzido a um quadro moral, entre bons e maus, e no qual os ressentimentos são o prior ingrediente. Se começarmos a encostar a Alemanha a um canto e a culpabilizá-la por todos os males, ela pode enquistar-se defensivamente sobre si própria, tornando-se menos cooperativa e podemos caminhar para rupturas que não servem, nem à Alemanha nem aos demais países. Mas também temos que ter a inteligência necessária para perceber que a relação de forças entre os vários intervenientes não é equilibrada. Quem não tem dinheiro e precisa do dinheiro dos outros está obviamente mais enfraquecido e dependente do que aqueles que têm o dinheiro de que os outros precisam. Por isso, a melhor forma de reequilibrar a relação de forças é deixar de depender do dinheiro dos outros. Daí, insisto, a necessidade do nosso ajustamento.


Os governos europeus estão na mesa das negociações a defender os interesses particulares dos seus países. No quadro europeu qual deve ser a posição portuguesa?

Se todos os governos apenas se centrarem nos seus interesses particulares, provavelmente prevalecerão os mais fortes e acabam por perder todos. É preciso colocar a discussão no terreno do bem comum, e identificar o que contribui positiva ou negativamente, para o bem comum comunitário. Há soluções que podem parecer justas à partida e que acabam por implicar perdas para toda a gente. E há outras que podem começar por parecer injustas, mas conduzir a um resultado final melhor.


Defende que é inevitável um ajustamento macroeconómico forte, mas não está a ser demasiado violento e os efeitos não serão os indesejados?

Compreendo a dúvida e acho que é um tema que merece adequada ponderação. Mas temos que ter consciência do campo de possibilidades nessa discussão. É verdade que um ajustamento excessivamente concentrado na frente orçamental, sem instrumentos compensatórios, e a executar num curto prazo de tempo, pode levar a que se duvide do seu sucesso, ou que este acabe por implicar um esforço muito mais violento do que inicialmente pensado. Nesse sentido, a sua distribuição por um período mais alargado poderia ser uma forma, não só de amenizar as consequências sociais, mas, sobretudo, de garantir o seu sucesso. Mas, para poder estender o prazo de ajustamento seria preciso que os credores oficiais estivessem dispostos a conceder mais crédito. Para além disso continuar a fazer acumular dívida. Por outro lado, é preciso perceber que a experiência das intervenções desta natureza mostra que, quando a pressão se alivia sobre um país em processo de ajustamento, este tende a fugir ao ajustamento.



E esse é o grande receio dos financiadores?

Sim. Que os países devedores apenas queiram mais dinheiro para adiar, ou evitar, o esforço de ajustamento, pelo que dar-lhes mais dinheiro apenas vai servir para prolongar os desequilíbrios sem nada resolver. Portanto, é muito natural que os credores não queiram sequer discutir o alívio de condições sem, primeiro, verem resultados do empenhamento na correcção dos desequilíbrios. Por isso e no nosso caso, acho que o que temos que fazer é o seguinte. Primeiro, dar provas de empenhamento no processo de ajustamento e mostrar resultados desse empenhamento. Para isso é preciso que o PS não comece já a fraquejar o seu empenho, porque isso daria um péssimo sinal aos credores e tornaria mais difícil a sua disponibilidade para o segundo passo. Que é o de, depois de se demonstrar o muito empenho – e o Orçamento de 2012 é, pelo menos, uma prova disso –, fazer a demonstração, tão convincente quanto possível e se for esse o caso, de que o processo como está desenhado não conseguirá dar os resultados pretendidos e poderá ser contraproducente para os interesses de todos, credores incluídos, tentando renegociar o seu reescalonamento. Por fim, desenvolver uma argumentação também muito sólida para contribuir, ao nível das instâncias negociais europeias, para uma solução sistémica eficaz e equilibrada. Mas se não conseguirmos convencer os financiadores, não teremos outro remédio que não seja fazer o melhor possível com o dinheiro que nos é proporcionado.


Roberto Perotti, um dos mais destacados promotores teóricos da ideia de que reduções acentuadas de défice público podem gerar crescimento, veio dizer que tinha "mudado de ideias".

