Sob o signo de W.G. Sebald

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Quando nos anos 90 W.G. Sebald escreveu "Os Anéis de Saturno" e referiu um funeral em Framingham Earl, teria-lhe ocorrido que seria neste mesmo cemitério que seria enterrado? "18.05.1944 to 14.12.2001". Planeava passar a reforma nos Alpes, ou num sítio ainda mais remoto, onde reencontrasse o silêncio da sua infância

Escreveu em alemão, numa aldeia em Inglaterra, perto da costa em erosão do Mar do Norte, livros que podem ser a última memória da Europa antes do fim. Morreu prematuramente aos 57 anos, numa estrada perto da universidade onde dava aulas, precisamente há uma década. Susana Moreira Marques e Daniel Blaufuks foram a East Anglia e, nas paisagens de "Os Anéis de Saturno", encontraram possíveis caminhos para lembrar W.G. Sebald.

Na última semana de Novembro, mês de nevoeiros, viajámos para East Anglia, região a Nordeste de Londres, onde o escritor alemão W.G. Sebald viveu desde 1970 até à sua morte, há 10 anos, em Dezembro de 2001.

W.G. Sebald nasceu em Wertach im Allgäu, na Baviera, em 1944, ainda não tinha terminado a Segunda Guerra Mundial. Começou a escrever tarde. "Vertigens", o seu primeiro livro de "prosa narrativa" - não gostava de chamar aos seus livros "romances" -, foi publicado na Alemanha em 1990. Foi com o livro seguinte, "Os Emigrantes", quatro histórias de exílios, traduzido para inglês em 1996, que conquistou a crítica inglesa e americana. Quando "Austerlitz" - a história de um homem que vai lentamente recordando quem é e como chegou a Inglaterra, num dos comboios do Kindertransport que trazia crianças judias da Europa Central para as colocar a salvo do extermínio - saiu, pouco antes de Sebald morrer, o sucesso, com pedidos de entrevistas, convites para sessões literárias e festivais, e contratos para os próximos livros, já tinha invadido o seu mundo protegido em East Anglia.

Foi professor de literatura alemã e europeia, e mais tarde de escrita criativa. Escreveu numerosos ensaios sobre os temas que reapareciam nas suas ficções: a destruição da guerra, e o silêncio que se seguiu cobrindo a Alemanha, o exílio e o convívio com a teimosia da memória. Fundou o Centro Britânico de Tradução Literária, indignado com a pouca presença de literatura estrangeira no mercado britânico. Nunca deixou de escrever em alemão, mas revia cuidadosamente as traduções para o inglês.

W.G. Sebald morreu no dia 14 de Dezembro de 2001, numa estrada entre a Universidade de East Anglia, na cidade de Norwich, e a aldeia de Poringland, onde vivia com a mulher Ute e a filha, Anna. Estava nevoeiro, um nevoeiro de Novembro apesar de ser Dezembro, tão próximo do Natal, e o carro de Sebald foi contra um camião.

Para assinalar o aniversário da sua morte, e para celebrar a sua obra, fiz, com o fotógrafo Daniel Blaufuks, um percurso literário - também lhe podem chamar peregrinação - pelo itinerário de "Os Anéis de Saturno", o seu livro mais inglês. O amor pela História e o direito à excentricidade faziam com que se sentisse em casa em Inglaterra.

Em Agosto de 1992, W.G. Sebald fez uma viagem a pé pela costa de Suffolk, partindo de Norwich. "Os Anéis de Saturno" é um relato de viagem, um ensaio sobre a história da região e algumas das suas figuras literárias, uma ficção, um trabalho de psicogeografia, uma autobiografia. É um livro sobre ruínas: a guerra presente ainda que não visível, o fim da pesca e dos grandes portos, a acção lenta mas inevitável da erosão no contorno da costa, a ameaça de todas as coisas, até a palavra escrita, serem apagadas pela água naquela paisagem pantanosa.

Antes de partirmos para a costa, falámos com professores da Universidade de East Anglia e com a tradutora para inglês que trabalhava com Sebald na altura em que morreu, e descobrimos um homem menos melancólico do que os seus livros. Partimos com a imagem de Max, como gostava que o tratassem, um homem afável mas reservado, tranquilo mas que facilmente se indignava ou comovia, que dava longos passeios a pé, acompanhado pelo seu cão, Moritz.

