A menina da fotografia cresceu e chama-se Maria da Conceição Tina
Nos anos 60, Gérald Bloncourt fotografou uma criança portuguesa num bidonville em Paris, os bairros de lata construídos pelos emigrantes. A imagem haveria de se tornar num ícone da emigração portuguesa, mas o fotógrafo haitiano só este ano descobriu a sua identidade. Maria da Conceição Tina foi conhecê-lo a Paris e descobriu-se a si própria.
Querido Gérald,
Agora não tenho dúvidas. Aquela criança na fotografia sou eu. Ao princípio custou-me a acreditar. Olhava a imagem, nova para mim (o que parece inacreditável, já que ela até esteve exposta ao lado de outras imagens do Gérald, mais do que uma vez em Portugal, incluindo no Museu Berardo, em Lisboa, há apenas três anos), e revia-me naquele rosto, naquele sorriso. Reconheci a boneca que foi a paixão da minha vida, o espaço lamacento do bidonville de St Denis, onde passei dois anos com a minha família, mas tinha dúvidas.
Desde logo, porque não me recordava de alguém me tirar uma fotografia. Sei que só tinha cerca de seis anos naquela altura, mas como é possível que não sobrasse nenhuma memória de um homem como o Gérald, de máquina fotográfica na mão, ali? Só de pensar na impressão que me deixou, quando o vi em Junho, em Paris, parece impossível. É tão alto. Um homem enorme, com umas mãos muito grandes e um olhar tão terno. Foi estranho, sabe, porque, quando o vi, a sensação que tive foi que já o conhecia. O Gérald diz que naquele dia da foto, no bidonville, eu fiquei à espera que me fotografasse, sorridente. Se calhar foi por isso que me pareceu tão familiar, em Junho. É claro que nessa altura eu já estava cem por cento certa que aquela criança, que baptizara Petite Portugaise, era eu. Foi um percurso que fizemos juntos, recorda-se?
Quando um amigo da minha terra natal, Vila Nova de Foz Côa, me telefonou, em Janeiro, e disse que eu tinha uma foto na Internet, no bidonville, lá em St Denis, eu não queria acreditar. Acho que não lhe cheguei a contar, mas este amigo era filho da dona Isabel que fez a viagem a salto para França comigo, a minha mãe e o meu irmão. Ele disse-me que queria mostrar a uma pessoa como tinha sido a vida de alguns foz-coenses em França, digitou "bidonville" no computador, e apareceu aquela fotografia. Quando me contou, pensei que era impossível, mas ao ver a imagem, lá estava eu. Parecia eu. Era a minha cara, a minha boneca e nas mãos tinha a bola de azeite (filhós) tão típica do Natal português.
Não sabe a quantas pessoas mostrei a imagem, inquirindo: acham que sou eu? Todos me diziam que sim. Incluindo a minha mãe. Mas a fotografia é tão bonita que tive medo que ela dissesse sim só por dizer. Só que não tinha como fugir à verdade e ainda bem que segui o conselho de outro amigo, que me incitou a desfazer as dúvidas, e o contactei. Nunca me vou esquecer como ficou emocionado, quando lhe disse que eu era a menina da fotografia. Nem como trocámos tantas mensagens, verificando datas e lugares, até não restarem quaisquer dúvidas. Até Janeiro, eu era a Maria da Conceição, mãe de três filhos e professora de Português e Francês. De repente, passei a ser a criança na fotografia e não sabe o tanto que isto significou.
Eu não estive muito tempo em França. Foram apenas seis anos, mas é um período que - admito-o hoje - sempre quis esquecer. Não vale a pena fugir das palavras e o que eu sentia era vergonha. Em Foz Côa e com a minha família, não me importava de falar dos tempos passados no bidonville e no pequeno T1 que o meu pai haveria de comprar em Aubervilliers, mas era assunto que eu não discutia fora desse círculo de conforto. Aqui, em Coimbra, praticamente ninguém sabia. Eu achava que as pessoas não iriam compreender a miséria pela qual eu passara e que o melhor era esconder esse período da minha vida. Já sei, já sei que está a pensar que eu estava errada e hoje concordo consigo.
Ao descobrir a minha imagem, ao descobri-lo a si, percebi o quanto entende o seu trabalho como uma forma de denunciar o que está errado. Conheço, finalmente, a forma como viveu intensamente a realidade da emigração portuguesa (e não só) nos anos 60, como sempre defendeu os seus interesses, mostrando as condições em que viviam. Vivíamos. Afinal, também é um emigrante em Paris, que fugiu de uma ditadura no Haiti, não é?