Não dou demasiada importância a isso e nunca fui adepto da tese da austeridade expansionista. Julgo que é geralmente aceite que, no curto prazo, a redução do défice público tem um efeito contraccionista na actividade económica e que, no longo prazo, pode ter um efeito expansionista por libertar forças produtivas da economia. A grande questão é como se gere a ponte entre o curto e o longo prazo e saber se a contracção do curto prazo não tem consequências mais duradouras do que o desejado.


Portugal pode não pagar a dívida com defende o deputado do PS, Pedro Nuno Santos, ou renegociar as condições com os credores?

Poder, pode. Nomeadamente a segunda opção, que, teoricamente, nem me choca. Mas, para explorar qualquer alternativa de acção, temos que equacionar muito bem as suas consequências. Não pagar, ou renegociar a dívida tem como uma das suas consequências a nossa descida para uma espécie de segunda divisão europeia. Deixávamos de pertencer à primeira liga dos países desenvolvidos e ficaríamos com uma marca curricular de que, durante muitos anos, não nos libertaríamos. A mantermo-nos no euro, o que seria difícil, ficaríamos, durante muitos anos, sem acesso ao financiamento de mercado e obrigados a viver dentro da nossa capacidade de gerar riqueza e da ajuda externa que nos concedessem. Ficaríamos, pois, num estatuto de dependência. Quando conseguíssemos regressar ao mercado pagaríamos, durante muito tempo, taxas significativamente mais elevadas do que os países da primeira liga. Se isso nos levasse à saída do euro, as consequências seriam ainda as que já referi. Mas, se não conseguirmos ajustar, poderemos acabar num cenário destes.


Durão Barroso tem contribuído para o tal consenso desejável?

Julgo que o Presidente da Comissão, e a Comissão, tem perdido relevância e foi secundarizado pelo Presidente do Conselho, que tem emergido como uma espécie de ponta de lança do chamado “Directório” e, talvez por isso, tem ganho mais preponderância. O que quer dizer que o processo europeu, pós-Tratado de Lisboa, transferiu poder da Comissão para a instância intergovernamental. Não creio que isso tenha sido benéfico para o bem comum comunitário, mas espero que os entusiastas deste Tratado estejam satisfeitos.


As propostas apresentadas pelo eixo Berlim-Paris vão no bom sentido?

Sim, vão no sentido certo. Apesar do que disse anteriormente sobre o funcionamento da União, as coisas são o que são e, de qualquer forma, essas propostas constituem a única solução que está em cima da mesa. Desejavelmente, soluções mais completas, eficazes e consistentes deviam ter surgido há mais tempo. É óbvio que estamos hoje numa situação complicada, pois se as autoridades quiserem convencer os mercados têm que ter mais poder financeiro para suportar na prática as suas promessas. E aqui a falha tem sido enorme. Têm sido feitas muitas promessas, mas tem sido posto muito pouco dinheiro em cima da mesa, o que sinaliza uma insuficiente convicção. Os mercados percebem que se pressionarem os pontos vulneráveis não há dinheiro para sustentar as promessas políticas, agravando-se o problema.


O que pensa dos que acusam a Alemanha de historicamente se querer afirmar como a potência europeia ?

Para responder à sua pergunta teria que entrar numa divagação histórica e cultural para a qual depois não teria espaço. Prefiro reter a recente afirmação de Helmut Schmit de que a Alemanha precisa de se encaixar na integração europeia “para se defender de si própria!”. Eu sei que não foi a Sra. Merkel a dizê-lo, mas admito que, no fundo, este entendimento seja partilhado.



Esta semana Angela Merkel disse que a união orçamental era “agora irreversível”. Como é que se caminha para uma maior disciplina orçamental e para uma União Monetária sem haver um Estado federal e sem que todos os países estejam de acordo?

O grande receio da Alemanha é o de passar o livro de cheques da sua conta para as mãos de terceiros. Só poderá estar disposta a fazê-lo se puder controlar a capacidade desses terceiros gastarem “o seu dinheiro”. É essa a grande questão que tem que ser rapidamente resolvida e cuja solução, de certa forma, a última cimeira sinalizou. A única forma de estabilizar a crise das dívidas e evitar um


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generalizado é a sua mutualização, que, acredito, acabará, mais tarde ou mais cedo e em formas mais completas ou parciais, por acontecer. Aliás, os empréstimos a Portugal, à Grécia e à Irlanda já são uma forma de mutualização de dívida. Assim como, a dívida que o BCE comprou já está, de algum modo, também mutualizada. Mas voltando à solução, o que a Alemanha precisa, para aceitar ir mais longe na mutualização, é de ter garantias de que isso não vai servir para alimentar a indisciplina financeira e o descontrolo orçamental de alguns países. Por isso, a partilha de responsabilidade pelas dívidas terá que ter, como contrapartida, uma maior partilha da soberania orçamental.

