Diálogos musicais da diáspora portuguesa
Segundo volume dedicado ao diálogo entre as músicas eruditas e populares da diáspora portuguesa, "Terra" do agrupamento Sete Lágrimas terá a sua estreia no dia 3 num concerto no CCB. Mayra Andrade e António Zambujo são os convidados especiais. Cristina Fernandes
Com um percurso que explora em paralelo a música antiga e contemporânea e os repertórios da tradição oral, o agrupamento Sete Lágrimas, com direcção artística dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, é um caso singular no panorama português. Não só promove um diálogo entre estéticas diversas, como o papel dos seus músicos ultrapassa a mera vertente interpretativa e assume uma intervenção directa nos repertórios através de arranjos, improvisações e olhares inesperados. Em 2008 os Sete Lágrimas lançaram com grande sucesso "Diáspora.pt", um projecto que explora as relações estéticas e linguísticas da música dos países do cinco continentes visitados pelos portugueses nos Descobrimentos, e esse passou a ser um dos caminhos marcantes do grupo. Um segundo volume, "Terra", acaba de sair e terá a sua apresentação oficial num concerto no CCB no dia 3, às 21h.
"O concerto inclui o repertório do novo disco mas também uma selecção natural do primeiro "Diáspora.pt" e ainda uma terceira vertente, já que convidámos Mayra Andrade e António Zambujo a participar", explicou Filipe Faria ao Ípsilon. "Cada um deles vai cantar uma peça nossa - a Mayra canta a morna "A força de cretcheu" e o António o lundum "Menina Você que tem", que gravou connosco no 1º volume - mas os Sete Lágrimas também vão interpretar trechos do repertório deles como o "Odjus fitchádu" e "Barroco Tropical"." Este será o primeiro concerto do Tríptico da Terra, o projecto que os Sete Lágrimas se propõem desenvolver ao longo desta temporada na condição de Ensemble Associado do CCB. A "Terra" segue-se "Vento" em Fevereiro e "Pedra", em Maio, com a colaboração da cantora Maria Cristina Kiehr.
Viagem
Conforme escreve Rui Viera Nery no texto que acompanha o novo CD, "Terra" é "uma viagem por repertórios escritos e orais, mais próximos ou mais remotos, de teor ora mais erudito, ora mais popular, que reflectem uma vivência de seis séculos de partilhas artísticas intensas num mundo interligado pela primeira vez pelas caravelas portuguesas e marcado no decurso desse tempo longo por luzes e sombras, dores e alegrias, violência e paixão de que a Música dá testemunho." Entre outros géneros e formas de expressão podemos encontrar o vilancico ibérico (também cultivado na América Latina por compositores como Gaspar Fernandes e Filipe da Madre de Deus), músicas populares do Brasil, Índia, Timor, Portugal e Espanha, a modinha, o fado e os romances sefarditas."Houve muita coisa que ficou de fora na primeira colecção pelo que a possibilidade de um segundo volume ficou logo em cima da mesa", diz Filipe Faria. "O critério é o mesmo, mas fomos mais longe no campo da interpretação." Nessa perspectiva, destaca a colaboração com o contrabaixista Mário Franco, "um músico de jazz com imensa experiência na música antiga e antigo bailarino da Companhia Nacional de Bailado", e com o percussionista Rui Silva, "que estava trilhar o caminho da música sinfónica mas teve sempre com uma grande apetência pelas músicas do mundo." Na sequência dessa colaboração, iniciada há três anos, o projecto acabaria por adquirir uma linha condutora especial ligada às vozes dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, à percussão e ao contrabaixo, no sentido em que estes dois instrumentos se emancipam do seu papel de acompanhamento e se tornam solistas. "Há peças que surgem na sequência da visão que estes dois músicos nos deram do que poderia vir a ser uma prática quase de fusão entre a música antiga, as músicas do mundo e o jazz." Filipe Faria dá como exemplo a modinha "Cruel Saudade", de Manuel José Vidigal, e "Dorme, dorme meu menino", em que as duas partes são acompanhadas por um solo improvisado de Mário Franco. "Quando colocamos uma peça a dialogar com outro contexto imaginamos o que daí pode resultar, mas as nossas ideias prévias foram completamente ultrapassadas pela interpretação do Mário."
O contrabaixo e a percussão contracenam com outros instrumentos igualmente importantes como as flautas e o oboé de Pedro Castro (que transporta as técnicas da variação e da ornamentação barroca para o fado "A Rosinha dos Limões"), as guitarras e o alaúde de Hugo Sanches e a viola da gamba de Sofia Diniz. "Cada músico oferece um olhar diferente e seu sobre a proposta que apresentámos em cada arranjo ou partitura", refere Filipe Faria.
O co-director artístico dos Sete Lágrimas considera que ""Terra" é um disco mais maduro, resultado de um triénio fabuloso, em crescendo, com muitos concertos e com hipótese de experimentar e rodar muitos projectos." Depois de 11 anos de trabalho e de sete discos gravados, o grupo está a começar a chegar à maioridade e "a um ponto de equilíbrio que permite apresentar no mesmo ano um projecto como "Silêncio" [com obras contemporâneas de Ivan Moody, João Madureira e Andrew Smith e a estreia de "Lamento póstumo de Inês" com música de Madureira e texto de José Luís Peixoto] no Festival das Artes de Coimbra e algo como o CD "Terra"", que será objecto de numa digressão em 2012 que inclui Itália (Rovereto e Bolzano) e Áustria (Innsbruck). "Este é um dos caminhos que queremos percorrer - despir de preconceitos e de limitações o que é cada uma destas músicas e começar a fazê-las dialogar - mas não é o único", sublinha Filipe Faria. Um próximo CD ("En tus brazos una noche"), com música de Manuel Machado (Lisboa, c. 1590 - Madrid, 1646), está já na forja e tem lançamento marcado para Abril de 2012 durante os Dias da Música no CCB.