Quando o teatro questiona a fé

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No dia da estreia da peça de teatro Gólgota Picnic, a 16 de Novembro, cerca de 100 manifestantes ligados ao grupo católico de direita Institut Civitas apresentaram-se à porta do Théâtre Garonne, em Toulouse. Estavam em protesto contra a "cristianofobia" do encenador, o polémico argentino Rodrigo García. Repetiram a acção nos restantes dias de apresentação da peça, juntando no último dia, um domingo - 20 -, quase 500 manifestantes. Entretanto, as atenções do grupo voltaram-se para a Internet, preparando a chegada da peça a Paris, onde estreia no próximo dia 8, no Théâtre du Rond-Point, como parte da programação do emblemático Festival de Automne.

Não foi a primeira vez este ano que o Civitas contestou a apresentação de peças dedicadas à problematização da fé. No fim de Outubro, durante as apresentações de Sur le concept du visage du fils de Dieu, do italiano Romeo Castellucci, vários manifestantes do grupo invadiram o palco do Théâtre de la Ville, em Paris, acusando também este encenador de "cristianofobia". Dessa vez, atentaram contra os espectadores com facas e pedras e ameaçaram perseguir a equipa artística e todos os envolvidos no espectáculo. Relançaram assim o debate sobre o conflito entre religião e estética, que encheu as páginas dos jornais e dominou os debates públicos num país normalmente orgulhoso da sua laicidade.

Desde então foram identificadas pela polícia 200 pessoas sob suspeita de perturbação da ordem pública e ameaça à integridade física e 15 delas foram ouvidas em tribunal. Da esquerda à direita foram vários os políticos, artistas e até mesmo membros da Igreja que condenaram a acção do grupo extremista. Este, por seu lado, não cessou as suas investidas durante toda a apresentação da peça. Os membros do grupo juravam defender os valores cristãos, em oposição a uma peça que punha no centro da discussão a abnegação cristãa partir do dilema de um filho perante um pai com insuficiência renal. Castellucci transforma o sacrifício de Jesus aos desígnios de Deus numa reflexão, também, sobre a cropologia (estudo das fezes) e a escatologia (um "encontro entre a teologia e a filosofia que reflecte sobre o fim do mundo", como dizia o encenador ao P2 em Julho, em Avignon).

Medo de Deus em criança

O próprio ministro da Cultura, Frédéric Mitterrand, declarou que "sendo o teatro o lugar da liberdade de expressão", o princípio da liberdade de expressão não pode "servir de desculpa nem justificar os métodos violentos usados por grupos [cujas ideias] vão contra a democracia".

Para Christophe Bourseiller, especialista em grupos religiosos extremistas, entrevistado para o portal Vents Contraires, a defesa da "cristianofobia" prende-se com "um sentimento de injustiça" sentido por alguns sectores da Igreja Católica, "muitos deles com o aval do Vaticano". E explica: "Estes grupos acreditam que se não se pode tocar na estrela de David [o símbolo do judaísmo], nem atacar Maomé, arriscando sermos assassinados, por que se considera que no caso de Jesus Cristo não há limites?". Bourseiller diz mesmo que estes grupos consideram que "a justiça tem que ser reparada".

Sem ter visto nenhum dos dois espectáculos, num comunicado, Alain Escada, secretário-geral do Instituto Civitas descreve Gólgota Picnic como "uma ignóbil mistura de blasfémias e perversões", pelas suas cenas "no limite da pornografia", surpreendendo-se "por nada ser feito para interditar o acesso às crianças", apesar de a peça ser interdita a menores de 18 anos. Escada insiste na "aproximação impúdica destinada a apresentar a iconografia cristã como a imagem do terror e da barbárie". Emanuel Demmarcy-Mota, director do Théâtre de la Ville e do Festival de Automne, que viu a peça na estreia em Toulouse, dizia nessa altura ao P2 estar do lado do encenador: "A defesa da estética e do discurso artístico faz muito mais sentido quando, nem sempre concordando com os artistas, essa liberdade é posta em causa por pressões infundadas".