Para si esse caminho é inevitável?

Jugo que sim. Uma das decisões da cimeira é a recomendação para a constitucionalização de limites orçamentais, ou seja, da implementação da condição que permita vir a aceitar-se a mutualização das dívidas. O que está a levar a uma discussão um pouco estéril, porquanto nós já estamos obrigados a esses limites, pelo Pacto de Estabilidade que, constando do Tratado, já nos vincula legalmente.



Não partilha da opinião de que ao aceitar-se essa imposição perdemos soberania?

Não, porque, como já disse, essa exigência não traz nada de substancialmente novo em termos de obrigações legais. Internalizar a obrigação no nosso quadro constitucional, de certa forma, é uma acto mais soberano, pelo menos aparentemente, do que subordinar-nos, para o efeito, ao Tratado. Espero é que a inclusão constitucional de limites orçamentais ou de dívida assegure alguns mecanismos preservadores da eficácia dessa inclusão e da dignidade constitucional. Que não se deixe a porta aberta às habituais chico-espertices da desorçamentação, como tem sido hábito entre nós. Que a violação dos limites tenha consequências e não vejo outras possíveis que não seja a queda dos governantes prevaricadores e a sua inibição temporária. E, por fim, que sejam salvaguardadas as situações verdadeiramente excepcionais. A grande questão, neste caso, é como e quem decide da situação de excepção.


Como e quem deve decidir da situação de excepção?

Para que a situação de excepção seja mesmo excepcional e não se torne num expediente é preciso assegurar que quem sobre ela decide não é quem dela beneficia politicamente. Não deve por isso ser, nem o governo nem a maioria parlamentar de ocasião.


O que é que sugere?

Não há soluções fáceis. Mas julgo que se poderia ir por um de dois caminhos: uma maioria parlamentar de 2/3 ou a decisão unânime de uma espécie de Grande Júri que poderia ser composto, por exemplo, pelo Governador do Banco de Portugal, o Presidente do Tribunal de Contas e o Presidente do futuro Conselho de Finanças Públicas. Ou pelos dois em sucessão.


Concorda com os que defendem que o pacto franco germânico está sustentado em diagnósticos errados e os remédios propostos para resolver a crise europeia não são os adequados a tratar o doente?

Não tenho a certeza de que as instâncias políticas europeias se apercebam verdadeiramente dos riscos que todos corremos e receio que não prestem atenção às semelhanças com os anos 30, podendo levá-las a repetir os mesmos erros de então. Muito em particular, temo que a Alemanha, por qualquer razão traumática que só a psicologia poderia tentar explicar, tenha apagado a memória da depressão dos anos 30, ao mesmo tempo que mantém demasiado viva a memória da hiperinflação dos anos 20 – que hoje acho irrepetível. E que isso conduza a um perigoso enviesamento na análise do problema actual. Mas ao reconhecer isto, insisto mais uma vez: a solução passa por uma negociação dentro da UE. Temos que explicar, dentro da UE, o que é que, no nosso entender, possa estar errado. E o papel do FMI também pode ser importante. Eu preferia que nestes programas de ajustamento o interlocutor fosse apenas o FMI. O FMI está melhor preparado para lidar com estes problemas.


Porquê?

O FMI foi criado para lidar com estas situações, nomeadamente quando estão em causa, como é o caso nesta crise, problemas de balanças de pagamentos. Tem quase 70 anos de experiência, com diversos erros no currículo. E os erros também são uma forma de aprender. E quer o BCE, quer a Comissão, não têm experiência prática de lidar com estas situações. Tornam-se demasiado reféns dos seus quadros teóricos, esquecendo-se que a realidade social é irrepresentável, e que por isso os quadros teóricos nunca conseguem apreender, na sua totalidade, problemas muito complexos dessa mesa realidade. Como dizia um amigo meu, a teoria está certa, mas na prática a teoria é outra.