22 de Novembro de 2011

Norwich-Lowestoft

Na estrada, o cinzento a cair até aos campos, o nevoeiro como uma continuação do céu.

"Os Anéis de Saturno", segundo capítulo: "Foi num dia carregado de nuvens suspensas que, em Agosto de 1992, desci o litoral entre Norwich e Lowestoft (...) A maior parte do tempo a carruagem, pouco firme nos carris, abanava em roda solta, pois a encosta desce até ao mar em declive suave".

Pela estrada, não se vê logo o mar quando chegamos a Lowestoft. Feio; cinzento; industrial; abandonado; ou, nas palavras do Daniel Blaufuks: "pretty fucking English".

Um casal de adolescentes empurra um carrinho de bebé. Três homens pálidos fumam em redor de um banco de madeira e conversam como se conspirassem. Tudo é triste e pobre, mas tudo tem nomes grandiosos: "Trafalgar", "Royal Standard". O Marina Theatre que, pelas descrições que Sebald faz de Lowestoft no início do século XX, deve ter recebido "tournées" de grandes grupos de Londres e talvez até continentais, prepara-se agora para receber uma pantomina de Natal, "It"s a Wonderful Life".

A estação de Lowestoft está quase igual à imagem que Sebald colocou no seu livro, mas onde naquela imagem havia janelas agora há tábuas pretas. De um lado da estação, um restaurante de "fish and chips", fechado há muito. Do outro lado, o McDonald"s e a High Street com mais e mais cadeias.

"(...) Quando começaram a erguer-se plataformas de petróleo no Mar do Norte, houve esperanças de uma mudança para melhor, esperanças que aumentaram ainda mais na era de capitalismo duro da baronesa Thatcher, até que a febre da especulação lhes pôs fim. (...) Depois como um rastilho de pólvora, os estaleiros navais e as fábricas foram encerrados um após o outro, até que o único facto a assinalar sobre Lowestoft era ser o ponto mais oriental das Ilhas Britânicas."

Procuramos esse ponto mais a Leste das Ilhas Britânicas, o Ness Point, e encontramo-lo, entre uma turbina de vento e o que parece ser uma antiga fábrica. Um círculo desenhado no chão marca a distância para outras cidades mundiais e lá está Lisboa, a 1086 milhas. Um barco aproxima-se mas logo desaparece como uma alucinação. Num caixote do lixo alguém deixou um "stencil" da cara de John "working class hero" Lennon. O mar e o céu não terminam de se fundir um no outro. "GOD DOESN"T BELIEVE IN ATHEISTS SO ATHEISTS DON"T EXIST" é a última coisa que vemos à porta de uma igreja, ao sair de Ness Point.

Almoçámos um pequeno-almoço inglês no Woodbine Café, um típico "diner" britânico, onde a empregada nos trata por "love" e onde os homens discutem o jogo da noite, entre o "Man U" e o Benfica.

Na parede do Woodbine Café, está uma imagem igual à fotografia que Sebald incluiu no seu livro, só que esta está pintada e destaca-se o vermelho do lenço do pescador em primeiro plano, fazendo-o parecer ainda mais orgulhoso; atrás de si, um monte de arenques, que se pode imaginar brilhando como Sebald descreve que acontece quando os arenques morrem. Quando chegamos a Southbeach, a parte mais burguesa de Lowestoft, já quase não se vê a linha do horizonte. Às 15h55, as luzes da "promenade" acendem-se e quando descobrimos o monumento aos soldados da Primeira Guerra Mundial já é noite.

Passaram-se apenas dez dias desde o aniversário do Armistício da Primeira Grande Guerra, a 11 de Novembro, quando por todo o país são lembrados não só os soldados da Primeira, mas também os da Segunda Guerra Mundial, e até os soldados que mais recentemente não voltaram do Iraque ou do Afeganistão.

Lowestoft foi uma das cidades inglesas mais bombardeada durante o Blitz, estando de frente para a Europa Central, nas margens do Mar do Norte, ao qual Sebald chama várias vezes, ao longo do livro, o mar alemão.

As coroas de papoilas de papel ainda estão intactas em redor do monumento e nos quatro canteiros estão espetadas dezenas de cruzes, com nomes ou dedicatórias simplesmente "to dad" ou "mum". Um grupo da escola primária deixou bilhetes para os soldados:

"Queridos Soldados Poderosos,

Obrigada por nos salvarem as vidas. Usamos papoilas e temos um minuto de silêncio para nos lembrarmos de todos vocês. Até as Mães, os Pais, e os Jogadores da Bola. Quer joguem jogos ou não. Quer haja trabalho ou não. A escola também. Desculpem a dor que as outras pessoas vos causaram.