García não recusou alimentar a polémica. Ao contrário de Castellucci, que havia escrito uma carta pública perdoando os manifestantes, abriu a peça afirmando-se "envergonhado por a apresentar rodeado de polícias", sabendo, contudo, que se assim não fosse, se poderiam dar incidentes graves. Numa entrevista incluída no programa do espectáculo explicava que "a ideia de trabalhar a partir da Bíblia era já antiga": "Quando cito frescos ou retábulos, faço desvios para não enfrentar o medo que tinha de Deus quando era criança, o meu adeus a Deus e ao medo de Deus no qual deixei de acreditar quando tinha dezasseis anos (graças a um livro de Schopenhauer)." Explicava também que não pôde contar com a ajuda de teólogos, porque aquele que encontrou assustou-se com o título da peça (Gólgota significa calvário).

García diz que revisitou "passagens da Bíblia como se lê banda desenhada", construindo assim a sua própria leitura. "Claro que, comparada com o original, é pobre e tosca." Diz que a Bíblia representa "o imaginário, a beleza da palavra, a utopia", mas também "a violência extrema e, sobretudo, a injustiça". E explica: "Toda a doutrina é reprovável, porque ela se constrói sob o princípio de nos salvar." Será por isso que, numa das cenas da peça, um anjo caído de pára-quedas no palco diz aos espectadores que nada pode ensinar sobre guerras, violações e pedofilia porque os homens sabem mais do que é possível ser-lhes ensinado.

Na mesma entrevista García diz que se tivesse que escolher entre os livros da Bíblia aquele que melhor exemplificasse as contradições da própria Bíblia escolheria o Livro do Eclesiastes, que, atribuído ao rei Salomão, reflecte sobre as vaidades humanas, sugerindo um desapego às riquezas e tentando fazer compreender a bem-aventurança que existe na pobreza. "Está de tal forma emprenhado de contradições que não oferece saída. É, ao mesmo tempo, o fel e o mel."

É verdade que o teatro de García, fazendo-se magnânimo, se sustenta numa provocação muitas das vezes primária, fruto de uma encenação que procura construir uma iconografia plástica ao mesmo tempo que tenta a sua completude através das referências do espectador. O arcebispo de Toulouse disse, contudo, que García "brincava com a fé de muitos crentes" e que "se queria denunciar ferozmente todas as formas de fundamentalismo e rebelar-se contra um Deus todo-poderoso que temia desde criança" errou o alvo: "Esses não eram os fundamentos proclamados pelos cristãos."

Uma das imagens que mais polémica causaram implica um pianista, Marino Formenti que, nu, toca uma adaptação de AsSeteÚltimas Palavras de Cristo na Cruz, de Haydn. Para o intérprete, esta "é uma declaração de amor passional a Cristo por um homem que não é crente no sentido dogmático do termo". Formenti diz compreender que a imagem "possa ser perturbadora para certos católicos mas que a provocação não é o objectivo principal [da peça]".

Direito à indignação

A reflexão teológica veio através de um texto enviado à comunidade eclesiástica francesa, difundido pelo jornal católico La Croix, onde Pascal Wintzer, administrador apostólico de Poitiers e responsável pelo Observatório da Fé e Cultura, escrevia: "Ao quererem exprimir a sua revolta com estes espectáculos, martirizam também as relações que a Igreja Católica sempre se esforçou por alimentar com as artes e os artistas". E, reconhecendo o direito à indignação, mas alertando para as manipulações que pudessem estar a ser feitas por elementos extremistas, escrevia: "Não há cultura "pura", nem uma cultura mais apta a exprimir a fé cristã. Admiti-lo, praticá-lo, seria "expurgar" de cultura, por exemplo, as igrejas. Com que critérios? Que expressão artística poderia ser "pura"? E qual a "impura"? O diálogo entre "o Evangelho de Deus" e as culturas não coloca uma realidade face a outra. Encontramo-nos frequentemente entre dois iconoclasmos. Os dos encenadores que recusam imagens suavizadas de Deus, imagens que escondem os dramas e os sofrimentos. E a iconoclastia dos que "protegem" as únicas imagens idealizadas, preferindo destruir as outras. Não se pode negar que existe, de um e de outro lado, uma provocação voluntária. Mas a dos artistas não é da mesma natureza que a dos manifestantes." E alertava: "Se chegarmos ao momento em que um já nada tem a dizer ao outro, ou onde o outro não aceita nada do que lhe é dito, poderá ter vencido o triunfo individual, mas a comunhão humana estará em perigo."

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