Há quem defenda que a Europa está dominada por interesses neo-liberais e que o cimento da UE sempre foi a Europa social

A essas ladainhas respondo que não gosto de discutir assuntos religiosos.


Acredita numa Europa a duas velocidades ? Com dois euros?

Do ponto de vista analítico, não se deve excluir qualquer cenário. Quer para os avaliar, quer para nos prevenirmos contra os que são indesejáveis. Mas devemos fazer tudo para evitar essa situação, percebendo o problema e empenhando-nos na sua solução O problema da dívida soberana é apenas o mais urgente da crise da zona euro. Mas não é o mais profundo, nem está na origem da crise. A origem é um problema típico de balança de pagamentos e sobreendividamento externo dos países ditos periféricos. Que muitos consideraram ser impossível dentro do euro e que rebentou quando o financiamento externo secou, como eu avisei no meu livro “Perceber a Crise...”. Sem perspectivas de crescimento, por falta de competitividade, despertou-se a percepção de que os seus níveis de endividamento seriam insustentáveis, fazendo soar as campainhas do risco de crédito. É aqui que entram as agências de rating, como já expliquei, e gera-se uma espiral de subida de juros. A crise das balanças de pagamentos criou, assim, uma crise de dívida. Que se tornou geral porque, entretanto, se constatou que o euro tinha criado uma grande ilusão, a de que o financiamento era feito em “moeda própria”. O que não é verdade. É moeda própria se entendermos por “moeda própria” aquela que é usada nos pagamentos domésticos, mas não é “moeda própria” se a entendermos por aquela que é controlada pelo soberano. Quando os estados nacionais controlam a sua moeda, os governos podem sempre fugir ao


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jurídico, inflacionando a economia. É isso que explica que os países que estão fora do euro, como o Reino Unido, a Suécia, ou a Dinamarca tenham taxas de juro mais baixas.

Pode explicar melhor a sua ideia?

Constatou-se, dentro do euro, que os países se endividam numa moeda que se comporta como moeda estrangeira, porque os soberanos não a podem gerir e por isso as dificuldades em servir a dívida reflectem-se totalmente no risco de crédito. Desde que as dívidas sejam relativamente elevadas, é fácil, nestas condições, criar uma espiral de insustentabilidade: criando-se dúvidas, sobe o prémio de risco, aumentam os custos de financiamento, aumenta a percepção de insustentabilidade, torna-se necessária a austeridade, diminuem perspectivas de crescimento, aumenta o risco, etc. Não será assim para todos, porque dificilmente o BCE poderia deixar a Alemanha ou a França chegarem a uma situação de incumprimento. Mas é assim para a generalidade. E por isso o espectro de insustentabilidade também já paira sobre países fora da dita periferia. Mas não há soluções fáceis, pois a questão central é a falta de perspectivas de crescimento.


Finalmente, vem a pergunta inevitável: como vamos quebrar esta cadeia e sair deste ciclo de empobrecimento?

A solução terá que incluir várias frentes. Por um lado, terá que inverter a percepção de insustentabilidade das dívidas. Isso só se conseguirá com mecanismos que, de uma forma ou de outra, mutualizem as dívidas existentes, como já referi. E com a possibilidade de o BCE actuar como um verdadeiro banco central.


Por outro lado, terá que criar perspectivas de crescimento, sem as quais será difícil tornar as dívidas sustentáveis. Para isso, é preciso perceber duas coisas. Uma, que não é possível generalizar a austeridade a toda a zona euro; alguém terá que expandir a procura interna. O que requer uma grande coordenação macroeconómica e o reconhecimento – clássico! – de que os persistentes excedentes de balança de pagamentos são tão desestabilizadores quanto os défices. Outra, que um aperto simultaneamente orçamental – se todos os países forem incentivados à austeridade – e monetário – decorrente da actual fragmentação da união monetária e da obstinação do BCE com o risco da inflação, só poderá conduzir a uma recessão geral.


Por fim, é necessário, e urgente, recuperar as condições de competitividade da dita periferia, para que esta possa retomar o caminho da convergência real. Para isso, estes países terão que empreender profundas reformas estruturais, para flexibilizar as suas economias, e terão que conseguir desvalorizar a sua taxa de câmbio real. Só a Irlanda parece estar a fazê-lo.


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