Para as viúvas das Caxinas o preto é luto mas pode ser sinal de emancipação
São figuras de um negro absoluto. Para a maioria, a viuvez, como o casamento, é para o resto da vida. É aculturação, mas também é um estatuto social que lhes garante respeitabilidade. E alguma liberdade dentro daquela que é a maior comunidade piscatória do país Natália Faria (texto) Paulo Pimenta (fotografias)
cFigura de um preto absoluto, Dores Arteiro agarrou-se ao negócio da venda do peixe quando o homem lhe morreu, já lá vão cinco anos. O luto, além de lhe perpetuar a memória, foi um hábito que lhe ficou. E, ao mesmo tempo, é um aviso para afugentar potenciais interessados em ocupar-lhe o lugar. "Aturar outro? Aturou-se o primeiro e chegou. Um dia era a camisa que não estava bem passada, no outro os vincos das calças que não estavam bem feitos. A gente a querer comprar uns sapatinhos para o neto e ouvia logo "Ai estás a comprar sapatos?". Uma pessoa assim ao menos é livre".
Sê-lo-ia mais se a freguesia deste mercado nas Caxinas, Vila do Conde, fosse mais assídua. Hoje, há robalo a 12 euros o quilo. Também há raia a seis e faneca a 4,5 euros. Clientes é que nem por isso. "Vinham fregueses de Guimarães, Santo Tirso, Porto, mas agora com as [portagens nas] Scut pagam um dinheirão e já não vêm". Vai-lhe valendo o filho que também vai agora para o mar. "Eu bem não queria, mas agora os nossos filhos não têm emprego em terra, tem que ser o mar. Nas fábricas está tudo fechado, para trolha não há porque os bancos não dão empréstimos. Ele andou nas escolas e tirou o curso de electricista mas aí só se tiver uma cunha, porque eles só os querem para estagiar. Eu não apoio, mas ele já fez 18 e quer regalias que uma mãe sozinha não consegue dar".
A inevitabilidade do mar repete-se no discurso dos habitantes deste lugar. É espreitá-lo ao fundo, águas tingidas pelo brilho do sol, a fingir ignorância dos tantos abismos que abriu no peito das suas viúvas. Caxinas, Vila do Conde. Alguns prédios - nenhum sem pretensões de arranhar o céu - e muitas casas de pescadores. A contabilidade do lugar faz-se pelas palavras do padre Domingos Araújo. "Em 35 anos enterrei 92 pescadores". Nas cerca de 4200 famílias que aqui vivem, é rara a que não ostenta os retratos de homens mortos no mar. Muitos balouçam-se no peito das suas viúvas, presos por fios de ouro. É vê-las, passo miúdo, nos passeios que também são extensões domésticas. Aqui se põe a roupa a secar, ali se faz tricot e desfia a vida com quem calhar estar com tempo para ouvir.
Ao fundo, a famosa igreja em forma de barco, Senhor dos Navegantes, que outro nome lhe haveriam de dar. Detenhamo-nos na que tem o Cristo-Rei, que é onde está Alzira Pontes Flores, viúva há 24, repare-se nas duas alianças que ainda traz nos dedos a atestar a sua condição. "Ando de luto já por um andar, porque não me dá para vestir roupa de cor", introduz. "Prefiro-me de preto, sinto-me bem e ando, para mim é uma forma de guardar o sentimento". Quando o mar lhe roubou o homem, tinha 41 anos. Não lhe faltaram pretendentes à porta, dois com anseios conjugais. Despachou-os. "Disse-lhes "Desapareçam, não quero voltar a casar nem namorar nem nada. Quero estar livre e pronta para a minha casa e para ajudar os meus filhos e os meus netos naquilo que for preciso"". E decorridos este anos todos a solidão não pesa? "Eu arrefeci de uma maneira que nunca mais me apeteceu. Namorei sete anos, estive casada 18 e, portanto, foram 25 anos a lidar com o meu marido. Trabalho já eu tenho que chegue, ia-me pôr-me agora a aturar e a passar as camisas e as calças sabe-se lá de quem".
Ajuda "nas coisas dos pobres" há 20 anos, faz limpeza na tal igreja dos Navegantes, cuida dos netos, vai ao cemitério dia sim dia sim, integra o Movimento Esperança e Vida que o pároco Domingos Araújo importou de França para impedir estas mulheres de se enterrarem em vida. "Somos um grupinho jeitoso, à volta de 45 ou 46 viúvas. Juntamo-nos no terceiro domingo de cada mês", conta Alzira. "Ajudam nas causas de bem-fazer e por isso são um autêntico património para a freguesia", confirma o pároco. Se algumas recusam desamarrar o nó do luto, não se lhe atirem a ele as culpas. "São mulheres que sentem que ser fiéis ao marido é guardar o seu estatuto de viúvas no sentido mais longo e se calhar até para sempre. Não as incentivo, pelo contrário, costumo até pedir-lhes que aliviem um bocadinho o luto. O preto fica bem a toda a gente mas, convenhamos, estar a celebrar missa e olhar para a assembleia e ver aquele negrume todo não é nada simpático. Aliás, costumo dizer-lhes - um pouco na brincadeira, mas é assim que se dizem as verdades - que se algumas delas voltarem a casar faço o casamento de graça e até lhes dou uma prenda".
