Encontros, folias e visões: no comboio da Rota da Seda

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Crianças de visita ao museu de Turkemenbashi

Visitam-se as antigas cidades-estado do Uzbequistão, mas também as novas fantasias arquitectónicas do Cazaquistão e do Turquemenistão. Pelo meio fazem-se escalas insólitas, conhece-se gente do outro mundo e contemplam-se algumas das paisagens mais lunares da Ásia Central. Luís Maio (texto e fotos) embarcou num comboio, às voltas e à margem da lendária Rota da Seda

A Rota da Seda nunca existiu, não certamente no singular. Deu-se esse nome ao que na realidade era uma teia de itinerários terrestres, ligando comercialmente a China e a Europa. Essa rede começou a desenhar-se com a invasão da Ásia Central por Alexandre O Grande e manteve-se activa até à descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. Ou seja, o famoso rodopio de caravanas acabou muito antes da inauguração do transcáspio - a linha de caminho-de-ferro introduzida pelos russos, em finais do século XIX, na sequência da expansão czarista para a Ásia Central.

O transcáspio é o verdadeiro suporte da Rota da Seda em Comboio, programa comercializado desde há cinco anos pela Lernidee, companhia alemã pioneira na exploração turística do transiberiano. O comboio sai de Astana para Achkabad uma vez pelo menos na Primavera e outra em sentido inverso no Outono. Leva quinze dias a ligar as duas cidades, atravessando três países com nomes acabados em "istão" (sufixo que vem do nome para país em língua persa): Cazaquistão, Uzbequistão e Turquemenistão. Os comboios e as tripulações russas empregadas no transiberiano de Maio a Setembro são os mesmos que asseguram o programa da Rota da Seda antes e depois disso.

Uma diferença substancial é que a Rota da Seda de comboio é uma invenção, ao passo que o transiberiano turístico deriva e alterna com uma carreira regular. A mística ferroviária não pode ser igual, mas em compensação o comboio da Seda faz escala em lugares lendários, dando a conhecer algumas das mais espectaculares obras-primas da humanidade. Mais do que um roteiro de monumentos e memórias distantes, desembarca em sítios que por razões geográficas ou até políticas raramente recebem turistas. A presente agenda política desses países e até a reactivação de alguns troços da Rota da Seda resultante do novo apetite da China pelas matérias-primas dos vizinhos são realidades sempre latentes ou mesmo vislumbradas, mesmo se não chegam a ser realmente afloradas.

A Rota da Seda de Comboio é então um programa turístico raro, original e na presente versão bastante elitista, logo pelo preçário, que não está ao alcance ± de qualquer um. Mas é um luxo que vale definitivamente a pena, como pudemos constatar na viagem que realizámos em finais de Outubro passado. Partimos de uma Achkabad ainda sob um Verão tardio para chegarmos duas semanas depois a uma Astana coberta de neve, com os termómetros a descerem aos dez graus negativos.

Folias turcomenas

Anexados ao Império Russo, divididos e subjugados pelos bolcheviques, os povos do "istão" têm também histórias pós-soviéticas muito semelhantes. Os três países cobertos declararam a independência há cerca de vinte anos, só para passarem a ser governados por tiranos, supostamente eleitos por sufrágio universal. A prioridade desses governantes tem consistido em explorar os enormes recursos naturais dos respectivos territórios, mais frequentemente para edificarem monumentos, ou mesmo cidades inteiras à sua própria glória. Dos três, o mais desconhecido e fechado é, sem dúvida, o Turquemenistão, o segundo pior do mundo em liberdade de expressão (logo a seguir à Coreia do Norte), onde um visto de entrada custa umas férias inteiras noutro sítio qualquer e mesmo depois de carimbado só permite circular na companhia de um guia oficial.

Por isso, e não só, o Turquemenistão se veio a apurar como o troço mais inesperado do programa. Começou pela aparente bizarria de um dia inteiro de comboio, depois de um dia inteiro de avião, apenas com meia dúzia de horas de cama de hotel pelo meio. Tudo isto para ver, já noite cerrada, uma das crateras de gás de Darveza. Isto em pleno deserto de Karakum, 300 quilómetros a norte da capital Achkabad e já completamente fora da Rota da Seda. Se era uma manobra de diversão, no entanto, haverá que reconhecer que resultou em pleno. A cratera de gás de Darveza é mesmo uma visão única e, mais do que isso, uma experiência do outro mundo.

