O Regresso do Homem do Guarda-Chuva

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As especulações sobre o mítico "Umbrella Man" contaminaram durante anos as teorias acerca do assassinato de Kennedy

A noção de que "mais factos" implicam "menos incerteza" e menos espaço para os instintos paranóicos é bastante inocente. Do enigma "Umbrella Man" ao caso Dominique Strauss-Kahn, a teoria da conspiração soma e segue.

A primeira vez que ouvi uma teoria da conspiração digna desse nome foi em Janeiro de 2002. Na altura vivia num amorfo subúrbio de Birmingham, no Reino Unido, onde alugara casa a uma família muçulmana, de quem me tornei vizinho e inquilino durante seis meses. Isto foi unanimemente interpretado (por mim próprio) como um gesto de grande coragem, com potenciais repercussões internacionais; vivia-se, por motivos óbvios, um período em que qualquer contacto intercultural dramatizava numa escala reduzida importantes tensões geopolíticas. Naturalmente, dediquei os primeiros dias de convívio cauteloso a averiguar se os meus exóticos vizinhos planeavam matar-me com bombas e destruir a civilização ocidental. Depois de recolher dados suficientes para descartar essa possibilidade, passei ao estágio seguinte: demonstrar com a maior frequência possível os meus liberalíssimos instintos multiculturais, um delicado equilibrismo que consistia em praticar vários actos conspícuos de tolerância por dia, ao mesmo tempo que transmitia a ideia de que esses actos conspícuos de tolerância eram naturais e não exigiam qualquer esforço deliberado da minha parte. Foram dias ridículos.

Felizmente para todos os envolvidos, o meu saudoso senhorio (chamava-se Mohammed Shah) depressa percebeu a natureza destas inofensivas contorções e tolerou todas as minhas gaffes com bonomia e irrepreensível sentido de humor. Uma vez apontou um esplêndido exemplar do Corão na prateleira mais alta da sua sala de estar e revelou que aquele exemplar estava na sua família há perto de 300 anos. Instintivamente, toquei a lombada do livro com as pontas dos dedos, ao que ele fez um súbito e extremamente plausível esgar de choque, dizendo-me com toda a solenidade que o livro sagrado era agora impuro e teria de ser destruído. Permitiu-me 30 segundos de pânico gaguejante antes de soltar uma gargalhada.

Foi o irmão mais novo de Mohammed, que estudava na Universidade de Birmingham, quem partilhou comigo a teoria da conspiração. Durante uma visita, deparei com ele a ouvir a gravação áudio de uma "palestra" dada num qualquer clube recreativo paranóico. Era o caos epistemológico habitual: a grande conspiração sionista, a gigantesca fraude do Holocausto, os judeus organizaram os atentados de 11 de Setembro, etc. Ansiosamente preparado para o pior, tacteei uma conversa de circunstância até ter oportunidade de manifestar as minhas dúvidas; alguma daquela informação, confessei (com imenso tacto), parecia-me exagerada. A sua resposta foi mais ou menos isto: "Exagerada? Como, exagerada? O gajo é um lunático completo. Aquilo não tem pés nem cabeça".

A tarefa - vim a saber - fazia parte de um projecto universitário, dentro do qual os alunos recolhiam da Internet exemplos de extremismo ideológico, e posteriormente acumulavam os factos e argumentos necessários para rebater esse extremismo. Fora pensada por um professor de Sociologia que garantira aos alunos, com optimismo panglóssico, que a crescente democratização e acessibilidade da informação iria a médio prazo neutralizar todos os instintos paranóicos. No dia em que todas as pessoas tivessem ao seu dispor todos os factos sobre todas as situações, deixaria de haver espaço para explicar as lacunas de conhecimento com aberrações da imaginação.

Não me recordo se achei esta teoria plausível na altura, mas, hoje, a ideia de que o mero progresso tecnológico é capaz de suprimir instintos ou emoções parece-me bastante inocente. O instinto para sistematizar teorias da conspiração é um modo de observar e organizar o mundo; confrontado com informação adicional, ou com inovações técnicas, o mais provável é que esse instinto as adicione ao modelo preexistente.

