Temos medo dos mortos

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A dificuldade em contar uma história de uma camponesa mártir, Catarina Eufémia, que vive apenas na lenda onstruída da sua morte, é o veículo para João Tordo diagnosticar os problemas do Portugal de hoje MIGUEL MANSO

João Tordo descobriu Catarina Eufémia e através dela reconstrói, com alguma ironia e imenso afecto, a memória da esquerda pós-25 de Abril. "Anatomia dos Mártires" recupera a história para fazer um frio e lúcido diagnóstico do presente de Portugal. São José Almeida

Cristalino como água, o aviso vem logo na primeira página: "A minha carreira ainda não tinha importância, o meu pai ainda não enlouquecera e eu ainda não compreendera nada, isto é, ainda não me dera conta de que a nossa existência era indissociável da memória dos mortos." (p. 13) João Tordo diz assim ao que vem e o que o traz a construir um romance que tem como ponto de partida e como eixo central a busca dessa mesma memória, centrando-se na figura mítica de Catarina Eufémia, a camponesa alentejana de Baleizão assassinada pelo Tenente da GNR Carrajola, com três tiros nas costas, em 1954, quando lutava por melhor salário.

"Anatomia dos Mártires" (Dom Quixote), é um romance feliz.

Feliz porque é conseguido: tem um objectivo claro e atinge-o. Feliz porque está escrito de um modo envolvente, com ritmo e expectativa. E com uma enorme capacidade de fazer retratos, de agarrar fragmentos do que é Portugal hoje e do que é a esquerda portuguesa pós 25 de Abril, com uma impressiva lucidez, um distanciamento, possibilitado por o autor ser já da geração seguinte, uma fina ironia, mas igualmente e acima de tudo um aconchegante carinho.

"Nós enterramos os assuntos, temos medo dos mortos". Em conversa com o Ípsilon, Tordo vai também directo ao eixo central deste seu romance, que sendo sobre Catarina Eufémia e tendo até um pendor ensaístico na abordagem da história da camponesa mártir e ícone antifascista - revelando uma aturada e sistemática pesquisa histórica -, não se confunde em nada com um romance histórico, nem a isso tem qualquer pretensão.

A geração e o passado

A "Anatomia dos Mártires" - quinta obra do autor - é um romance sobre o presente. Sobre o Portugal de hoje e sobre as dificuldade que a sociedade portuguesa tem em resolver os seus problemas, ansiedades e expectativas.

João Tordo explica que "ao pensar e investigar da história de Catarina" se foi dado conta do presente: "Comecei a dar-me conta de como a minha geração é muito ignorante sobre a história e o passado. Nascemos num tempo de alguma liberdade - a liberdade que há é relativa, mas é alguma liberdade - e somos uma geração que se perde na ignorância. Muitas vezes saímos à rua com um cravo na mão sem sabermos como as coisas chegaram ao que chegaram."

E é com todo o à-vontade e toda a modéstia que João Tordo assume a sua ignorância e a curiosidade de saber que o leva a este livro. "Cheguei ao assunto como ele chegou a mim. A Catarina surge-me tarde, tinha eu 34 anos, quando li, pela primeira vez, uma reportagem sobre as contradições da sua história", conta e prossegue: "Pouco tempo depois, uma realizadora francesa disse que ia fazer um filme sobre ela. E depois a Catarina voltou a surgir-me na exposição "Povo, Povo", no Museu da Electricidade. Fui à net e comecei a perceber como a sua história estava mal contada."

Seguiu-se ano e meio de pesquisa e a decisão de fazer o romance. "Quando comecei a investigar não sabia o que ia fazer, mas depois transformou-se num vício, li, investiguei, falei com investigadores. Não sabia se seria ensaio. Depois percebi que só podia ser contado como ficção. No caso de Catarina nem sequer há documentos para contar a história. Não há nada. Só a história que foi contada de boca em boca. É uma voz muda. É uma mártir diferente, por exemplo, de Che Guevara que até deixou diários."

A dificuldade em contar uma história de uma camponesa mártir que vive apenas na lenda construída da sua morte e após esta, mas que se transformou em veículo para João Tordo diagnosticar os problemas do Portugal de hoje. "Quase não se fala da história de Catarina, como não se fala de muito do passado português, por exemplo, a a guerra colonial. Se a Guerra Colonial, com aquela dimensão, que é de uma grande e longa guerra, fosse americana ou inglesa, eles tinha logo feito filmes e livros. Cá não há nada. Foi preciso trinta anos para o Joaquim Furtado fazer a série."

Afectividade com a esquerda de Portugal como país constrói-a Tordo através da recuperação da esquerda e da geração do 25 de Abril, protagonizadas pela figura do pai e do chefe de redacção. "Há em mim uma afectividade com a esquerda, a importância do PCP como única força de esquerda antifascista durante as primeiras décadas de ditadura, o facto do meu pai ter sido militante comunista", explica João, filho do cantor Fernando Tordo.

