A escultura segundo Pasolini, segundo Jesus Cristo, segundo Rui Chafes
O que é que um escultor faz numa cidade em que o espaço em que intervém é esculpido? Matera, cidade Património da Humanidade no Sul de Itália, é o cenário de 14 novas esculturas de Rui Chafes. Espaço bíblico, arcaico, parece que estava à espera da exposição. Pasolini foi o guia.
A escultura suspensa por um cabo do tecto oscila de modo imperceptível, mas o olho treinado do fotógrafo dá por isso. "Está difícil de fotografar...", diz Alcino Gonçalves. Rui Chafes, o autor da obra, pergunta se se vêem as sombras projectadas no chão. Tem uma imagem na cabeça para a fotografia da escultura, a que chamou O Silêncio de Giorgio de Chirico, e quer que apareçam as sombras que o artista italiano trabalhou nas suas pinturas.
É quase meia-noite e está muito frio e húmido nesta igreja onde no dia seguinte seria inaugurada a exposição Entrai pela Porta Estreita. "Está um bocado exagerado", diz Chafes, depois de espreitar pela objectiva. Não há mais explicações para Alcino, porque fotógrafo e escultor trabalham juntos há 20 anos e já não precisam de trocar muitas palavras. "O que o Alcino faz é uma impossibilidade, porque não é possível fotografar escultura. Uma escultura é a nossa consciência do espaço."
Vieram à procura da escuridão da noite para fotografar as esculturas, porque de dia este espaço quase bíblico, confinado, tem uma luz descontrolada. E o quase bíblico, aqui, está longe de ser um exagero. A exposição é um site-specific com 20 esculturas pensadas para o Convicinio de Santo António, um complexo de quatro igrejas rupestres que comunicam entre si, na cidade de Matera, Sul de Itália, onde Pier Paolo Pasolini filmou O Evangelho segundo S. Mateus (1964) e Mel Gibson A Paixão de Cristo (2004).
Entre os dois realizadores que fizeram de Matera a Palestina, é fácil adivinhar que o discurso erudito do escultor, conhecido pelo seu interesse pela cultura alemã, se tenha aproximado do italiano. Na verdade, é mais um regresso, uma vez que Pasolini, "que põe o divino ao nível do humano", é uma referência para Chafes há muito. Esta exposição, cujo título cita versículos do Sermão da Montanha do Evangelho de Mateus, "é uma homenagem ao Pasolini e à cidade". Mas na exposição há também "retratos" de De Chirico e a poesia alemã de Rainer Maria Rilke explica o título de algumas obras, como Da Pobreza e da Morte, citação do Livro de Horas. Há 14 peças novas, algumas foram feitas no Sul de Itália e o escultor está contente com o resultado, porque em Itália há uma boa metalurgia do ferro, o material que Chafes usa.
"As tuas peças encontraram aqui a sua capacidade dubitativa", diz Paulo Cunha e Silva, o conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Roma, que organizou a exposição juntamente com a Província de Matera. "Completamente. Estou feliz." Dubitativa? - perguntamos. "Sim, de dúvida. Chafes é um escultor que se afirma não falando. É uma exposição de silêncios que depois constroem uma narrativa poderosa. As suas obras não se apoiam, levitam sobre o lugar." Apesar de trabalhar o lugar, ele suspende o lugar. "O grande paradoxo é que ele trabalha um material pesado e inverte a lógica do material. É o grande escultor da crueldade subtil." O espaço, conclui Cunha e Silva, parece que estava há mil anos à espera das peças de Chafes. "Dá ideia que o espaço o procurou."
