Torne-se perito

Depois da rendição, "chamavam-me cobarde e traidor todos os dias"

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Augusto Monteiro, António Duarte e Fernando Filipe na Arrábida dr
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Augusto Monteiro, António Duarte e Fernando Filipe na Arrábida dr

Receberam ordens para baixar as armas, viveram em campos de concentração, e foram humilhados à chegada. Ainda hoje há quem lhes chame traidores

David contra Golias, um elefante contra uma formiga, ou 45 mil homens bem artilhados contra 4500 munidos de armas obsoletas. A guerra em Angola tinha começado e Salazar não queria maus exemplos: os soldados portugueses tinham que lutar até à última gota de sangue para defender o Estado português da Índia. "Apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos", disse ao último governador de Goa, Vassalo e Silva. Mas o general desobedeceu.

Durante cinco meses, os militares ficaram em campos de concentração indianos. E o inferno não estava aí. Esperava-os no regresso a Portugal.

Augusto Monteiro, 72 anos, primeiro-soldado condutor. António Duarte, 73 anos, primeiro-cabo automotorista. Fernando Filipe, 73 anos, soldado radiotelegrafista. Os três estão reunidos em casa de Augusto, perto da Arrábida. É Fernando Filipe quem traz livros, revistas, fotografias e mapas, que espalha em cima da mesa.

Eram jovens de pouco mais de 20 anos, e achavam que iriam simplesmente prestar o serviço militar em Goa. Ninguém lhes falava em guerra. A cartilha entregue à partida, Rumo à Índia, dava conselhos e dizia que a sua missão não era "isenta de dificuldades. Mas, se vos conduzirdes como um bom soldado e homem de bem, vereis que ela será fácil". Também dizia: "É vosso dever: garantir, a todo o custo, a manutenção da nossa soberania em Goa, Damão e Diu". A história que agora contam é como um puzzle e cada um vai colocando as suas peças, ora à vez, ora ao mesmo tempo.

"Apanhámos o "barco do sofrimento" no dia 26 de Abril [de 1960] no cais de Alcântara. A viagem foi o pior que se pode imaginar. Pessoas num quarto andar do barco, lá para baixo, uns em cima dos outros, a dormir e a vomitar. Só havia ar lá dentro quando havia bom vento, que soprava pelos tubos de lona... Quando o barco balançava, tínhamos que ser equilibristas. Apanhei uma intoxicaçãos... Não fazíamos a mínima ideia do que esperar".

Ao início, não correu mal. "Comentávamos uns com os outros que, se não fosse a invasão, tínhamos lá passado umas ricas férias", diz Filipe.

Não eram os únicos. Diogo André Sousa, 72 anos, ex-soldado de cavalaria, partiu a 11 de Maio de 1961 para Goa. Foram os mesmos 16 dias de viagem no Timor. "Dormia numa pensãozita [em Panjim]. Estávamos sempre na paródia, íamos ao cinema", ou para os copos. Até que, por volta de Agosto, Setembro, "a malta percebeu nas entrelinhas que eles iam atacar. Havia aquelas infiltrações no nosso território, os tipos que estavam na fronteira contavam que, de vez em quando, havia tiros". Diz Fernando Filipe: "Os aviões faziam voos picados sobre os postos. Tínhamos que comunicar para a sede. A resposta era sempre a mesma: "Tenham calma que isto não sucede nada"." Mas sucedeu.

A 18 de Dezembro, faz hoje 50 anos, o Exército indiano, com o apoio da Marinha e da Força Aérea, invadiu Goa, Damão e Diu sem resistência. Do lado português, 4500 homens (soldados e polícias), com um armamento obsoleto, sem aviação e limitados a um vaso de guerra por distrito, nada podiam contra os 45 mil soldados indianos.

Os indianos pretendiam sobretudo intimidar e cortar as linhas de comunicação, provocando a desorientação nos militares portugueses. Nunca um confronto directo com as tropas.

Jaime Reis, 72 anos, ex-soldado condutor, considerava-se um bom atirador. Mas, em Goa, até contra as garrafas falhava. Ou julgava que falhava. "As munições estavam deterioradas", diz. "Os soldados tinham uma Mauzer da II Guerra... Dava-se um tiro, tinha que se abrir tudo, deitar fora, recarregar, dar outro tiro". Para fazer frente à invasão, recebeu 70 balas. "Aquilo à cacetada dava, com as coronhas de madeira, mas ao tiro não havia hipótese!".