Beijos da Mollie"

Às cinco da tarde, quando deixamos Lowestoft, a cidade que parecia cheia como num Domingo está subitamente deserta. Afastamo-nos a cantar Morrissey, que o Daniel se lembrou de ir buscar ao iPod: "This is the coastal town/ That they forgot to close down (...) Everyday is like Sunday"

Voltamos a passar junto da estação de comboios onde, na imagem que termina o capítulo II de "Os Anéis de Saturno", está misteriosamente parada uma carrinha funerária, carregada com um caixão. Quase na última página desse capítulo, o narrador lembra-se de Frederick, um vizinho, que pertencia a uma família chique de Lowestoft, quando Lowestoft ainda tinha bailes de gala, e lembra-se de ir ao funeral desse homem num pequeno cemitério junto de uma pequena igreja em Framingham Earl, onde hoje está enterrado W.G. Sebald.

23 de Novembro de 2011

Framingham Earl-Poringland-Southwold

A terra do cemitério está gelada e húmida. Estão sete graus. São 9h30 da manhã. A campa de W.G. Max Sebald, onde estão inscritas apenas as datas 18.05.1944 e 14.12.2001, está voltada para os campos de cultivo, de costas para a estrada. Mesmo numa aldeia pequena como Framingham Earl, ouvem-se os carros ao longe. Nunca mais aquele silêncio que havia na sua infância, na região alpina, quando os carros eram menos e ainda as casas não tinham todas televisões, computadores, instrumentos que zumbem como moscas em redor das nossas vidas. Os pássaros é que nos distraem, dão-nos a ilusão de que ainda vivemos na natureza.

Sobre a pedra cinzenta, a filha de Sebald, Anna, que sobreviveu ao acidente que matou o pai, colou pequenas pedras arredondadas que poderiam ser das praias daqui da costa de Suffolk mas que, segundo nos disse Amanda Hopkinson - tradutora, investigadora britânica, ex-professora na Universidade de East Anglia, onde chegou a dirigir o Centro Britânico para Tradução Literária, fundado por W.G. Sebald -, vieram da costa Sudoeste do país, da Cornualha.

Em Poringland, ao lado de Framingham Earl, não conseguimos descobrir qual era a casa onde vivia W.G. Sebald. Perguntamos a um homem que passeia o cão, e ele não dá mostras de saber de quem estamos a falar.

Hoje não há nevoeiro e o sol vê-se límpido e pálido, quando seguimos para a costa para continuar o percurso de "Os Anéis de Saturno". A caminho, desviamos para o "Africa Live", zoo de animais exóticos que simultaneamente fascinaria e chocaria Sebald. Não entramos mas ouvimos como gritam os animais e, através da rede electrificada, vemos flamingos cor-de-rosa, olhando num pequeno lago para a continuação de si próprios.

Não encontramos o lago de Benacre Broad onde o narrador de "Os Anéis de Saturno" julga ver o mundo como se estivesse dentro de um globo de vidro. Talvez tenha já desaparecido o lago "rodeado por uma floresta a morrer aos poucos por causa da erosão sistemática do litoral", como escreve Sebald. "É só uma questão de tempo até toda a região mudar de aspecto."

Foi nesse lago que o narrador, e nunca saberemos se o próprio Sebald, se lembrou de uma cena de "Tlön, Uqbar, Orbius Tertius", de Jorge Luis Borges, em que alguns pássaros salvam um anfiteatro.

Seguimos por uma estrada secundária para Southwold, onde Sebald continuou a lembrar-se de Borges e de um romance "que desmentisse factos notórios e se embrenhasse em diversas contradições de tal modo que poucos leitores - pouquíssimos leitores - fossem capazes de apreender a realidade, por um lado atroz, por outro totalmente banal."

Imagino Sebald a ver-se reflectido no lago como num espelho oval perturbador na sala de Borges, e a pensar que nunca saberia se conseguiria o objectivo de escrever um livro em que tudo se liga mas muito se contradiz e perante o qual ninguém poderá dizer para que sentido nos leva a narrativa, como ninguém pode ter a certeza de que há uma sentido, uma finalidade, para os acasos, as coincidências, as relações desenrolando-se e enrolando-se no novelo do mundo.