Eu não. Eu queria fugir de tudo o que me lembrasse aquele período. Não via, conscientemente, documentários ou imagens sobre os bidonvilles. Mas fiquei diferente depois de Janeiro. Tomei consciência que é preciso falar. É preciso mostrar o que a política da época nos fez passar, sobretudo agora, com a situação política que vivemos. Neste momento, infelizmente, apesar de tudo o que passámos, estamos a voltar ao mesmo. A minha filha do meio, de 24 anos, tem o curso de Enfermagem, mas não consegue arranjar emprego e está a pôr a hipótese de ir para o estrangeiro. Isto é muito triste para mim. Não só pelas saudades que terei dela, mas porque acho que estamos muito mal em termos políticos, quando um país não é capaz de aproveitar os seus jovens licenciados e os obriga a fazer, de novo, o que os seus pais ou avós já fizeram. A partir.
É certo que hoje falamos de uma emigração diferente. Na década de 60, éramos emigrantes com pouca cultura e hoje não é assim. E tudo era feito na clandestinidade.
Nós, conforme lhe disse, fomos a salto, como toda a gente. O meu pai foi primeiro. Não éramos extremamente pobres, tínhamos uma vida razoável, em Foz Côa, mas o meu pai era um homem muito aventureiro e queria uma vida melhor. Ainda tentou ir para Angola, onde tinha família, mas o Salazar não deixou. Era preciso ter uma carta de chamada e foi-lhe recusada. Ele, então, decidiu emigrar. Foi em 1962, um dos primeiros de Foz Côa a emigrar, mas muitos haviam de o seguir. A minha mãe ficou em casa, com dois filhos, eu e o meu irmão mais velho, que hoje ainda vive fora do país, em Espanha. Ela aguentou cerca de dois anos, com as poucas notícias do meu pai e o pouco dinheiro que havia. Depois, decidiu ir ter com ele, sem o avisar. Comunicou apenas à família lá na terra que, apesar de discordar, a ajudou a arranjar o dinheiro para pagar ao passador. Depois, começou a preparar-nos para a partida. Ela insistia que não podíamos contar a ninguém, mas eu não queria ir e dizia-lhe que ia contar a um vizinho, que pertencia à GNR. Foi nessa altura que ela me prometeu uma boneca, assim que chegássemos a França. A boneca da fotografia, está a ver? A minha mãe cumpriu a promessa e comprou-a mal lá chegámos.
Partimos mais ou menos nesta época do ano, no início de Novembro, nós os três, a dona Isabel com um bebé de colo e mais um homem de Foz Côa. Lembro-me perfeitamente de páginas da viagem. Lembro-me da escuridão, porque viajávamos sobretudo de noite, para não corrermos o risco de ser encontrados. Recordo-me do frio e das caminhadas, porque a viagem era feita sobretudo a pé. E ainda hoje tenho uma fobia que associo a essa época. Tenho pavor de ratos. Se vir um ratinho minúsculo, começo a gritar, perco o controlo e subo para cima da primeira coisa que encontro. Sabe porquê? Durante o dia éramos escondidos em grutas, buracos, e havia ratazanas até mais não. E, depois, nos bidonvilles, era exactamente igual. Ainda para mais, as senhoras no bidonville adoravam contar histórias de ratos que subiam pelas camas e ratavam as orelhas às pessoas. Tudo à nossa frente, as crianças.
Da viagem também me recordo de irmos a caminhar nos Pirenéus, no escuro, e de ouvir o grito de um homem que caiu. Os trilhos eram estreitos, nós tínhamos de avançar sempre, ninguém parava, e acho que o homem deve ter morrido, porque caiu por ali abaixo e ninguém parou para o socorrer. Estas são as más memórias, mas também há coisas boas. Tenho paixão por chocolate, adoro-o, quem me quiser ver feliz é oferecer-me chocolate. E, que me recorde, a primeira vez que comi chocolate foi nessa viagem para França. Acho mesmo que a minha família nem conhecia o chocolate antes, mas na viagem era uma das coisas que nos davam para nos alimentar. Ainda hoje consigo sentir o sabor daquele chocolate.
Não sei quanto tempo durou a viagem, mas, quando chegámos a Paris, enfiaram-nos num táxi e largaram-nos num bairro de homens, dizendo que era ali que estava o meu pai. Não era verdade e valeu-nos um português que, por estar doente, não tinha ido trabalhar naquele dia. Ele teve pena de nós e ajudou-nos a chegar à morada certa. O meu pai partilhava um apartamento com vários companheiros, não havia mulheres. Imagine a cara dele quando nos viu. Nessa noite dormimos ali, mas precisávamos de uma alternativa e o meu pai não tinha dinheiro para arrendar uma casa. Naquela altura, recorria-se às pessoas amigas e onde é que elas viviam? Nos vários bidonvilles. Nós fomos para St Denis e estivemos lá algum tempo, cerca de dois anos, numa barraca. Ainda consigo visualizá-la.