Resultando de ensaios abortados de exploração de gás, nos anos 50, duas crateras acabaram preenchidas por lama borbulhante, mas a terceira continua em chamas. O calor abrasador, os múltiplos focos de combustão, o buraco enorme que se vai cavando, mais a falta de iluminação e de qualquer cerca de protecção, são do género de causar calafrios. O suficiente para metade da excursão arrepiar caminho, mesmo antes de assomar à sua beira. Darveza é uma aberração contranatura e um desastre ecológico, sem dúvida, mas poucos lugares no mundo proporcionarão uma experiência tão intensa e abismática.

Igualmente invulgar se revelou Achkabad, ou o que dela nos foi dado a ver de relance. Foi, vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, uma excursão típica da era soviética: no programa estavam visitas a monumentos e sítios arqueológicos que não interessam a ninguém, enquanto pelo caminho se entrevia uma capital faustosa, novinha em folha, feita de torres de mármore, amplas avenidas e zonas ajardinadas no meio do deserto. Houve então que romper o programa e fugir às instruções dos guias para levantar um pouco o véu sobre esta espécie de nova utopia totalitarista.

O terceiro dia no Turquemenistão foi ainda mais esquisito. As autoridades não deixaram o comboio parar por enigmáticas razões políticas em Merv (uma das capitais da antiga Rota da Seda), forçando-o a fazer escala mais à frente, em Turkemenbashi. É a segunda maior cidade do país, já nas vizinhanças do Uzbequistão, sobretudo importante do ponto de vista geoestratégico, mas onde não há rigorosamente nada para ver. Acabou por ter mais piada por isso mesmo: primeiro fomos às ruínas de uma fortaleza, tão arruinadas que eram indecifráveis, levando a maior parte da excursão a descolar para uma visita improvisada a uma fábrica de tijolos nas imediações, para grande irritação dos guias.

Os ditos guias não estavam num dia de sorte e foram depois incapazes de encontrar o terminal fluvial do rio que passa pela cidade, acabando por estacionar à porta de uma fábrica aparentemente abandonada, de onde saiu um segurança aos gritos que não se podia entrar, nem fotografar, vá-se lá saber porquê. A cereja em cima do bolo Turkemenbashi foi a visita ao museu local, com o principal espaço de exposição preenchido com imagens do actual presidente Berdimuhamedow a cortar fitas, a tocar acordeão, a andar de moto e a apertar a mão a Kofi Annan. Políticos e seguranças à parte, os turcomenos devem ser um dos povos mais hospitaleiros à face da terra, sobretudo os habitantes desta cidade no cu de Judas que recebem os turistas ocidentais como amigos de longa data.

Samarcanda e o coração da Rota da Seda

Os três dias de Turquemenistão foram, no entanto, pouco mais de um aquecimento para as verdadeiras estrelas do programa. Estrelas de pleno direito, diga-se de passagem, mas (ainda) com estatuto de culto. De Samarcanda toda a gente ouviu falar - no entanto, muitos nem sequer sabem onde fica e mesmo agora, passadas duas décadas sobre a independência, a cidade mais famosa do Uzbequistão está longe de ser um destino do turismo de massas. Menos ainda são as excursões a Bukhara e Khiva, os outros dois vértices do triângulo da Seda, apesar de recolherem a preferência de muitos viajantes independentes.

Nas três cidades cumprimos programas centrados na receita dos cinco emes (mausoléus, madrassas, mercados, mesquitas e minaretes), escoltados por um desses guias que têm horror ao silêncio. Todas as visitas previam, no entanto, bastante tempo livre para vaguear à vontade por sítios esplêndidos, frequentemente desertos. Raramente se cruzaram outros estrangeiros, certamente menos que uzbeques de férias, boa parte em excursões religiosas só de homens ou só de mulheres.

O tema dessas romarias foi uma das surpresas de Samarcanda. O apogeu da cidade está associado a Amir Timur, mais conhecido por Tamerlão, conquistador brutal e sanguinário, uma das figuras mais sórdidas da história da humanidade. Mas o cruel imperador, que conquistou meio mundo no século XIV, era também um homem com gosto pelas artes e pela arquitectura e a ele se devem alguns dos principais monumentos de Samarcanda. Ora, o que hoje se verifica, vinte anos transcorridos sobre a declaração da independência, é todo um movimento de reabilitação de Tamerlão como herói nacional. Assim se explicam as estátuas gigantes que o invocam um pouco por todo o lado no Uzbequistão, mas também os grupos de peregrinos que vão de propósito rezar ao seu mausoléu, em Samarcanda, aproveitando para fazer pelo caminho a rota das "capelinhas" erigidas pela dinastia Timurida.