Se há lugar que pode causar perplexidade a um escultor, ele é Matera. É um exemplo de milénios de uma civilização rupestre, de uma cidade que se esculpe na rocha, das cavernas mais simples de há nove mil anos aos palácios do século XVIII. Uma arquitectura que, em vez de adicionar, subtrai. É o que se vê nas quatro igrejas rupestres do Convicinio de Santo António, a que acedemos através de um pátio, depois de atravessar um arco-portão. São do século XII e XIII e a arquitectura românica, arcaica, ainda está, aqui e ali, coberta de frescos. Estão lá esculpidas absides inteiras, abóbadas cruzadas, pilastras, colunas e janelas. Estar dentro deste espaço, nota Rui Chafes, "é como estar no núcleo de uma pedra". Quem o fez foi capaz de "um gesto incrível, de avançar pela montanha". "Como uma formiga, construindo uma geometria, irregular, mas uma geometria."
No exterior, fora das igrejas e da pedra, ouve-se apenas o rio Gravina, que corre lá em baixo no vale, e que separa a cidade do Parque da Murgia Materana. Nessa colina em frente, estão duas peças que terão de ser fotografadas amanhã de manhã, diz Chafes a Alcino Gonçalves. Estão exactamente em frente ao "telescópio" assente sobre um dos muro do pátio das igrejas, aponta o escultor. O falso telescópio é um tubo, também em ferro preto, que "não é uma escultura", mas serve para orientar o olhar. "Está aqui tudo confinado na pedra. Mais de que um ponto de vista é um ponto de fuga. Deixa um caminho aberto."
No monte de Pasolini
Já passa das dez da manhã e estamos no carro de Giacomo Zaza, o comissário italiano da exposição, a caminho do outro lado da colina para fotografar as duas peças que eram invisíveis na noite anterior. Passamos pelo parque da escultura da cidade. "Matera é uma armadilha para os escultores. Trazem esculturas já feitas e põem em cima de um plinto com um foco. Eu quis criar fissuras e um corte no espaço mental que a cidade representa." Passamos uma pedreira a céu aberto em que a extracção criou paredes altíssimas que parecem esculpidas a fio de prumo. O fotógrafo entusiasma-se e diz que parece land art. Michael Heizer, responde Chafes. Passamos por oliveiras que estão a ser abanadas intensamente, porque estamos em plena época da apanha da azeitona. Mas o que se vê mais é mesmo pedra, pedra, pedra, com alguma vegetação rasteira.
Seguimos a indicação das igrejas rupestres e chegamos ao miradouro onde estão duas obras tombadas na paisagem, dois grandes cones pretos, com mais de 2,5 metros, cortados na ponta. "A ideia é ter a escultura em primeiro plano e a cidade em fundo", indica Chafes. Fotógrafo e escultor avançam com máquina e tripé. Também veio Pipa, mulher de Rui Chafes, que parte noutra direcção à procura das igrejas esculpidas nas cavernas.
O comissário faz de cicerone. "Aqui era Gólgota." Gólgota? Zaza está a ver o filme de Pasolini na paisagem, a colina onde Jesus foi crucificado. "O filme de Pasolini dá a Matera um carácter cultural forte. O património foi descoberto nos anos 70 e 80, antes de Pasolini o interesse era marginal." Zaza acha que as esculturas de Rui Chafes são performativas, um gesto no espaço.
Juntamo-nos ao resto do grupo e Rui Chafes diz ao curador que as peças não estão exactamente onde ele queria. Houve um problema com a empresa que as descarregou, especializada em transporte de arte, que se recusou a pô-las mais abaixo na ravina porque era perigoso e podia estragar as peças. Mesmo assim, já tinham descido uns bons metros, porque o escultor, literalmente, empurrou-as até elas encalharem na saliência seguinte. As marcas são visíveis na pintura preta do ferro e no próprio artista, que ainda coxeia do esforço e só hoje de manhã entregou as canadianas. Mas ainda estão, na sua opinião, muito próximas do céu, no recorte que fazem contra a paisagem para quem observa do outro lado de lá, do Convicinio de Santo António.
