Não é difícil perceber por que razão “Pornopopeia” tem deixado atrás de si um rastro de elogios desbragados: a menos que não se tenha um pingo de humor e um resquício que seja de imoralidade, é impossível não apreciar o anti-herói deste épico e a suruba (ou, portuguesmente, orgia) de prazer que é o trabalho de linguagem do autor, o brasileiro Reinaldo Moraes. Isto é o óbvio e é isto que toda a gente, de São Paulo a Londres, tem realçado. Mas “Pornopeia” é, felizmente, mais do que um festival de sacanagem com língua delirante.
O livro abre com o narrador, José Carlos Ribeiro, envolto num dilema: tem de acabar a sinopse de um vídeo institucional de frangos congelados durante a madrugada, visto ter dado cabo de todos os prazos, estar sem guito e o agente que lhe arranjou aquele trabalho não ter mais saco para os seus atrasos. A tarefa não lhe é fácil. Zeca não aprecia marketing nem o “caralhaquatring”, como diz, no seu humor peculiar. Antes de mais ele é um cineasta, premiado até, pese embora só tenha rodado um filme, “Holisticofrenia”, que lhe valeu a condição de maldito. Contudo, a sua arte alternativa não rende nas bilheteiras e o autor vê-se obrigado a fazer vídeos publicitários, isto quando não está a realizar pornografia, o que por sorte até bate com um dos seus amores: a buceta. (Não se pense que Zeca é monotemático; ele não aprecia apenas a buceta - também aprecia a xana, a xota, a passarinha, etc, num admirável manancial substantivo.)
Para aguentar a noite, Zeca precisa de um cadinho de coca que cata a Miro, o seu traficante - o que aliás já havia feito na noite anterior, a primeira em que se tinha sentado a escrever o guião. Dá-se então o primeiro recuo narrativo para recordar que, na noite de sexta para sábado, estava Zeca no seu sossego quando surge Ingo, o seu amigo tocador de cítara dado a misticismos, o vem convidar a participar numa cerimónia espiritual denominada (topem a coisa) bhagadaghadogha, de uma congregação cujo nome envolve a palavra “Surubramâne” entre outras de maior dimensão. Sedu-lo dizendo que se a líder espiritual gostar dele há dinheiro à séria para uns vídeos que pretendem fazer. Zeca diz não, mas entretanto a filha do vizinho de cima, seu companheiro de rambóia no Bitch, um tasco de putedo e coca que costumam frequentar, aparece na produtora com a amiguinha Sossô para pedir um livro sobre os Doors. Ingo enrola Sossô com a conversa da experiência surubramâne e quando o pobre Zeca dá por si está a atravessar São Paulo no carro com ácido a boiar-lhe na cabeça em direcção ao que virá a ser uma “puta suruba do caráio”, isto é, uma orgia dantesca.
Um dos feitos de Reinaldo Moraes é tornar tudo isto mundano, coloquial e natural: quem nunca adiou um trabalho por causa de amigos e um rabo de saias? Outro dos feitos é a forma extraordinária como trata as proezas sexuais do protagonista (antes de mais, não são bem proezas): Zeca conhece as suas limitações, sabe que tem a vantagem de ter olho azul, mas não é mais abonado do que o comum dos mortais. Contudo, tem entusiasmo e cada pormenor que Moraes descreve (e acreditem: ele descreve todos os pormenores) é simultaneamente vívido, credível e trespassado por um humor danado - isto graças à qualidade oral da escrita. Moraes não escreve “velho”, escreve “véio”; “calcar” passa a ser “carcá”; etc. E como por norma Zeca está toldado, a sua narração corresponde àqueles longos monólogos empolados típicos dos janados.
Isto é a vida de Zeca, o que implica deixar para segundo plano a mulher, Lia, uma socióloga que põe o filho de ambos, Pedrinho, numa escolinha alternativa. Na cabeça de Zeca, a escolha educacional da mulher é coisa de esquerdista da tanga, mas Zeca acaba por nunca soar um machista reaccionário absoluto porque na realidade a sua abordagem ao mundo não é da ordem ideológica; ele simplesmente sabe que um dia vamos todos morrer e quando isso acontecer quer estar a [rimar].
Esta madrugada consegue encher, à vontade, cento e tais páginas do romance - em parte porque Zeca narra como os cocados: tem teorias sobre tudo, trocadilhos para dar e vender, aforismos de trazer por casa (com os quais ele próprio goza), mistura cultura pop com erudição, inventa citações, faz pouco da sua incapacidade mental, deriva de um assunto para o outro como um alcoólico. Resumindo: para dizer que foi de Aveiro a Esgueira dá um giro por Coimbra e ainda contorna Olivença e bota fogo a toda a praça.
