O que esconde o "plano Relvas"?

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A condução dos assuntos de Estado deve reger-se pela clareza dos objectivos, pela legalidade dos processos e pela transparência das decisões. Exige competência, seriedade e, sobretudo, deve ser guiada pelo interesse público. Infelizmente, não é o que tem acontecido há, pelo menos, vinte anos com a tutela da televisão. Desde Couto dos Santos até Relvas, os sucessivos ministros tomaram decisões lesivas do interesse público, ou porque foram ditadas por uma agenda oculta, pela precipitação, pela negligência ou pela ignorância, ou porque não se mediram as consequências, ou porque, medindo-as, se teve em conta os interesses privados em detrimento do interesse público. Abra-se uma excepção para Morais Sarmento, que, depois de ter anunciado com estrondo a privatização de um canal da RTP, arrepiou caminho quando se apercebeu de que iria abrir uma caixa de Pandora, e acabou por salvar a RTP da bancarrota a que as decisões dos ministros de Cavaco e Guterres a haviam conduzido.

De facto, Relvas, no seu afã de mostrar que é ele quem manda na RTP, tem multiplicado as intervenções, num percurso sinuoso e errático, caracterizado pelo improviso e pela precipitação, anunciando medidas cuja coerência é difícil de sustentar. O problema é que, no meio da confusão que instalou, a RTP tem sido o bombo da festa, e, com isso, a estação pública vai sendo fragilizada, alguns dos melhores quadros podem desertar, e os verdadeiros desafios e oportunidades da Televisão Digital Terrestre (TDT) ficam, mais uma vez, por discutir e resolver.

Senão vejamos: Relvas começou por anunciar que o seu Governo iria privatizar um dos canais generalistas da RTP com o intuito de reduzir os custos da empresa. Nomeou um grupo de trabalho (GT) de dez pessoas (dirigido por uma maioria de gente sem conhecimento na matéria) que, em part-time e pro bono, lhe iria dizer, em 60 dias, o que era o serviço público de TV! Mas, com um frenesim desabrido, não esperou pelo parecer do GT e ordenou, entretanto, à administração da RTP que lhe fizesse um plano de sustentabilidade, em que sacrificasse um dos canais generalistas, despedisse pessoas e reduzisse a despesa. Em poucos dias, o presidente entregou-lhe um relatório de três páginas e meia em que desmantelava a empresa à medida das pretensões do ministro e propunha, imagine-se, a partilha dos meios entre a RTP e o futuro comprador de um dos seus canais. Mas que mantinha a publicidade.

O plano, de tão absurdo, mereceu a reprovação unânime do Conselho de Opinião e, por sua vez, também não coincidia com as conclusões do GT, que, de tão insólitas, foram condenadas pela opinião pública, e desprezadas, suavemente, pelo próprio ministro. Entretanto, ao mesmo tempo que manifestava o seu amor pela RTP e o seu firme propósito de lhe reforçar a credibilidade, nomeadamente no plano internacional, o ministro anuncia, sem explicar o fundamento e ultrapassando o quadro legal e o contrato de concessão em vigor, que a RTP iria deixar de ter publicidade! Numa simples declaração, Relvas enterrou o plano da administração, que assentava na manutenção da publicidade no canal remanescente. Isso não impediu o ministro de anunciar que iria reconduzir o presidente da administração, a quem acabara de chumbar o plano de sustentabilidade, que havia sido feito à medida do que ele próprio havia exigido!

Chegados a este ponto, é altura de exigir ao ministro que se explique. O Parlamento tem a obrigação de o confrontar com as suas tergiversações, com as mudanças de opinião, com o desprezo pelos pareceres e planos que ele próprio encomendou, com as contradições entre objectivos e soluções, com a ausência de sustentabilidade das medidas que anuncia, com a falta de clareza sobre o que está por trás das decisões que toma dia-sim-dia-não.

O que quer o ministro? Entregar um canal da RTP a algum grupo de comunicação social? Qual? E é nacional ou estrangeiro? Se é isso, bastaria reabrir o concurso da TDT, onde, a partir de 26 de Abril do próximo ano, deixa de haver restrições tecnológicas para o aparecimento de um novo operador. O Plano Relvas, portanto, só pode esconder um negócio, cujos contornos são obscuros: a venda, não da licença, que, só por si, não vale nada, mas de activos, esses sim importantes, da RTP. Quais? Os arquivos? O nome? Uma parte dos equipamentos e das instalações? As audiências fidelizadas? Os meios, que, no plano proposto pela administração, seriam autonomizados e passariam a servir dois patrões concorrentes: a TV pública e o novo privado? E quanto arrecadaria o Governo por mais esta depredação? Quaisquer dos cenários seria motivo de escândalo, mas sobretudo de escárnio por parte dos nossos parceiros europeus e da própria União Europeia de Radiodifusão, pela sua estapafúrdia originalidade que nos iria cobrir de ridículo! Mas há mais: os actuais detentores das licenças, que há pouco tempo foram renovadas - a SIC e a TVI -, não iriam aceitar passivamente uma solução que, além de modificar as regras da concorrência a meio do jogo, representava uma vantagem competitiva para o novo operador, que seria certamente desaprovada pela Autoridade da Concorrência e pela própria UE.