A estratégia portuguesa foi de terra queimada. Diogo Sousa refere que as estradas "estavam todas minadas" para as tropas indianas não avançarem. Por isso "íamos pelas bermas. Ouviam-se estrondos das pontes deitadas abaixo [pelos portugueses]. Tirávamos o óleo dos carros para eles não usarem o nosso material". "O nosso ferro-velho", dirá Jaime Reis. O ex-soldado condutor esperava instruções à saída de uma povoação, debaixo de uma sombra, quando o comandante deu ordens para ir a uma casa pedir água. Veio a água e chá com leite. "Naquele dia, ainda não tínhamos comido nada", diz. A dona da casa recusou agradecimentos: "Sou uma mulher portuguesa, estou a fazer a minha obrigação", respondeu, para comoção de todos. "O reverso da medalha foi a guerra", emociona-se. Quando a ponte que lhes coube armadilhar finalmente explodiu, os vidros e as telhas da casa saltaram.

As forças indianas não estavam a disparar contra os soldados portugueses, mas houve sustos. Augusto Monteiro lembra-se que, "na operação de recuo, houve actuação dos meios aéreos indianos, que picavam as nossas tropas". António Duarte levanta a camisa de xadrez e mostra pequenas cicatrizes nos braços, deixadas por estilhaços de explosões quando estava no alto de Mormugão.

"Declaro que me rendo"

Carlos Abrantes, 76 anos, então alferes, nem chegou a encontrar-se cara a cara com os soldados indianos. "Não sabíamos que eram 40 mil, achávamos que era taco a taco".

Na manhã de 19 de Dezembro, o governador e general das tropas portuguesas não vê outra saída que não esta: "Declaro que me rendo incondicionalmente". A palavra "rendição" nunca chegou à televisão portuguesa.

Augusto Monteiro: "Vassalo e Silva tinha assumido não acatar ordens de Lisboa que pressupunham que morreríamos todos e agora éramos uns heróis." Diogo Sousa: "Éramos uma ninharia, uma gota de água no oceano".

Foram necessárias apenas 36 horas para Goa mudar de mãos e acabar com 450 anos de domínio europeu. Vinte mortos do lado português, admite o relatório da invasão; 21 do lado indiano.

A bandeira branca estava bem à vista, à espera que os indianos viessem. Jaime Reis, como os outros, foi obrigado a ficar sentado durante horas com as mãos acima da cabeça.

Entre 19 e 20 de Dezembro, todos os militares, incluindo os de Damão e Diu, foram reagrupados em pelotões para marchar até aos quatro campos de concentração criados pelo Exército indiano: Navelim, Pondá, Alparqueiros e Forte da Aguada.

Segundo o historiador indiano R.P. Rao, as forças indianas fizeram prisioneiros 201 oficiais do Exército, 13 da Marinha, 19 da polícia, 2596 soldados e 275 polícias.

Vassalo e Silva recusou voltar a Lisboa sem os seus homens. Ficou numas instalações, com dois ajudantes, em frente ao campo de Pondá; mas raramente se dirigia às suas tropas.

António Duarte: "Fomos amarrados costas com um cordão com TNT, até ao porto de Vasco da Gama. Um dia depois, fomos levados para o campo de concentração de Alparqueiros".

"Levaram anéis, relógios, ficámos sem marmitas, colheres, cantis, sem nada", recorda Jaime Reis. Descreve Diogo Sousa, preso em Pondá: "Alimentação: cinco estrelas a partir de baixo. Arroz, arroz, arroz, massa, e não passava daquilo." "Cinco meses sempre com os mesmos calções e a mesma comida", conta Fernando Filipe. "Água com feijão frade e um naco de pão para todo o dia. Quem o comesse ao pequeno almoço, ao almoço e ao jantar mastigava a saliva". O lençol era duas toalhas amarradas e uma saca de serapilheira tapava do frio.

Carlos Abrantes guarda ainda o garfo que fabricou para conseguir comer, pela primeira vez ao fim de três dias: um pequeno pedaço de madeira com arame já ferrugento. "Dormíamos agarrados uns aos outros porque estava um frio tremendo", conta.