Em termos arquitectónicos, o núcleo antigo de Samarcanda é inexcedível. O seu Registan, ampla praça dominada por três majestosas madrassas (escolas corânicas), é o principal conjunto monumental da Ásia Central. Mas é também um sítio mágico, sobretudo ao fim do dia, quando se acendem as faianças multicolores que cobrem as suas fachadas de alto a baixo. O Registan concorre em termos de popularidade, mas também de requinte artístico, com a a extraordinária Shah-I-Zinda, a avenida dos mausoléus, onde se encontram algumas das mais exuberantes composições de cerâmica do mundo árabe. Igualmente admiráveis são a mesquita Bibi-Khanym, o observatório de Ulugbek (neto astrónomo de Timur), ou ainda os achados arqueológicos de Afrosiab, a antiga Samarcanda.

Estas e mais atracções da cidade encontram-se disseminadas por uma série de ilhas monumentais, sitiadas por avenidas soviéticas, pólos industriais e campi universitários. Já o centro histórico de Bukhara é mais compacto e mais tradicional, rodeado por uma rede de bazares especializados, que em boa parte ainda conservam o comércio tradicional, da ourivesaria ao fabrico de móveis. O ícone da cidade é o minarete Kalon, mandado construir por Arslan Khan, em 1127, com 47 metros de altura e 14 bandas ornamentais. Uma peça de arquitectura tão imponente que foi das poucas que Genghis Khan poupou à sua devastadora passagem, em 1220. Igualmente soberba é a vizinha madrassa Mir-i-Arab, o extraordinário naipe de mausoléus que fazem de Bukhara o lugar mais santo do Uzbequistão, a cidadela ou ainda o extravagante palácio do seu último emir da cidade. µ

± A menos célebre e mais remota Khiva acabou, no entanto, por se revelar como a melhor surpresa da viagem. Outra cidade-estado que enriqueceu pelas piores razões - sobretudo o comércio de escravos, que controlou desde o eclipse dos Timuridas, nos inícios do século XVI, até à chegada dos exércitos russos, no século XIX - é porventura aquela que hoje melhor reflecte a Rota da Seda. A sua colecção de palácios, cidadelas e mesquitas, coroadas por um extraordinário conjunto de minaretes, é tão impressionante como se encontra bem preservado. A grande vantagem é que aqui não há edifícios modernos nas proximidades e os cerca de dois mil habitantes entre muros mantêm escrupulosamente a traça antiga dos edifícios. Tão ou mais importante do que isso, em Khiva os conservadores trabalharam de forma bem mais rigorosa, não inventando nem falsificando monumentos como aconteceu em Samarcanda.

Uzbequistão profundo

Depois das cidades-museu, as montanhas carecas de Kashkadarya. À espera numa manhã enevoada estavam três camionetas da era soviética e um carro de polícia para nos escoltar por estradas esburacadas, entre magras pastagens frequentadas por cabras e perus, toscas casas de adobe e telhados de zinco, e magotes de crianças a assomarem às janelas para acenar aos turistas.

O destino era Langa Atar, uma terriola nas faldas da serra, dessas que não vêm nos mapas. À espera estava a aldeia inteira com a oferta de pão quente e um show de casamento. O ancião da aldeia deu-nos as boas-vindas, antes de engatar num discurso de meia hora na língua dele em que agradeceu a meio mundo, inclusive aos russos, que trouxeram as escolas e a electricidade. O casamento era a fingir, mas a sua encenação revelou-se de uma candura deliciosa e a empatia criada com os nativos foi certamente o momento mais emotivo da viagem.

Shakhrisabz, a etapa seguinte, trouxe mais casamentos, mas desta feita modernos e a sério. A paragem justificou-se pelo Palácio de Ak-Saray, porventura a obra mais ambiciosa de Timarlão, mandado construir no lugar que o viu nascer e onde era para ser sepultado. Desse prodígio resta apenas o pishtak, o portal monumental do palácio. É mesmo assim uma ruína majestosa que se eleva a 40 metros de altura e dá perfeitamente a entender a grandiosidade do edifício a que serviu de entrada, dispensando as suspeitas reconstruções do período soviético que se testemunham em Samarcanda.

O esplendor da ruína de Ak-Saray certifica-a como um dos sítios mais procurados do país para festas de casamento. Esse pitoresco é outro atractivo da visita, valendo sobretudo a pena fazer uma incursão nos terreiros cobertos ao lado do monumento, onde centenas de convidados dançam em fila versões tecno de canções românticas, enquanto cobrem os noivos (sempre vestidos à ocidental) de chuveiros de notas.