Não havia, quando Sebald esteve em Southwold nos anos 90, o novo pontão, com "fish and chips" e lojas de "souvenirs". No extremo do pontão, um telescópio promete "ver o que sempre desejou ver num telescópio: líderes mundiais em jet skis, raves em plataformas de petróleo, alterações climáticas."

Da praia, vê-se o farol branco, erguendo-se acima de todas as casas, as barracas de cores, que em Agosto, quando Sebald fez a sua caminhada, teriam vida, e um céu que parece ter sido pintado num eterno fim de dia por Constable, pintor natural de Suffolk. Caminhando quase até ao final da vila, encontra-se a Sala de Leitura dos Marinheiros de Southwold. "Quando estou em Southwold", diz o narrador de "Os Anéis de Saturno", "a Sala dos Marinheiros é de longe o meu sítio favorito". Estão expostos modelos de barcos e instrumentos de navegação, como Sebald descreve, e há em todas as paredes retratos de velhos pescadores. Não há jovens retratados, talvez porque só depois de velhos os pescadores sentissem necessidade de que as suas peles enrugadas daquela maneira particular ficassem de alguma forma impressas. Quanto mais envelhecemos, mais sentimos necessidade de deixar registada a nossa história. A Europa está tão velha que só lhe resta a História, e com ela combatemos o ocaso.

É na Sala de Leitura dos Marinheiros, ao olhar para os enormes registos dos navios, nomes e datas como os das pessoas mortas, que o narrador de "Os Anéis de Saturno" pensa como é misterioso que "sobreviva a palavra escrita".

No alfabeto dos marinheiros, na parede, "s" de Sebald é "s" de "sea" e também de "stars": "estrelas, essas chamas celestes, embora muito poucos pescadores possam gabar-se de fama de astrónomos, mas podem apontar para Orion e para Saturno."

Regressamos por Beccles, e nessa estrada passamos por mais uma torre redonda de igreja, igual a tantas que já vimos, dando por vezes a sensação de que viajamos em círculos e nunca cumpriremos o nosso mapa.

De Beccles para Norwich, apanhamos em plena estrada a dança dos estorninhos. A enorme nuvem negra passa por cima das nossas cabeças preechendo o céu e persiste num movimento de cadeira de baloiço. Nuvens negras mais pequenas vão-se juntando, vindas de várias partes, e eu quase espero ver aparecer uma nuvem rosa. Mas talvez uma nuvem de flamingos rosa pertença apenas ao "Livro dos Seres Imaginarios", de Borges, que Sebald também cita. Não sei o que é mais imaginário: flamingos presos apesar das asas ou flamingos voando depois de tanto tempo sem saberem que poderiam alcançar outros mundos.

Jantamos outra vez no tailandês da rua onde estamos instalados no centro de Norwich, e marcamos o percurso para o dia seguinte, para irmos a Dunwich Heath, lugar classificado como um AONB, ou Area of Outstanding Natural Beauty, e perto daí, a uma floresta com um caminho pela história dos ovnis avistados na parte mais deserta e misteriosa de Suffolk.

24 de Novembro de 2011

Dunwich-Westleton-Orford-Aldeburgh

Pequeno-almoço em Norwich no sítio do costume: a menina já sabe que queremos "porridge" das Ilhas Britânicas e croissants do continente. Arrancamos pelas nove.

No rádio, quase sempre sintonizado na BBC Radio 4, já ouvimos programas sobre: 1) o desaparecimento dos quimonos no Japão, 2) a ocupação alemã das ilhas inglesas do Canal, 3) o princípe Oberon, de "Sonho de uma Noite de Verão", na versão de Benjamin Britten, compositor inglês nascido em Suffolk, mas este é o mais surpreendente: 4) Marilyn Monroe numa voz masculina a imitar uma voz feminina, num extracto de "My Week with Marilyn", de Colin Clark. "Let"s do spoons", diz a voz de falsete, e Marilyn deita-se em concha, agarrando-se a outro corpo, a bóia a precisar de salvação, e respira com uma certa cadência, quase forte.

Isto passava-se dentro do carro enquanto o Daniel, lá fora, fotografava um elefante apenas um pouco menos alto do que ele, à porta de uma casa onde parece que ninguém dorme há algum tempo.