Augusto Duarte: "Dormi o tempo todo em cima de uma maca que todos os dias sacudia cá fora por causa dos percevejos." "Nos primeiros dias, achámos que nos iam meter em camiões de transporte de minério e depois em barcos para o Paquistão. Depois percebemos que não íamos sair de lá tão depressa", diz Jaime Reis.

As forças indianas aproveitaram para pôr presos a trabalhar na reconstrução do que se tinha destruído.

Alguém no campo de Carlos Abrantes conseguiu levar um rádio dividido em peças, que escapou ao controlo dos indianos: "Um levava uma pilha, outro outra; quem melhor sabia inglês ficava a ouvir a BBC para depois transmitir aos outros."

Em Portugal, já os combates tinham terminado e os jornais diziam que o sangue corria nas ruas de Goa. As famílias dos soldados choraram a sua morte. Do outro lado, o blackout foi ainda mais duradouro. "Não sabíamos nada do que se estava a passar, se havia ou não negociações a decorrer", continua Reis. "E um soldado não podia dirigir-se a um sargento para perguntar isto ou aquilo."

"Chegámos a convencer-nos de que eles [autoridades portuguesas] nos iam lá deixar. Só acabaram por fazer alguma coisa porque foram pressionados. Esqueceram-se de nós", lamenta Augusto Monteiro. "Nós não pensávamos que estávamos a ser vítimas do regime, castigados", confessa Jaime Reis. "Não pensei que Portugal não me quisesse. Sempre cumpri ordens."

A 21 de Dezembro, o Ministério indiano dos Negócios Estrangeiros escreve uma nota a Lisboa a informar que não pretende ficar com os soldados reféns, bastando para isso que os indianos presos nas colónias portuguesas em Moçambique (a retaliação de Salazar) sejam também libertados. A 30 de Janeiro, o regime aceita a repatriação dos civis portugueses em troca da libertação dos indianos. Mas os militares ficariam ainda nos campos, ignorados pelo Governo.

A 6 de Abril, Nehru comunica que "já não pode manter o pessoal português por muito tempo em Goa" e que, se Portugal não vier buscar os seus soldados, os levará para outro local da Índia. A 13 de Abril, a rádio anuncia o repatriamento.

"Dois dias antes [da saída], fomos levados para o aeroporto", conta Jaime Reis. "Puseram lá uma piscina de plástico para o pessoal tomar banho, deram botas, camisa e calções a cada um."

Dois aviões franceses fizeram a ponte entre Goa e Carachi, de lá os navios Vera Cruz, Pátria e Moçambique levariam os soldados para Lisboa.

O último governador de Goa foi o último a deixar o território. Como os outros, não foi recebido com festa. "A nossa esperança é que chegávamos a Lisboa e tínhamos autorização para nos juntarmos à família", conta Monteiro. Não foi isso que aconteceu. Uns saíram do barco para o comboio, outros para um autocarro, para se apresentarem nas suas unidades.

Carlos Abrantes não duvida que "a punição foi à chegada a Lisboa... O desembarque foi impressionante. Estava cheio de polícias e GNR armados com metralhadoras... Sentimo-nos prisioneiros no nosso próprio país". "Foi miserável, não se faz nem a um cão." António Duarte: "Não podíamos falar com ninguém... Estive quase um mês no hospital, chamavam-me cobarde todos os dias, traidor." Filipe: "Nos locais de trabalho, havia sempre um pide à espera."

Jaime Reis queria um emprego, mas tudo estava controlado pela câmara. "Um dia, o presidente lá me atendeu, mas foi para me chamar cobarde." Ainda hoje, ou melhor, no último 10 de Junho, houve militares que se referiram aos soldados que estiveram na Índia como "esses cobardes", diz Reis.

Vassalo e Silva - "Vacilo e Salvo-me", como alguns ironizavam depois - foi expulso das Forças Armadas e só seria reintegrado depois do 25 de Abril, aos 75 anos. Dez oficiais foram demitidos, cinco passaram à reforma compulsivamente e nove foram declarados inactivos durante seis meses. Os restantes foram ilibados.

Augusto Monteiro: "Curiosamente, aconteceu um fenómeno: a maior parte de nós ficou apaixonada por Goa."

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