Tinha uma divisão pequena à frente, que funcionava como sala e cozinha, e tinha outra atrás onde dormiam os meus pais, de um lado, e eu e o meu irmão, do outro. Era de madeira, revestida com placas. Casa de banho não havia, era uma, exterior, para toda a gente. E tomávamos banho uma vez por semana, numa bacia plástica. A minha mãe aquecia a água no fogão e tomávamos banho ali, naquela cozinha-sala minúscula. Se viesse a minha casa, hoje, o Gérald veria que tenho cinco casas de banho. Acho mesmo que são as divisões mais bonitas da minha casa e não tenho dúvidas que essa minha paixão vem dos dias no bidonville.
Mas, em geral, a sensação que tenho é que nós, as crianças, éramos felizes. Aliás, o Gérald disse-me que do que mais gosta na minha fotografia é de eu parecer uma criança feliz. Eu também acho que era. Os adultos trabalhavam imenso, mas nós ficávamos no bidonville, à guarda de uma senhora que tomava conta de todos. Durante esse tempo, não fui à escola. Só quando nos mudámos para Aubervilliers é que ingressei na escola primária.
E, agora que falo nisso, deixe-me contar-lhe algo que ainda hoje me enche os olhos de lágrimas. Quando fui ter consigo a Paris, a 26 de Junho, para que, finalmente, nos pudéssemos conhecer, não fui directa a sua casa, recorda-se? Estão a fazer um documentário sobre a sua vida e quiseram entrevistar-me antes de nos vermos. Até filmaram o nosso encontro, minutos depois, como se deve lembrar. Mas, antes, quando me preparava para aquela entrevista num jardim perto de sua casa, eu pensava que seria tudo muito fácil. Acreditava que aquele período estava arrumado na minha cabeça e que não teria qualquer dificuldade em responder às perguntas que me fizessem. Mas a verdade é que foi muito difícil para mim. Foi a primeira vez que tomei consciência do motivo pelo qual, aos 12 anos, disse à minha mãe que queria regressar a Portugal. E vim, ficando a viver com a minha avó até os meus pais regressarem também, cerca de um ano depois.
Durante a entrevista, fez-se luz. Deu-me uma dor de cabeça tão forte, mal conseguia falar, tivemos de interromper a entrevista, antes de eu admitir o que tinha tentado esquecer. Eu tinha uma professora primária muito racista. Tratava-me por "la petite portugaise", mas não com a intenção que o Gérald teve, quando pôs esse nome na minha fotografia. A forma como ela o dizia magoava-me, porque era discriminatória. Eu tentava ultrapassar isso, estudando, sendo boa aluna, mas não conseguia, porque era sempre a "petite portugaise". Só este ano é que me apercebi disto, e foi duro. Foi o facto de o Gérald e a sua fotografia, tirada há tantos anos, terem entrado na minha vida que me levaram a assumir, plenamente e perante toda a gente, esta minha vida de emigrante.
Hoje, acredito que é preciso falar. É preciso falar muito sobre tudo o que passámos. Sei que o Gérald, apesar dos 85 anos, continua a fotografar, continua a denunciar a miséria que existe, sempre que pode. E ainda bem que assim é. Mas deixe que lhe diga - duvido que alguma das pessoas que fotografa se sinta, alguma vez, como eu me senti, quando vi que a minha fotografia estava exposta na sua sala. Como eu me senti quando, naquele dia em que o visitei e em que demos um abraço tão forte, o Gérald me disse que eu sempre tinha feito parte da vida da sua família, que os tinha acompanhado sempre, eternizada naquela imagem, pendurada na sua sala, que quis divulgar a preto a branco, mas que era originalmente a cores, como as cópias que me deu.
Eu sou a petite portugaise dos bidonvilles miseráveis de Paris. Mas sou também a Maria da Conceição, tenho 52 anos, um marido que continua a gostar muito de mim, apesar de tantos anos de casamento, três filhos maravilhosos e, agora, estou a ir atrás de um sonho antigo.
Fui professora quase durante 30 anos, mas desde Agosto que já não sou. Adorava dar aulas, adorava estar na sala de aulas com os meus alunos, mas detestava a papelada toda em que o ensino actual está mergulhado. Por isso, arrisquei, e estou a dedicar-me ao artesanato e à pintura, sonhos antigos que me acompanharam sempre. Só não fui para Belas-Artes porque, naquela altura, só havia escolas no Porto e em Lisboa e era impensável para a minha família eu ir sozinha para uma dessas cidades. Acabei em Coimbra, a estudar línguas, porque era aí que tinha um tio um pouco mais velho. Não me arrependo, mas agora acho que tudo se conjugou para ir atrás deste sonho antigo. Quero abrir uma loja de flores e artesanato. Vamos ver. Quero encontrar o Gérald de novo, surpreendê-lo. Espero que isso possa acontecer em breve. Por enquanto, quero que saiba que a sua petite portugaise já não tem vergonha do seu passado e é uma mulher feliz.
Até breve.
Este trabalho foi escrito a partir de conversas com Maria da Conceição e o fotógrafo Gérald Bloncourt