E é a geração anterior e a sua, no Portugal de hoje, com os seus bloqueios, que estão presentes neste livro que relata a história de um jornalista sem nome. "Não nomeio as personagens principais, são o meu alter-ego e muito do que escrevo é autobiográfico", explica João Tordo que passou profissionalmente pelo jornalismo, depois de se licenciar em Filosofia e estudar Jornalismo. E que é povoado pelo seu chefe de redacção, Rui Cinzas, um antigo comunista que vive da memória de um passado e da desilusão dos seus ideais, o seu pai, que vive também da memória de um 25 de Abril e de um passado que defende ainda com fervor, o amigo do jornalista, Afonso, um executivo de sucesso que vê este seu sucesso esvair-se como areia entre os dedos com a crise financeira, e as duas namoradas do jornalista, uma de nome Gilda, empregada numa loja de um shopping, outra uma jornalista irlandesa, Lorna Figgis, que o protagonista conhece em Berlim e que reencontra em Lisboa, onde vivem juntos, durante um curto período.

É, aliás, através de Lorna, que João Tordo traz à trama narrativa a comparação com a Irlanda. "Queria contrapor ao mártir involuntário, que é a Catarina, um mártir voluntário e fui buscar Bobby Sands [membro do IRA, preso como alegado autor de um atentado à bomba, morre em 1981, na prisão, na sequência de uma greve de fome feita por dez presos do IRA que reivindicavam tratamento como presos políticos, um mês antes de morrer e apesar de preso e debilitado é eleito deputado ao Parlamento britânico]. Vivi na Irlanda e a Irlanda tem uma relação com a história muito forte. É uma questão de afirmação de identidade nacional. Os irlandeses conhecem o passado, exportam- no, exportam a coisa irlandesa."

Convicção colectiva

João Tordo, porém, não afirma certezas. Limita-se a fazer sobretudo diagnósticos. "O que o livro retrata da actualidade não sei se é tanto uma crítica. É mais o desencanto que atingiu a geração dos nossos país e que agora surge na minha geração." Um desencanto que explica usando, por exemplo, a sua relação da sua geração com a política, os partidos e as ideologias. "Mesmo a memória política e de esquerda que temos é uma memória afectiva, nada disso faz parte da minha vida, a política não faz parte da minha vida porque tive liberdade, não liguei à política porque estou bem." Mas rejeita leituras redutoras: "É claro que dizer que a minha geração não tem ideais, é um cliché. Temos ideias diferentes, como é normal."

Mas afirma com toda a clareza que o seu livro é "um reconhecimento da falência da Europa" Ou seja: "Acreditámos em muita coisa que não vai ser cumprida. Ainda há dias, ouvi Mário Soares dizer que é preciso salvar isto. Mas o país não se salva com números. A política chegou a um ponto em que os políticos só vão à televisão falar de números." E é contundente a identificar os bloqueios. "A minha geração não lutou, nunca fez uma luta, não sabe como lutar, não sabe como reagir a esta repressão financeira. E isso tem a ver com o facto de a nossa herança ideológica estar perdida."

Romance frio na análise, duro no diagnóstico, brutal no retrato, "Anatomia dos Mártires" não é, contudo, um texto de desistência, um texto de capitulação individual. É um romance que convicção no colectivo que surpreende o leitor com um final quase épico, de renascimento interior da personagem principal, que depois de perder tudo - família, namoradas, emprego - encontra na memória do passado e dos seus mortos colectivos e individuais e na amizade com Afonso, a força para viver, para ter um futuro. "É sim, é um romance de convicção no colectivo, porque a convicção tem que ser colectiva, tem que ser de uma geração inteira", afirma assertivo João Tordo. E insiste em falar sobre o país e a crise que se vive em Portugal: "Sem entendermos os sítios de onde viemos, sem entendermos os mortos, muito dificilmente poderemos sair disto. Isto não é uma crise que se resolva com números, é uma crise ideológica. São coisas muito mais profundas que a crise da dívida e os problemas da Grécia, tem a ver com a crise de uma ideologia que está errada. É claro que tem que se resolver o problema da dívida porque é nesses padrões que o mundo pensa e funciona hoje. Mas depois temos de tratar da nossa cabeça da nossa relação com o passado."

Por isso, frisa que é preciso questionarmos o passado, as nossas várias Catarinas Eufémias, cuja história está esquecida e ninguém discute. "O que é que correu mal em Portugal? Qual o nosso problema com a história?", pergunta, respondendo: "A lenda diz que o Dom Sebastião um dia vai voltar, mas os portugueses não querem que ele volte. Não queremos encarar o passado."

Voltando de imediato às interrogações." Não sei se é das descobertas e do seu falhanço, se do desenvolvimento do colonialismo, de termos um passado com conflito." Para responder mais uma vez, sem parar no discurso da sua inquietação. "Não sei porquê, mas, a seguir ao 25 de Abril, o país do conflito deixou de existir e, nos anos 80, éramos pessoas que vivíamos felizes porque tínhamos o Cavaco e íamos ao shopping. Estava tudo bem porque era o país do Cavaco. Esquecemos o passado, dizemos que tínhamos liberdade e que estava tudo bem. E não estava."

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