Já dentro do carro, a caminho do convicinio, Chafes planeia com o fotógrafo Alcino Gonçalves, um antigo colega do curso de escultura, o que é preciso ainda fazer. O céu está a abrir e o artista receia que a luz fique demasiado intensa para fotografar. "Consegues pôr a objectiva dentro do telescópio? Fica preto à volta e vêem-se as peças deste lado." Diz ao fotógrafo que é o mesmo que foi feito em Sintra com o Palácio da Pena, em 2000, na exposição que tinha várias peças espalhadas pelo parque. "Alcino, quando entrares nas igrejas, vais perceber que a luz está muito pior do que ontem à noite."
Dez minutos depois, está Alcino já com o olho mecânico dentro do "telescópio" apoiado no muro do convicinio. "Não se vêem as peças", avisa o fotógrafo. Rui Chafes diz que não faz mal, porque no catálogo, a publicar em Janeiro, estas fotos vão aparecer ao lado das que fizemos do outro lado da ravina e as pessoas vão conseguir fazer a leitura correcta.
Antiesculturas
Paulo Cunha e Silva chega com um grupo que veio do Porto para ver a exposição. Um deles, António Mendes, tem uma peça de Chafes na sua colecção de arte. E, reconhece o conselheiro cultural, Chafes tinha razão, porque a luz sobre as obras funciona melhor à noite. Chegam também dois críticos de arte de Bari, pai e filha, que também querem ver a exposição antes da inauguração.
O curador da exposição explica-nos porque chama "antiesculturas" às peças de Chafes, num dos textos de apresentação da exposição. "A antiescultura é um modo de dizer que a obra do Rui não é feita para um pedestal. Tem uma presença obscura e misteriosa. Cria um teatro abstracto." O comissário encontra na exposição um duplo percurso mental: há o lado sonâmbulo das obras, metafísico, de coisas que espreitam, emergem, e um diálogo com o espaço irregular, orgânico, da arquitectura rupestre. Para ele, as peças principais são as quatro caixas com o título O Tempo É o Meu Único Amigo, que estão incrustadas no chão de duas das igrejas. Três numa primeira igreja e outra na seguinte, provavelmente ocupando o buraco de antigas sepulturas. Com os planos verticais e horizontais, ângulos, impõem uma outra geometria, citando, por exemplo, Vitrúvio. Esta não é a primeira vez que o comissário trabalha com Chafes - incluiu uma escultura sua numa mostra colectiva em Molfetta em 2009 - e já trabalhou também com outros artistas portugueses, como Vasco Araújo ou João Louro.
"Caixas" entre aspas, como diz Rui Chafes, porque são paralelepípedos de ferro negro. "São o ponto central da exposição porque é a única intervenção cartesiana nesta arquitectura orgânica." Três presenças negras na sala que estão controladas por um nível de bolha. "Num espaço que é uma escultura orgânica, introduzem uma noção de geometria na qual nós ocidentais possamos acreditar." As quatro caixas, as únicas peças da exposição feitas em Itália, são muito profundas e pesadas, apesar de isso não se perceber quando olhamos para elas. "O que nós vemos é uma espécie de tampa negra, mas elas têm cerca de 1,6 metros de altura, porque estão enfiadas na medida justa dentro das sepulturas que estão no chão. Eu decidi que era muito importante sinalizar essas sepulturas, que são muito profundas, com uma geometria negra que as preencha."
Carregar as quatro caixas até cá abaixo demorou um dia inteiro, com seis homens a trabalhar, com pausas de três em três metros. "Aqui vê-se mais o resultado de uma acção do que a peça em si. O que torna essas esculturas uma performance." Todo esse esforço ficou registado em fotografias para serem publicadas no catálogo. Rui Chafes não vê esse percurso como uma Via Sacra, como o caminho de Cristo até à cruz, ainda que outros o possam fazer. "A própria natureza intrínseca da escultura é isso, um trabalho contra a matéria, contra o peso. Como é que eu posso fazer com que três toneladas pareçam um grama? O ferro é duro, é mais pesado. Não há estas esculturas sem isso."
