Free jazz: 10 discos (parte 2)

O Bodyspace seleccionou uma dezena de obras do "free jazz", estilo surgido em meados da década de 60

Foto
Angela Costa

Evan Parker - "The Snake Decides" (1988)

Incus

Por toda a glorificação mais do que merecida do trabalho do Evan Parker em colaboração com quase todos os grandes do jazz e territórios mais ou menos indefiníveis da música mais transgressora, descurar as investidas a solo do mestre é ignorar uma parte importantíssima para a compreensão daquilo que faz dele o maior saxofonista vivo do mundo (aberta a discussão? É como tudo na vida...). "Six of One", de 1980, já deixava na eminência um fôlego infinito, capaz de chegar do "skronk" mais agreste a uma delicadeza quase "drone", num contínuo ininterrupto, mas é em "The Snake Decides", gravado para mítica Incus seis anos depois, que é sublimada uma linguagem absoluta.

Foto

Com o título a apontar para os encantadores de serpentes de países como o Sri Lanka, o Paquistão ou a Indía (há um disco lindo na Hanson gravado pelo Aaron Dilloway a documentar isto), fica patente a ideia de hipnose como fim último. E é aí que "The Snake Decides" chega, elevando esse efeito ao ponto de uma massagem de tareia feita de "overtones" e justaposições multifónicas em respiração circular, num abismo de luz que parece nunca ter fim. Coisa linda de colossal, em quatro malhas improvisadas em saxofone soprano (destaque para os 20 minutos da faixa-título logo a abrir) captadas em todo o seu imenso potencial pelas mãos sábias de Michael Gerzon numa capela em Oxford, num daqueles discos cuja lógica "ad infinitum" irá sempre revelar novas camadas de significado. Sempre. 


Alan Silva and his Communion Orchestra - "Luna Surface" (1970)

Actuel

Com um catálogo absolutamente impressionante na documentação do jazz mais "avant-garde" (o termo é mau, mas serve para situar o "happening" de modo simples), várias seriam as opções a ter em conta para este artigo colectivo vindas com o selo da francesa "Actuel". A escolha recaiu em "Luna Surface", mas poderiam ter sido igualmente apanhados discos tão incríveis como o "Echo" do Dave Burrell, o "Mockey-Pockei-Boo" do Sonny Sharrock ou o "B-Xo/N-O-1-47a" do Anthony Braxton. É orientar tudo, assim que possível.

Contando nas suas fileiras com gente como o Archie Shepp, Grachan Moncur III ou os já citados Braxton e Burrell, a Celestrial Communion Orchestra vai disparando em direcção ao cosmos sob a batuta invisível do contrabaixo do Alan Silva (quase sempre tocado com arco), num poder de fogo incomensurável, vindo/chegando de todo = nenhum lado. Revolvendo continuamente num “caos” interno de comunicação extra-sensorial feérico, é música tão urgente hoje como o terá sido em 1969, imune a toda e qualquer preconcepção de "ensemble" ou "score". Disco absolutamente libertário, essencial para toda e qualquer pessoa com um mínimo de interesse na música improvisada, "Luna Surface" é um dos momentos-chave da arte "pan-africana" mais "far out". Momento de comunhão com vista ao patamar último da elevação espiritual, numa sessão irresoluta partilhada por 11 músicos brilhantes num acto de entrega total. 

Sugerir correcção
Comentar