Tasckent, capital do exótico soviético

O programa para a manhã em Tasckent era focado em Khast Imon, o centro religioso oficial do país. É lá que se encontra o Uthman Quran, o Corão do século VII, considerado o mais antigo do mundo. O colossal volume em camurça enrugada, onde se alinham arabescos extraordinários, mereceu certamente a romaria. Já o conjunto de mesquitas e mausoléus em redor se apurou bastante redundante depois de Samarcanda, sobretudo quando pelo caminho se foi vislumbrando uma cidade cheia de atractivos modernos e singulares.

Capital do Uzbequistão desde que o país se tornou numa república autónoma, em 1930, Tasckent é uma cidade na maior parte construída segundo um modelo soviético. Uma das excursões que é obrigatório fazer é circular no metro, vigiado por polícia armada até aos dentes e ambiente 100% Guerra Fria (proibido fotografar). Mas as estações forradas a mármore e iluminadas com candelabros gigantes constituem uma inesperada declinação do metro de Moscovo, especialmente eloquente na estação que celebra a memória dos cosmonautas russos em enormes pratos cerâmicos.

Várias estações de metro têm, por outro lado, decorações cerâmicas de padrões geométricos, declinando influências islâmicas, que se foram acentuando na cidade à medida que se aproximava o fim da Cortina de Ferro. O que na verdade faz a diferença de Tasckent é um ramalhete de edifícios e obras públicas num estilo soviético-orientalizado, entre os quais se destacam o elegantíssimo Teatro Alisher Navoi, o fantasmagórico Circo, a orwelliana Torre de Televisão e o ondulante Hotel Uzbequistão, que até parece saído da cartilha de Oscar Niemeyer.

Islam Karimov, ex-primeiro secretário do Partido Comunista e presidente do Uzbequistão desde a declaração de independência em 1991, tem seguido o guião soviético tanto na falta de democracia como nas obras monumentais. A sua preferência parece, no entanto, ir para o estilo Palladio à moda de Washington, patente em edifícios como o Fórum, o Senado ou o Palácio das Quatro Salas. Estas obras serão menos fantasistas e bastante mais kitsch que os precedentes soviéticos, mas isso é discussão que fica para outra viagem.

Astana, a Samarcanda do século XXI

O comboio foi servindo para comer, dormir e chegar aos sítios durante a maior parte desta Rota da Seda revisitada. Já a experiência de estar a caminho ficou reservada para a recta final, o dia e meio que levou a percorrer non stop mais de 1600 quilómetros, desde a entrada no Cazaquistão até à chegada à capital Astana. Altura para pôr conversas em dia, beber uns vodkas e contemplar o longo desfile de estepes a perder de vista, acabadas de cobrir de uma fina camada de neve. Uma paisagem de uma monotonia hipnótica, daquelas que embalam a vista e fazem sonhar acordado, subitamente cortada pelo artifício urbano de Astana.

Porque tudo em volta é ainda e só estepe, não havendo um oásis, nem outros favores da natureza que justifiquem a implantação desta capital, que é justamente o que Astana quer dizer em cazaque. Na verdade, a capital histórica do país era Almaty, cerca de mil quilómetros a sudeste, até o megalómano presidente Nazarbaev decidir construir uma nova em meados dos anos 90, aproveitando o imenso espaço livre na margem esquerda do rio Yesil, frente a uma pequena cidade provinciana.

Aproveitando a riqueza súbita da antiga república soviética - território imenso, escassamente povoado, prendado com imensas reservas de petróleo, urânio, ouro e mais -, Nazarbaev resolveu construir de raiz uma cidade futurista, que se mantém em estaleiro até 2030. Na maior parte já edificada está o Nurzhol Bulvar, eixo monumental da nova capital, ao longo do qual se alinham edifícios tão excêntricos como uma "Casa Branca" de cúpula azul que funciona como Palácio Presidencial, uma torre em entrelaçado de 97 metros de altura, coroada por um ovo dourado, que funciona como um símbolo da felicidade, ou ainda uma fonte cantante, que desempenha jogos de água e música em horário de Verão. A montra de arquitectura iconográfica que é Nurzhol Bulvar abre e fecha e com edifícios de Norman Foster, uma pirâmide de luz, aço e vidro numa ponta e na outra uma tenda que é um centro comercial com uma praia por cima.

Diz-se que Astana é o Dubai das estepes. Para quem lá chega depois de cruzar a antiga Rota da Seda parece muito mais uma Samarcanda do século XXI. Quer também dizer que a nova capital cazaque é o ponto de chegada perfeito para uma viagem sob o signo do mito e da fantasia na Ásia Central.

A Fugas viajou a convite da Trópico

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