Bom tempo ainda, as cores de Outono brilham. A estrada estreita-se até chegarmos à aldeia de meia dúzia de casas que foi um dia a maior cidade da região, um famoso porto internacional, a capital de East Anglia, Dunwich.

Da praia, para norte vê-se o farol de Southwold e para sul, em Orford, umas estranhas estruturas no meio do mar.

A praia de pedrinhas, que agora, desde que vi a campa do Sebald, me fazem pensar num imenso túmulo, está suja de sacos de plástico, jornais, maços de tabaco vazios. No céu as nuvens fazem um remoinho ou talvez seja um reflexo de qualquer coisa que se passa no mar. O mar, ainda que perca algumas batalhas, em Dunwich ganhou a guerra. Observo como um pescador na praia não deixa nunca de olhar para a linha de pesca como se temesse olhar para o mar, como se do mar pudesse tão catastroficamente como um dia caiu, reerguer-se de novo a antiga Dunwich. Do penhasco da praia, escreveu Sebald, sente-se "a forte atracção do vazio".

Em 1286, uma tempestade numa altura de maré invulgarmente alta, fez com que quase toda a cidade desaparecesse debaixo do mar. Uma das igrejas sobreviveu desse tempo, mas no início do século XX despenhou-se também. Um resto dessa igreja está no cemitério, perto da ruína da capela de um hospital de leprosos, onde sem sair das camas, os doentes podiam assistir às missas como parte do tratamento.

O único som da praia de Dunwich, para além das gaivotas, é o som dos passos nas pedras. Mas não se ouve uma palavra, nem sequer daquele pai que passeia com uma criança de kispo cor de rosa.

Almoçamos tarde no restaurante arranjado em tons de rosa que parece ser o único de Westleton, ao pé de Middleton, onde viveu o poeta inglês de origem alemã, Michael Hamburger, amigo de Sebald, tradutor da sua poesia, e personagem de "Os Anéis de Saturno".

Em Westleton há também uma única livraria, numa antiga capela. Percorremos os livros sem vermos ninguém. Para chamar o vendedor é preciso bater numa lata velha com um pau. E vem uma figura de chapéu de senhora e uma toalha de banho às riscas enrolada à cintura, os pés nus, muito brancos, no chão frio. "How can I help?", diz numa voz grossa, e sorri. Levamos um velho guia de África, um exemplar da revista Illustrated, de 1943, com uma mulher de fato banho na capa, uma "War Worker on Holiday", uma antologia de poemas de guerra, de 1930, quando só tinha havido ainda uma grande guerra, pertencente a uma Dorothy J. Bartholomew, e uma edição de 1955, com capa de tecido e iluminuras, dos quartetos Rubáiyát de Omar Khayyám, poeta persa do século XI, na primeira versão de Edward FitzGerald, que era de Suffolk e de quem Sebald conta a história em Os Anéis de Saturno. Finalmente, levei ainda, por uma libra, uma fotografia, mais pequena do que a minha mão, de uma barco à vela, muito semelhante à que Sebald colocou no livro para ilustrar o barco em que FitzGerald um dia partiu.

Um anel nas nuvens, e mais à esquerda, mais cor de rosa, outro anel. Olha, Daniel, aponto, dois sóis. O Daniel não estranha, e confirma: "São os anéis de Saturno", e continua calmamente a conduzir.

Chegamos a Orford, o ponto mais sul do percurso de "Os Anéis de Saturno", mas não há ninguém, como haveria em Agosto, mês quando Sebald viajou, para nos levar de barco até Orfordness, a ilha em frente da praia, uma reserva natural, onde vemos que as estranhas estruturas que tínhamos visto ao longe em Dunwich são pagodes de estilo chinês que fizeram parte de experiências nucleares britânicas. A ilha então só era frequentada por militares, e segundo Sebald, os habitantes de Orford não podiam fazer mais do que especular sobre os seus segredos.

Não chegámos ao trilho dos ovnis, a noite mais veloz do que nós, mas no regresso de Orford, encontrámos as árvores que acreditamos serem aquelas que aparecem no livro de Sebald, como as últimas sobreviventes de uma grande tempestade. São pinheiros altos e magros, muito juntos no meio de toda aquela vegetação rasa, e um deles está inclinado num ângulo de 45º, memento mori da força da tempestade.