A noção de que "mais factos" implicam "menos incerteza" é involuntariamente refutada num artigo recente publicado no "New York Review of Books". Assinado por Edward Jay Epstein (um medalhado veterano da escola de jornalismo assente no pressuposto de que nada é aquilo que parece), o artigo recapitula, em pura torrente factual, o dia em que Strauss-Kahn foi detido em Nova Iorque. O artigo ganhou ressonância mediática com a revelação de que dois funcionários do Sofitel são vistos, numa das imagens de videovigilância a que o jornalista teve acesso, a encenarem uma efusiva "dança de celebração" à porta do escritório onde a camareira acabara de relatar a sua versão dos acontecimentos. Epstein indexa essa "celebração" a um sortido de mapas e plantas, horas e minutos, registos telefónicos e percursos de táxi, acrescentando sucessivas camadas de irrelevância à confusão geral, no topo da qual fica uma cereja de néon: "Não é claro o que é que os dois homens estavam a festejar". Não é, de facto, claro. Mas todo o artigo de Epstein implica que o motivo é sinistro.

A imagem provoca uma inquestionável reacção de estranheza: dois homens adultos a dançarem num vídeo soluçante e sem acompanhamento sonoro, à porta do gabinete onde o futuro político de um provável candidato à presidência francesa se estava a desmoronar. No seu tratado sobre comédia, Bergson utiliza uma imagem curiosa para ilustrar o mecanismo do riso: "Observe-se a vida como um espectador desinteressado e muitos dramas se transformam em comédia. É suficiente taparmos os ouvidos ao som da música num salão de baile para que as pessoas a dançar pareçam automaticamente ridículas". Ridículas ou sinistras, comédia ou conspiração: a conclusão depende do investimento do "espectador desinteressado". Ao partir de uma premissa que nunca chega a enunciar - houve conspiração -, Epstein cria uma atmosfera em que cada facto adicional por explicar reforça a percepção de que algo insidioso ocorreu. A ideia de que os homens a dançar celebravam algo relacionado com Strauss-Kahn não é mais nem menos provável do que a ideia de que recordavam uma noite de copos ou partilhavam um resultado desportivo. Acredito que se houvesse câmaras de circuito fechado espalhadas por Camarate em 1980, dois desgraçados apanhados a festejar uma vitória do Benfica ainda hoje fossem objecto de comissões de inquérito. A imagem não prova nem refuta a culpa de Strauss-Kahn nem a possibilidade de uma conspiração - mas expõe os limites do método dedutivo para atingir a verdade, não apenas quando não tem todos os elementos à sua disposição, mas também quando não consegue distinguir os elementos relevantes dos irrelevantes.

Curiosamente, na mesma semana em que o artigo foi publicado, passaram 48 anos do assassinato de John Kennedy - um dos crimes mais documentados da história e sobre o qual um consenso se recusa a formar. A efeméride foi evocada pelo documentarista Errol Morris com uma curta-metragem para o site do "New York Times" sobre o mítico "Umbrella Man": uma figura representada em várias fotografias, de guarda-chuva aberto, posicionado à berma da estrada no lugar preciso onde Kennedy foi alvejado com o tiro fatal. Durante anos, a sua presença alimentou dúzias de especulações mórbidas: era um dia de sol, e o único homem com um guarda-chuva em Dallas aparece convenientemente no sítio certo - o sítio certo para servir de mira técnica aos atiradores, talvez. No filme de Morris aprendemos que o homem foi identificado 15 anos mais tarde. Chamava-se Louis Steven Witt, e fora a Dealey Plaza nesse dia fatídico para protestar silenciosamente contra as alegadas tendências apaziguadoras de Kennedy em relação a Cuba, levando para o efeito um guarda-chuva preto. Porquê um guarda-chuva preto? Porque era esse o acessório que os cartoonistas da época usaram para retratar a capitulação de Chamberlain (o apaziguador por excelência) em Munique. O pai de Kennedy era o embaixador americano em Londres na altura, e fez parte das negociações. Subitamente, tal como Bergson previra, sem banda sonora inquietante e sem a cacofonia das expectativas prévias, o homem do guarda-chuva deixa de ser sinistro e passa apenas a ser ridículo: um figurante a tropeçar na História. Como diz Josiah Thompson, o investigador entrevistado por Morris: "Se temos na nossa posse um facto que acreditemos ser obviamente sinistro, é melhor esquecer, porque nunca conseguiremos imaginar todas as explicações perfeitamente válidas e não-sinistras para o mesmo".

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