Qual é, então, o propósito? Reduzir os custos do operador público, com a redução de um canal? Se é, as medidas não colhem. Primeiro, porque o que se poupa com o sacrifício de um canal perde-se na cedência da publicidade, o que iria, portanto, agravar a despesa pública e baixar ainda mais a qualidade. Resta saber que canal se privatiza. A RTP 1 (que se dirige às maiorias) ou a RTP 2 (dedicada a minorias)? Além de ninguém, até agora, ter conseguido explicar como se faz serviço público com um único canal generalista, esta decisão não é dispicienda. Se for o primeiro canal, o Estado pode poupar entre € 40 e 50 milhões/ano. Mas, como é sensivelmente o mesmo que perde com a cedência da publicidade, seria uma medida de benefício nulo, e que nos custaria o sacrifício de um canal público de grande audiência e a redução do serviço público nacional a um canal marginal, uma espécie de PBS americana. Com uma agravante: a RTP teria que criar, de raiz, uma estrutura equivalente à do actual 1.º canal, que assegurasse o essencial da produção da informação e dos programas que actualmente fornecem os canais regionais, temáticos e internacionais, e que assim se veriam privados da sua principal fonte de alimentação. Se for a RTP2 (que, hoje em dia, é uma espécie de contentor de programas, com custos mínimos), as economias poderão representar pouco mais de uma dezena de milhões de euros, quando o que se perde com a alienação da publicidade é três vezes superior. Ou seja, uma operação duplamente ruinosa para os contribuintes: menos um canal público, pior qualidade e mais custos para a empresa.

O que se pretende, então? Fechar um canal só para provar que o Governo está preocupado em cortar na despesa, mesmo sem ter garantia de que apareça um comprador? Basta de amadorismo, de leviandade e de precipitação. O que faria sentido seria, isso sim, encomendar um estudo sério e fundamentado a um grupo de especialistas, que os há (na própria RTP, existe gente capaz, mesmo sabendo que alguns dos melhores saíram ou foram afastados, vítimas dos despedimentos indiscriminados e dos ataques sistemáticos à credibilidade da estação) para fazer uma avaliação severa, rigorosa e exigente do desempenho da estação pública, clarificar as suas obrigações, redimensionar a empresa à medida das novas missões - e da possível obsolescência de outras -, e, em função disso, definir uma estratégia para o futuro, sanear e modernizar algumas estruturas, lançar novos canais temáticos (como estão a fazer outros países, e como está previsto, aliás, no contrato de concessão, e que teriam custos de escala irrisórios comparados com os benefícios de tornar aliciante a conversão à TDT), libertá-la da tutela do Governo, assegurar-lhe um financiamento estável, e sujeitá-la a um escrutínio público regular e rigoroso.

Só uma nota para terminar: o problema da existência ou não de publicidade na TV pública tem duas dimensões. A primeira é económica: a publicidade diminui os custos para o contribuinte. A outra é comercial: o corte da publicidade num canal, sobretudo num canal com uma programação tendencialmente distintiva, é uma restrição para os anunciantes, que assim se vêem privados de um ecrã importante para publicitar os seus produtos. Fora isso, a hipótese não me choca: vários países europeus a adoptaram, a começar pelo Reino Unido, que nunca a aceitou desde a sua fundação. Mas, a concretizar-se, é preciso que não seja feita novamente (como fez o Governo Guterres) em prejuízo dos recursos financeiros da RTP, o que se traduziria, inevitavelmente, em sacrifícios ainda maiores na qualidade da programação.

Mas, se for essa a opção, ela deve ser ponderada de modo a assegurar duas coisas: primeiro, que não se criará nenhum outro canal generalista, por aquisição de um canal da RTP ou simplesmente por concurso na futura TDT; segundo, que esse benefício dado aos actuais operadores, que vivem num estrangulamento financeiro que tende a agravar-se com a crise actual, exige contrapartidas - as contrapartidas que não foram exigidas na altura da renovação das licenças pelo Governo Sócrates: um investimento na ficção original portuguesa que permita ir além da produção de telenovelas; e um caderno de encargos com obrigações e restrições em matéria de programação.

A propósito da votação do Orçamento e das propostas da oposição, o ministro Relvas veio dizer que era "preciso saber ouvir, para saber agir". É isso que se espera dele. Talvez acabe, como Morais Sarmento, por salvar a RTP das suas próprias investidas.

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