Um palácio como uma grande vitrina
São 25 anos de compras e doações nas colecções do paço. Na exposição que abre hoje em Lisboa podem ver-se mais de 600 peças que habitualmente estão nas reservas. E ainda os trabalhos de restauro em que já se investiram três milhões de euros. Uma homenagem aos mecenas que é também um balanço do trabalho de Isabel Silveira Godinho, a directora que nos últimos 30 anos fez do do Palácio da Ajuda a sua casa.
Andar pelos corredores do Palácio da Ajuda ao fim da tarde, quando já não há visitantes e é preciso acender as luzes para percorrer muitas das salas, é um bom começo para um daqueles exercícios de "era uma vez" que as crianças costumam fazer: "Era uma vez uma princesa italiana que, aos 15 anos, fez uma longa viagem para casar com um rei que coleccionava violinos e falava muitas línguas... Era uma vez um pequeno príncipe que adorava música e números de magia... Era uma vez uma rainha que fazia compras por catálogo e gostava de organizar as festas de Natal e os bailes de máscaras do seu palácio..."
Foi na Ajuda que D. Luís e D. Maria Pia decidiram educar os filhos, D. Carlos e D. Afonso, e é talvez por isso que quem visita o palácio que se tornou residência real em 1861 pode ter a sensação de estar a entrar numa casa. Numa casa enorme, é certo, mas numa casa.
"Sempre tentámos que as pessoas vissem este palácio como uma casa habitada, cheia de histórias, algumas extraordinárias para todos, outras só para quem as viveu", diz Isabel Silveira Godinho, directora do Palácio Nacional da Ajuda, chamando a atenção para alguns dos brinquedos dos príncipes ou para uma touca de bebé em renda. "Nestas salas e nestes quartos, como nas nossas casas, houve risos e gritos, houve raiva, amor, ciúme, houve choros de criança, brincadeiras, noites longas com amigos e jantares de família."
Silveira Godinho, de 68 anos, chegou à Ajuda há 31 e não é por isso estranho que lhe conheça cada canto, cada álbum de fotografias, cada vitrina com leques, livros e caixas de rapé. Hoje, com a abertura ao público de 25 Anos de Aquisições e Doações, que teve inauguração oficial no princípio da semana, a directora não estará apenas a abrir as portas a mais uma exposição, estará a fazer um balanço de três décadas de trabalho, destacando o contributo dos mecenas para a vida deste palácio que tem nas suas colecções mais de 100 mil peças, da pintura à joalharia, passando pelo desenho e a gravura, os têxteis, o mobiliário, a cerâmica e a fotografia.
Foram mecenas que ajudaram a restaurar o palácio - o programa Uma Sala Um Mecenas começou em 1996 e envolve entidades como a Galp, a PT e o BCP - e a comprar peças em leilões importantes em Portugal e no estrangeiro, mas também pequenos e grandes coleccionadores que quiseram deixar a sua marca no dia-a-dia da Ajuda.
Américo Barreto é um desses coleccionadores. Isabel Silveira Godinho faz questão de falar dele frente ao conjunto de cachimbos que agora está na Sala Azul e que foi oferecido ao palácio em 2003, depois da sua morte. "Era um homem cultíssimo, com quem aprendi muito", diz a directora. "Entrar na sua loja em Lisboa, onde tinha sempre peças da maior qualidade, era como entrar numa aula. Antes de morrer, deixou indicação para que me chamassem para ir a sua casa escolher peças para o palácio."
Na exposição, Silveira Godinho mostra mais de 600 peças que habitualmente estão em reserva, muitas delas da casa real. Para as descobrir no meio das salas e vitrinas dos dois andares visitáveis é preciso procurar um quadrado vermelho e dourado junto às legendas e ir seguindo as plantas que são distribuídas aos visitantes.
Quando voltou a sonhar com esta homenagem aos mecenas - "esteve para ser feita nos 15 e nos 20 anos" -, a directora ainda pensou numa exposição em moldes tradicionais, mas rapidamente mudou de ideias: "Não tínhamos dinheiro para tanta vitrina. Se fizéssemos uma exposição em sala, teríamos de reduzir muito o número de peças e não gastaríamos só os 6200 euros que esta vai custar. Foi então que, numa das minhas insónias, cheguei à conclusão de que o cenário ideal era o próprio palácio. A Ajuda é como uma vitrina grande."