Entretanto Zeca resolve começar a descrever o que aconteceu de sexta para sábado, escrito que poderá vir a tornar-se guião do novo filme - mas acaba por ser o próprio “Pornopoeia”. Esta tarefa atrasa-o, pelo que ele precisa de mais pó, o que o leva a ir parar a um motel com uma prostituta de rua (que rouba, note-se) e depois acabar em casa de um transexual. No meio da viração cocainíca, Zeca dá por si a trepar o transexual, se bem que depois lhe dá um rebate de consciência, medo de ser viado, ainda por cima pôs a mão na rola do/da outro/outra (é confuso). Aqui “Pornopoeia” torna-se maior: as pequenas angústias sexuais de Zeca (com que o próprio Zeca não quer lidar) fazem deste quase misógino quase misantropo mais humano do que a maioria dos cidadãos bem-comportados que se dizem oh tão respeitadores da diversidade. É que o comportamento de Zeca vai pondo em causa o seu próprio machismo: à partida, um buceteiro deste calibre nunca deixaria um trans molhar o seu bico; porém (e por causa do pó), Zeca dá por si enleado no vagénis (como lhe chama) e não ganha rancor ao homem. Quando, mais à frente, Zeca se vê obrigado (coitado) a trepar uma senhora de 63 anos, tem de ir à memória repescar jovens ninfetas que traçou para conseguir hastear a bandeira. Põe-se mais em causa a masculinidade nessas páginas do que em quilómetros de literatura sensível.
O esquema é: para trabalhar vai ser precisa coca, mas no pico da coca sai desvario e de desvario em desvario tudo vai descambando. Zeca vara a mulher do vizinho e amigo, saca mais pó e, enquanto saca o pó a Miro, este acaba morto numa troca de balas entre um gangue e a polícia. Zeca rouba todo o pó que Miro trazia, volta ao prédio pela garagem, esconde a coca roubada, acaba o guião (pilhando outro guião antigo), dá uma saltada ao Bitch e pede ao vizinho (com cuja mulher tinha coiso umas horas antes) as chaves da sua casa em Porangatoba, para onde se põe a andar.
A segunda parte do romance abre já com Zeca em Porangatoba, vivendo a vida: praia, chopinho (ele chama breja), cochilo na rede, muita leitura, mas nada de buceta. A estadia é paga com o dinheiro que o cunhado lhe tinha adiantado para as despesas da produtora - ou seja, Zeca não deu dinheiro para a mulher poder tratar da criança, não pagou à secretária da produtora e ainda por cima viu o guião do anúncio ser rejeitado, pelo que teria de devolver o adiantamento que recebera. Entretanto a polícia de São Paulo está atrás dele: acusam-no de ter morto Miro. Na realidade, a bala que matou o traficante veio da polícia, mas a polícia está a braços com investigadores que a acusam de abuso de força, pelo que tem de encontrar outro culpado: ele.
Ele, claro, em vez de se pôr a terreiro e preparar a defesa, vive a boa vida, o que inclui: seduzir a estalajadeira de 63 anos a quem diz que está a ser procurado pela polícia por não ter pago a pensão; seduzir uma pita de uma praia próxima, cujo namorado, ao descobrir da traição, fará explodir o carro de Zeca e espancará a namorada, acusando posteriormente Zeca de violação. Como diria Balotelli: “Why always me?”
E etc. “Pornopopeia” tem sido comparado aos Henry Millers e aos Bukowskis, mas é um erro. Miller e Bukowski eram escritores menores que nunca é de mais menorizar. Moraes é outra loiça. A estrutura de “Pornopopeia” (alguém que busca um fim mas que não consegue evitar cair nos mais inesperados buracos, sendo que a cada queda-queca corresponde um momento de acção) é uma espécie de variação pícara dos romances que satirizavam as histórias de cavalaria - é, por assim dizer, um “El Buscón” (de Quevedo) do empernanço narcotizado, um romance de cavalgadura.
É um estudo sobre a sacanagem brasileira, eventualmente aplicável a todos os países em que o submundo convive paredes meias com a classe média e com aqueles lugares de que cujo nome o próprio diabo se esqueceu; goza com um certo protótipo de macho brasileiro, mas, mais importante do que isso, cria uma personagem inesquecível, que, tal como um daqueles homens de Hemingway, não muda. Nada do que acontece altera Zeca, ele não aprende nem desaprende, ou sequer se arrepende.
Mais do que um épico, “Pornopopeia” é um priépico, um épico com priapismo e muita baixaria, o retrato mais ajavardado dos entrefolhos do Brasil. No seu exagero deliberado, no humor cáustico com que Zeca mira o mundo, na sua irredutível procura de prazer, encerra-se mais do que uma sucessão de bucetas - por mais que queiramos ver aqui apenas gozação, “Pornopopeia” é um tratado sobre as cegueiras da masculinidade, um dos mais cómicos avisos sobre os perigos da sobredose de testosterona produzidos no século XXI.