O jurista que queria democratizar a ópera

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Serra Formigal e Gino Bechi em Verona, 1986. Fotografia publicada na Revista São Carlos, em 1988 cortesia são carlos
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Serra Formigal e Gino Bechi em Verona, 1986. Fotografia publicada na Revista São Carlos, em 1988 cortesia são carlos

Fundador da Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade e administrador do São Carlos, Serra Formigal preocupou-se em alargar os públicos e em garantir estabilidade profissional aos cantores portugueses

Melómano apaixonado pelo universo lírico e detentor de uma sólida formação musical, José Manuel Serra Formigal, que morreu no dia 11, aos 86 anos, teve um papel decisivo na tentativa de democratização do acesso à ópera e na formação e profissionalização dos cantores portugueses. O processo de criação da Companhia Portuguesa de Ópera (CPO), que fundou no Teatro da Trindade em 1963, em Lisboa, não foi isento de tensões internas e externas nem de algumas polémicas, mas constituiu uma alternativa ao quase monopólio do Teatro Nacional de São Carlos, que o próprio Serra Formigal viria também a dirigir nos anos de 1980.

Nascido em Bordéus a 9 de Fevereiro de 1925, Serra Formigal formou-se em Direito, dedicando-se paralelamente à música. Estudou violino e canto com Maria Amélia Duarte de Almeida e Fernando de Almeida e chegou a actuar no São Carlos em pequenos papéis operáticos sob a direcção de Pedro de Freitas Branco e Antonino Votto. Antes de ser nomeado pelo ministro Gonçalves Proença como director do Teatro da Trindade - adquirido em 1962 pela antiga Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), hoje INATEL - Serra Formigal foi subdelegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência em Vila Real e Aveiro, juiz titular do Tribunal de Trabalho de Lisboa, director da Junta de Acção Social e director de programas musicais da Emissora Nacional entre 1960 e 1962.

Como director do Teatro da Trindade criou, em 1963, a CPO com o objectivo de criar condições de estabilidade profissional e artística aos cantores líricos, formar novos cantores e proporcionar ao público da classe média e baixa espectáculos de ópera e opereta populares a preços acessíveis. Formava-se assim um contraponto ao São Carlos, que apresentava alguns artistas internacionais de prestígio e era frequentado pelas classes altas, com traje de gala obrigatório.

Em associação com a CPO, Formigal criou ainda um Centro de Preparação e Aperfeiçoamento de Artistas Líricos, que teve como principais formadores o tenor Tomás Alcaide e o barítono Gino Bechi.

Óperas populares

Na companhia do Trindade profissionalizaram-se Elysete Bayan, Elsa Saque, Helena Pina Manique, Isabel Malaguerra, Fernando Serafim e José Oliveira Lopes, entre outros. Foram aproveitados recursos como o coro e maestros ensaiadores do São Carlos (Mario Pellegrini e Carlo Pasquali) e maestros como Álvaro Cassuto, Jaime Rodrigues Silva, Manuel Ivo Cruz e Joaquim da Silva Pereira. Eram apresentadas quatro ou cinco óperas por temporada e foram realizadas digressões no país e no estrangeiro. O repertório tinha como base as óperas mais populares do repertório francês e italiano do século XIX e incluiu também obras de compositores portugueses, cantadas em português.

Segundo o sociólogo Nuno Domingos, autor do livro A ópera do Trindade: o papel da Companhia Portuguesa de Ópera na "política social" do Estado Novo , da Lua de Papel/INET, a programação da FNAT "além de indicar um reposicionamento da política cultural do regime face às finalidades da política social, redimensionou a estrutura do campo operático em Portugal".

O Trindade "criou uma estrutura de oportunidades essencial para a carreira de uma série de agentes artísticos portugueses e iniciou uma incontestável democratização geográfica e social da ópera", mas também como, "à luz dos critérios de apreciação dominantes, nunca deixara de ser um "teatro de segunda", bastante conservador" no que diz respeito ao repertório e ao papel das encenações, continua o autor.

Rebatendo o que alguns jovens críticos da época, incluindo o musicólogo Mário Vieira de Carvalho, consideravam um "italianismo comum e rotineiro" nas programações da CPO, Serra Formigal escreveu, no posfácio do livro de Nuno Domingos, que se tratava de um repertório constituído por "obras-primas de nomes indiscutíveis da literatura operática", "tendo em atenção o público a que se dirigia e que se pretendia conquistar e fidelizar".

A companhia viria a ser extinta pouco depois do 25 de Abril. Anos mais tarde, entre 1981 a 1988, Serra Formigal viria a ocupar os cargos de presidente do conselho de gerência e de administração do São Carlos, onde criou também uma companhia residente.

Nesse período, o teatro teve como directores artísticos Mário Moreau (1982-84) e João de Freitas Branco (1985-88) e foi também nessa época, em 1985, que a Companhia Nacional de Bailado foi integrada no São Carlos. Na sequência dos projectos de Serra Formigal foram estreadas várias óperas, havendo, em geral, dois elencos para cada produção: um com cantores estrangeiros, outro com portugueses.

Serra Formigal manteve-se fiel às suas convicções, deixando no final do texto que escreveu para o livro de Nuno Domingues uma questão de particular actualidade: "Partindo do princípio de que é socialmente importante a democratização da ópera, de forma a constituir um serviço cultural regular ao dispor da generalidade da população, e tendo em atenção as condições concretas do país que somos e temos, quais os meios e processos a implementar para, de uma forma adequada e realista, se atingir essa finalidade?".

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