O prato dos reis
Encontrado o formato, era preciso chegar a uma selecção de peças, tarefa difícil para um palácio que não dispõe de técnicos de arquivo e cujo inventário ainda precisa de muito trabalho de modernização. Silveira Godinho e a sua equipa optaram por fazer listas sucessivas, mergulhando nos arquivos e atribuindo quotas por colecção para que nenhum tipo de peça ficasse de fora. São estas listas cheias de anotações a lápis nas margens que a directora revê minuciosamente para nos dizer qual foi a sua primeira compra para o palácio: um prato com D. Carlos e D. Amélia, que custou 15 contos (75 euros) num leilão em 1985.Silveira Godinho esteve primeiro no Palácio Nacional de Queluz. "Tinha chegado há uns anos [à Ajuda], vinda do século XVIII, e não conhecia ainda muito bem as colecções, mas olhei para aquele prato e pensei "não temos disto no palácio", e comprei-o. E fi-lo com grande ingenuidade, não havia programa de aquisições." Nem programa, nem verba, lembra. O que é que mudou desde então? Que critérios orientaram as compras ao longo destes anos?
Na maioria das vezes, as doações e aquisições não se podem prever, explica a directora. "Nós nunca sabemos quando é que um coleccionador privado quer vender determinada peça nem podemos adivinhar quando é que alguém quer dar alguma coisa ao palácio. Mas temos de estar atentos ao mercado de leilões, saber ouvir as "dicas" dos amigos. O que nos interessa é ajudar a reconstituir o quotidiano dos que aqui viveram através de uma série de objectos que lhes passaram pelas mãos ou que fazem parte da história desta família, directa ou indirectamente."
Nestes últimos 25 anos, Silveira Godinho acumulou dezenas de histórias, mas poucas podem competir com a emoção do leilão de D. Manuel II - o neto de Maria Pia, que viria a reinar depois da trágica morte do pai e do irmão (no regicídio de 1908) e que seria forçado ao exílio com a implantação da República - e o das aguarelas de Enrique Casanova (segunda metade do século XIX), com representações detalhadas dos interiores do palácio, que viriam a servir de base a muitas das reconstituições que hoje vemos na Ajuda e que seriam importantes ferramentas de trabalho do programa Uma Sala Um Mecenas.
"As aguarelas do Casanova eram essenciais para o palácio e faziam parte de um conjunto que queríamos comprar. Lembro-me de andar a fazer acordos de bastidores com outros museus que estavam interessados e de, ao chegar lá, ter tido uma grande discussão com o representante do vendedor, que queria que as aguarelas fossem à praça uma a uma. Estava tão nervosa, fui buscar o meu alemão nem sei bem onde e inventei um conceito - o da "pulverização do património" - para lhe dizer que o que ele estava prestes a fazer era impensável. E lá o convenci e trouxe as aguarelas", que nesta exposição serão mostradas na biblioteca.
A emoção de Casanova repetiu-se quando Silveira Godinho viu ao vivo a laça de rubis e diamantes que hoje faz parte da colecção do palácio, mas que em 1994 pertencia a Diana Scarisbrick, coleccionadora e historiadora de jóias. "Estávamos em Paris e quando o estojo [da jóia] se abriu à minha frente fiquei sem respiração. Era magnífica", recorda. Há meses que tentava convencer Scarisbrick a vender a jóia que pertencera a D. Mariana Vitória de Bourbon, mulher de D. José I, e chegara o momento de lhe fazer uma oferta. Pedro Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, autorizara que se gastassem 30 mil contos (150 mil euros) e foi por essa quantia que a peça acabou por passar para os cofres da Casa Forte da Ajuda, construída em 1954, para guardar as jóias da família real. "Se entrasse no mercado, valeria muito mais", explica a directora, "mas a Diana percebeu o que ela significava para nós."
Em todos estes anos, a laça e o grande lustre da Sala do Despacho (que também custou 150 mil euros) foram os grandes investimentos do Estado em aquisições para o palácio. E de mecenato, é possível saber quanto é que o palácio recebeu? "Muito difícil", admite Silveira Godinho. "Há muitas coisas que não são quantificáveis a esta distância: algumas das peças doadas, as viagens, os vinhos das inaugurações, os aspiradores, máquinas de fax e radiadores que nos ofereceram..." Até a cozinha dos guardas do palácio foi construída e equipada com mecenato, diz. Isto porque, sempre que há "uma urgência" ou "um problema para resolver", a directora recorre à sua lista telefónica pessoal e contacta os "mecenas do costume". Os amigos do palácio são muitas vezes os seus amigos e familiares, sobretudo a sua mãe, Maria Eduarda Segura de Faria, coleccionadora atenta que ofereceu à Ajuda numerosas peças de ourivesaria e até o molde do busto de D. Pedro V que fecha a exposição.
"Esta exposição também é uma homenagem sentida à minha mãe, que morreu há 15 anos. Ela sabia bem que nunca tivemos verbas para aquisições no nosso orçamento. O dinheiro que chega é para o funcionamento e depois, é claro, o Estado faz algumas obras, como a das coberturas."