Antes de regressarmos a Norwich, paramos em Aldeburgh, que não fazia parte do nosso itinerário por "Os Anéis de Saturno", mas onde vem, para a semana, no aniversário dos 10 anos da morte de Sebald, Patti Smith prestar homenagem.

Quando estacionámos em Aldeburgh, as lojas fechavam, uma a uma, como se os negociantes seguissem o movimento do pôr do sol, de maneira que às quatro e meia o único sítio onde se podia ainda entrar para tomar chá era o Tea Room das irmãs Cragg, onde na mesa mais perto da janela anoitecida, tomava chá John Cusack.

Nem mais gordo nem mais magro, talvez um pouco mais alto do que aparece nos filmes, talvez um pouco mais aborrecido. Está com duas mulheres, uma loira com pinta de actriz de Hollywood, que fala sobre o marido, e uma morena com pinta de ser da produção, que fala sobre os implantes que as suas amigas têm feito para ficarem felizes com o tamanho do peito, tanto antes como depois de terem filhos. John Cusack acena com a cabeça e parece ouvir tudo à distância como se estivesse ligeiramente afastado, na rua paralela, já partindo num barco. Esse foi o nosso último dia na costa, a última vila, o último "village tea room", e era quinta-feira, e era dia de Thanksgiving, e John Cusack saiu cumprimentando-nos à porta, sorrindo mas triste, com um ar de quem preferia muito mais estar em casa.

A menina, que confessou ter mantido o salão aberto para a estrela de cinema, deixou-nos ficar calmamente a terminar o chá e scone. Quando saímos não havia qualquer sinal de uma grande produção cinematográfica a acontecer, de uma enorme ficção a ter lugar depois de ter sido escrita por um guionista.

25 de Novembro de 2011

Carregamos o carro. Fechamos a porta do apartamento que nos emprestaram em Norwich. Era uma casa muito Sebaldiana, com livros em várias línguas e postais que dão a volta ao mundo. Quando arrancamos na direcção da universidade, ainda vou a pensar no mapa da Antártida junto da cama onde dormi, se quererá dizer alguma coisa, onde estará a relação com Sebald?

Os livros de W.G. Sebald fazem-me lembrar os desenhos de unir pontos, e cada ponto pede um traço e cada traço novo ponto e o desenho nunca estará completo. Os livros de Sebald são para ser continuados pelo leitor, numa leitura que pode ser tão intensa como a escrita. Então, nesse caso, a leitura, como disse Sebald da escrita numa entrevista, tanto nos pode levar a uma maior lucidez como à loucura.

Aquela caixa de cartão na sala das colecções especiais da biblioteca da Universidade de East Anglia, com o nome "W.G. Sebald" escrito no que parece ser giz, parece-me um caixão, e aberta, os dvds são memoráveis como rostos de cadáveres. 1986, muito novo, magro. 1989, debatendo a queda do muro, muito mais em casa na sua pele de professor, falando alemão com uma suavidade que me parece já de East Anglia, deste ponto mais a este das Ilhas Britânicas.

A bibliotecária traz então uma cassete, um objecto que um miúdo de quinze ou vinte anos pode nunca ter visto, um leitor próprio e uns auscultadores, e sento-me a ouvir W.G. Sebald ler, num tom contínuo e sem hesitações, um excerto de "Os Emigrantes", e a seguir, as respostas que dá à sua audiência, e num segundo desaparece a imagem que tinha de W.G. Sebald como um homem torturado com dúvidas. Pensei que teria sido por isso que tinha começado a escrever tarde, e pensei que ainda que não tivesse morrido há 10 anos, num segundo numa estrada perto daqui, não nos teria dado muitos mais romances do que os quatro que escreveu em pouco mais de uma década. Tinha pensado que caso tivesse sobrevivido ao acidente o seu maior exílio teria sido o século XXI. Mas agora, ao ouvir a gravação, parece-me que o século XXI é que não pode viver sem a sua voz paciente, a sua visão da literatura como um lugar de confronto de vários tempos, de depositário da dispersão moderna.

"Estou farto do rótulo de melancólico", diz a voz, quase no mesmo tom de leitura, os "erres" marcados principalmente no final das palavras. "A audiência tem uma expectativa do autor e de mim esperam que esteja à beira do suicídio" A audiência ri-se. Alguém pergunta, "como escreve?", e ele responde: "Simplesmente começo num determinado ponto".

A reportagem é financiada no âmbito do projecto Público Mais

publico.pt/publicomais

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