Licenciada em Filosofia, Clara Costa Oliveira anda há vários anos a estudar estes temas do luto e do sofrimento e, também pelo que conhece destas mulheres das Caxinas, recusa a associação directa entre o preto e o sofrimento. "As pessoas tendem a achar que isto de vestir de preto é uma coisa horrorosa e uma forma de prolongar o sofrimento, mas muitas vezes é exactamente o contrário: o vestir de preto é uma forma de assumir o luto com saúde, se não o fizessem é que estas mulheres se iriam sentir mal, porque aqui o luto é também uma forma de integração social", explica.
Vestir de preto pode ser uma forma de estas mulheres se reposicionarem no xadrez social? "Pode. E a decisão de prolongar o luto por muitos anos pode ser uma forma de integrar o passado na sua vida presente com visibilidade, o que pode significar que, apesar do que lhes aconteceu, estas mulheres já se conseguem projectar no futuro". Conclusão óbvia: "Medir a patologia do luto pelo preto é muito redutor", insiste esta professora da Universidade do Minho. Segunda conclusão, não tão óbvia assim: "É possível que o vestir de preto dê a estas mulheres um estatuto de respeitabilidade na comunidade que elas não querem abandonar".
De resto, enquanto "num meio urbano se tende a camuflar a morte o mais possível", num local como as Caxinas as pessoas são forçadas a encarar a morte como "algo tão normal quanto o nascimento". E não se veja no ritual de visitar o cemitério todos os dias um hábito nefasto. "As pessoas vão à campa pôr flores e tendemos a encarar isso como um relembrar contínuo do sofrimento quando, na verdade, esse processo de ritualização permite que a pessoa avance". Pode ser. Mas no entra-e-sai constante do cemitério, o coveiro Joaquim Oliveira chegou a estranhar o hábito destas mulheres colocarem lápides alusivas a mortos cujos corpos nunca recuperaram. Hoje, não. Move-se com ares de familiaridade entre as cerca de 900 campas. "Esse é dos que nunca apareceu". E aponta a placa onde se lê "O mar meu amor levou mas Deus comigo ficou/ Tenho força vou lutar/ João, tu vais-me ajudar". É uma lápide com azul, gaivotas, golfinhos e um barco. Está ali desde 2006, que foi quando ocorreu o naufrágio do Luz do Sameiro. A esta hora, meio da tarde de quarta-feira, há várias mulheres aqui. Acendem velas, lavam as campas com água, ajeitam flores. Não é raro os jornais e as televisões entrarem aqui, fazerem alarido com o alarido dos funerais que os naufrágios trouxeram à tona das notícias, e depois o que resta é esta promessa de eterna saudade. Há o António Maravalhas que o mar engoliu com o navio Capitão Ferreira. Também aqui está o náufrago do Noites de Luar que no dia 29 de Abril de 2010, ainda não passaram dois anos, amarrou Mercedes André ao preto. "Morreu a 500 metros da costa. Veio uma onda maior e o barco virou. Estas coisas quando acontecem não olham ao tempo nem ao lugar". Apanhamo-la numa esquina a vender peixe. Cabelo afastado da testa por dois travessões, mãos resguardadas do frio nos bolsos largos do avental, um olho na estrada para garantir que a polícia não a expulsa dali. Figura de um negro absoluto como as outras, Mercedes divide-se entre as limpezas e a venda do peixe que o filho não entrega na lota. Atribui a morte do seu homem ao desígnio de uma realidade indecifrável. "A gente vê-os sair para o mar e é um sair sem nunca saber se voltam. Mas a vida é assim, os trolhas morrem nas obras, os mineiros nas minas. Dá um bocadinho de revolta mas tem que se aguentar. O destino de cada um já está marcado". E depois, entre apelos de "ó amor queres besugo?", garante, 48 anos, que os vindouros hão-de ser de viuvez. "Não é de criticar aquelas que casam outra vez, mas eu fui mulher de um homem só. Namorei aos 14, casei aos 16, foram 31 anos de casamento. A gente sabe o que tem, não sabe o que pode encontrar".