Projecto sempre adiado
A grande parcela de intervenções na Ajuda, no entanto, tem ficado a cargo do programa Uma Sala Um Mecenas, que já fez trabalhos de restauro e de reconstituição histórica em dez espaços do palácio, da Sala do Retrato da Rainha (Galp) à do Corpo Diplomático (Banco Finantia), passando pela antiga Sala do Bilhar (Finibanco). Dentro de duas a três semanas deverá ficar pronta a Sala D. João VI, onde se faziam os bailes, que está a ser restaurada com mecenato da petrolífera portuguesa, com base num orçamento de 300 mil euros, "que já foi largamente ultrapassado".Há quase dois anos que os técnicos trabalham em cima dos andaimes para dar uma nova vida às pinturas de Arcângelo Fuschini. "Esta sala é uma alegoria completa, com a aclamação de Lisboa... Mas deu muitos problemas e acabou por demorar mais do que estávamos à espera."
As contas ainda não estão fechadas, mas Silveira Godinho garante que através deste programa os privados já investiram mais de três milhões de euros na Ajuda. Agora, seria bom que este trabalho continuasse, diz: "O acervo já tem muitas peças. Daqui para a frente devíamos restaurar ainda mais salas."
Caso se venha a retirar em breve - "é uma ideia que já anda na cabeça" -, a directora da Ajuda deixa uma obra importante por fazer: a do remate do próprio palácio, com uma nova ala projectada pelo arquitecto Gonçalo Byrne no início dos anos 90.
"É a minha maior pena", reconhece, afirmando que "a nova ala permitiria ter as jóias do tesouro real expostas em permanência". Caso isso acontecesse, Silveira Godinho diz apostar que este palácio que em 2010 teve 39 mil visitantes "seria o monumento mais visitado de Lisboa" - lugar hoje ocupado pelo Mosteiro dos Jerónimos, com 645 mil no ano passado.
As jóias da coroa portuguesa são uma das grandes mais-valias do palácio e foram protagonistas de um dos episódios mais difíceis e mediáticos da carreira de Silveira Godinho, quando seis delas foram roubadas de uma exposição em Haia, levando a que a directora fosse duramente criticada por diversos especialistas do meio que tornaram públicas as suas opiniões sobre o caso. Hoje prefere não falar do assunto - "foi um período terrível, muito difícil" -, mas garante que o palácio não recebeu um cêntimo dos 6,2 milhões de euros de seguros que terão sido entregues ao Estado português em 2005 para minorar o impacto da perda das peças, entre elas um castão de bengala que pertenceu a D. José, uma gargantilha de brilhantes e um diamante em bruto de 135 quilates, um dos primeiros a sair das minas do Brasil. Silveira Godinho não quer sequer comentar o destino dado a esta verba, que em parte foi aplicada na compra de Deposição de Cristo no Túmulo (1767-1770), uma pintura tardia de Giambattista Tiepolo que hoje faz parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga e que terá custado dois milhões de euros.
"Não me compete falar em verbas, compete aos Governos, que já gastaram dinheiro no projecto de Gonçalo Byrne e no de João Carlos Santos, bem mais modesto mas muito adequado, encomendado por Gabriela Canavilhas", a última ministra da Cultura dos Governos Sócrates.
Enquanto permanecer à frente do palácio, continuará a bater-se por este e por outros projectos, sempre com as figuras de D. Luís e D. Maria Pia na cabeça, ele "humilde, discreto, mas brilhante", ela "mais mexida, com um gosto muito moderno".
Foi ao trabalhar com Francisco Louro, investigador e estudioso do casal real, que Silveira Godinho se deixou conquistar por D. Luís e D. Maria. "Com a morte do Francisco o palácio perdeu muita coisa, mas perdeu sobretudo o entusiasmo do homem que tirou D. Luís e Maria Pia do seu sono. Antes dele ninguém falava destas duas figuras muito populares na época, mas que ficaram esquecidas porque reinaram em prosperidade, entre um estadista nato que morreu cedo [D. Pedro V] e D. Carlos, um homem de ciência e de cultura que desapareceu em circunstâncias trágicas. Sem drama não se fica para a história."
Nos corredores da Ajuda, que ainda hoje serve de cenário a tomadas de posse dos Governos e a recepções a chefes de Estado, a família de D. Luís e de Maria Pia está por toda a parte. Nas jóias, nos retratos, nas esculturas junto às janelas, nas mantilhas que parecem ter sido deixadas há minutos nas costas de uma cadeira. Quase que podemos imaginar a rainha a contar histórias aos seus príncipes na biblioteca. "Era uma vez..."