O primeiro "retrato" de Pasolini que Rui Chafes fez, em 1999, chamava-se Áspero Nobre e Suicidário. Em Matera, Pasolini está como "referência essencial" desde o início e, naturalmente, também o seu filme O Evangelho segundo S. Mateus. Chafes explica esta ligação e o regresso a Pasolini: "Porque Pasolini é dos poucos artistas completos: cineasta, pintor, ensaísta, poeta, escritor, jornalista. E dos mais corajosos. Não só pela sua coragem cívica e social, de ter desafiado a sociedade em que vivia, que era a Itália dos anos 50 e 60, de uma forma absolutamente radical, afirmando a sua posição e a sua postura de dúvida, mas pela gigantesca intensidade poética com que fez isso."
A palavra
Na exposição, Chafes pegou textualmente na memória do filme de Pasolini, porque o próprio título vem do evangelho mas através do filme. "Quando Jesus Cristo, de forma também provocatória e corajosa, desafia as pessoas a escolherem a porta estreita, que era a mais difícil, que levava à vida verdadeira, e não a porta larga, a dos ricos. Essa separação, entre os que escolhem a via difícil e a via fácil, foi o motor para este título. Como o meu trabalho é sempre entre a palavra e o ferro, quis deixar aqui bem claro que, neste caso, a palavra pertencia não só a Jesus Cristo como a Pasolini e não a mim." Ele, que leu todas as folhas da bíblia, de uma ponta à outra, muito antes deste trabalho.
A palavra, a dos títulos das esculturas, procura ser arcaica, fora de moda, diz o escultor - o enigma, a solidão, o mistério, a melancolia. Como na escultura suspensa O Silêncio de Giorgio de Chirico, que ocupa um canto "desta estrutura semi-arquitectónica, desta semi-igreja, um espaço muito ambíguo".
Esse é um dos muitos "retratos" que Chafes fez do artista italiano: "É um retrato baseado na ideia de pêndulo vertical e da cabeça dos manequins de De Chirico, que introduz aqui uma vertical suspensa. Ao mesmo tempo, fiz uma intervenção quase pictórica nesta estrutura rupestre, ao fazer uma sombra no chão, como uma citação das pinturas de De Chirico. Aquelas sombras contrárias à luz do sol." Lá está ela, projectada no sítio certo, à espera da inauguração, porque a peça deixou de baloiçar.
À hora prevista, 18h30, o embaixador de Portugal, Fernando Neves, começa a falar, elaborando sobre este espaço que sempre esteve à espera desta exposição. E qual é o lugar da cultura contemporânea na afirmação de Portugal no estrangeiro, agora que se fala tanto de diplomacia económica? - perguntamos. "Portugal, quer do ponto de vista da afirmação da nossa identidade, quer do ponto de vista económico, precisa de promover a sua imagem no exterior. Mas ainda não conseguiu que a essa imagem de Portugal esteja associada qualidade." E, numa altura em que se fala tanto de exportações, a promoção externa não tem que ser vista como uma despesa mas como um investimento. "A forma mais eficaz de Portugal se afirmar, sobretudo nas sociedades mais sofisticadas, é através da cultura contemporânea. Há figuras no cinema, na arquitectura, na literatura, nas arte plásticas cuja promoção no exterior é decisiva." O embaixador lembra-se sempre da vez em que na Irlanda, "país em que a literatura é uma ocupação nacional", levou um grupo de investidores a uma série de eventos que cruzavam James Joyce e Fernando Pessoa. Foi um entusiasmo.
De volta à cidade, o embaixador Fernando Neves aponta, contente, um cartaz que anuncia a exposição de Chafes. É possível vê-la até 31 de Janeiro.
A jornalista viajou a convite da Embaixada de Portugal em Roma e da Província de Matera