Deixemo-la a atestar a frescura do seu peixe, para mergulhar com Emília Gomes da Silva - Emília Balé, como a tratam por estas bandas - nos abismos abertos pelas tempestades. "Quando os barcos estão no mar a gente vai para a cama dormir e não dorme. Estamos sempre "Aiiii que está tanto vento. Aiiii que o barco está no mar". É uma aflição, mas uma aflição daquelas que a gente nem sabe onde se meter". Foi assim enquanto o seu marido, que agora mostra no medalhão que traz ao pescoço, andou no mar. É assim agora que a filha tem lá o dela. "O meu marido [que acabou por falecer em terra] esteve para ser apanhado duas vezes, mas, Graças a Deus, saiu vivo. Mas é uma aflição quando não sabemos onde eles estão, sofremos muito, muito". Por isso é que quando chegou a notícia de que os seis pescadores do último naufrágio tinham escapado com vida, as televisões a apanharam no meio da multidão, mãos apontadas ao céu, a bradar "Ai Meu Deus, que temos que fazer uma festa". "E é bem caso para fazer uma festa", mantém. "Uma festa rija, porque aquilo foi um euromilhões que saiu". Ainda agora se alegra quando fala disso. "Caxinas é uma família e sentimos todos uns pelos outros". Na alegria e na tristeza, não é assim que usa dizer-se? "Havia de ter visto a igreja na missa de agradecimento que se fez. Cheiinha, cheiinha, para cima de três mil pessoas, fora os que não couberam. Saí dali consolada".
Porque é de uma família que se trata e se calhar porque, como diz Clara Costa Oliveira, em tratando-se de pescadores a morte é intimação permanente ("as pessoas só não sabem quando é que vai acontecer"), Emília Balé, cabelo curto já acizentado, não pensa levantar o luto. "Já tenho tentado pôr uma roupinha mais alegre, mas não sou capaz. Os meus olhos andam sempre molhados. Se não for pelo meu marido é por outros". E isso não bate certo com a roupa de cor? "Não bate". É ver as mulheres entrarem-lhe pelo pronto-a-vestir a procurar roupa preta para que os olhos se lhe marejem de novo. "É assim a vida, meu amor".
Mais algumas passadas largas, olha ali o Cristo compungindo sob a coroa de espinhos na fachada de uma casa, três figuras de preto, paradas no passeio. "O luto... eu já não me vejo doutra cor. É óbvio que o preto não leva ninguém ao céu, mas é tudo uma questão de habituamento e de respeito pela pessoa. Só mesmo aquelas pessoas que são cruas por dentro é que esquecem quem lhes morreu", responde Elisabete Craveiro, 29 anos, viúva há um.
Acompanham-na a mãe e a sogra. Com a psicóloga aprendeu a não disfarçar a dor da perda, nem mesmo diante do filho, cinco anos acabados de fazer. "Ele às vezes via-me a chorar e eu tentava disfarçar mas a psicóloga disse-me para não esconder, para ele saber que não está a sofrer sozinho". Se o preto há-de ser uma coisa para toda a vida, não sabe dizer. "Sou nova, sei que tenho o direito de refazer a vida, mas se me pergunta agora digo-lhe que não". Há-de ser de solidão, a vida? "A solidão", intromete-se a mãe, Maria de Fátima, "olhe, é pegar no terço, ir ouvir a missa, comer o pouco ou o muito que houver". Melhor do que arriscar um casamento incerto, porque "agora há casamentos que duram meia dúzia de dias". Será culpa delas, no entender desta mulher de 55 anos, conhecedora das angústias que se escondem por detrás das fachadas. "Dantes havia respeito, agora elas apanham-nos com mais uma pinguinha de vinho por hipótese e põem-nos logo a andar. Não pode ser, elas têm que os saber levar. Ai ele barregou [falou alto]? Deixa-o barregar...".
Serão nortadas de mudança, estas. Será a saudade, será por recusarem o regresso a uma posição de subalternidade que muitas destas viúvas recusam a ideia de voltar a casar - vá-se lá adivinhar as motivações de cada uma. "É possível que para algumas destas mulheres a morte do marido tenha posto fim a uma posição de subalternidade - intermitente porque quando eles estavam no mar eram elas que assumiam a responsabilidade - e, portanto, agora o casamento acabou e elas sentem-se na obrigação moral de prolongar a memória, mas, embora não haja propriamente um arrependimento, não querem voltar a casar".
Não se confunda com falta de afecto pelos maridos ou de verdade no luto que ostentam. A Alzira Pontes Flores ainda há dias aconteceu sonhar com o marido. "Estava ele estirado no sofá e a minha filha, que na altura em que ele morreu ia fazer três anos, a botar-lhe a mão no cabelo. Ela era tudo por ele e ele por ela. Sonhei e não chorei. Olhe, rezei por ele, ainda há bocado estava a lavar a louça e voltei a rezar por ele. Mas marido tive um, depois disso, pronto, quis ficar livre". c