Perder o cabelo não tem de ser o fim do mundo

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A alopécia areata é uma doença auto-imune pouco conhecida - mesmo para os médicos, que continuam à procura das causas de um problema que atingirá entre 10 mil e 20 mil portugueses e que pode levar à perda total de pêlos no corpo. E depois? A vida continua, como mostram as quatro mulheres com quem a Pública falou.

Cátia Andrade lembra-se ao pormenor do instante em que lhe detectaram alopécia areata. Foi o pai que reparou numa pequena pelada, um pequeno ponto do couro cabeludo sem cabelo, tinha ela 13 anos e estava sentada à mesa do mesmo café onde fala agora com a Pública. Na altura, percebeu logo do que se tratava, porque já tinha um caso semelhante na família. Por isso, o dermatologista não lhe deu "grandes novidades". Mas o que começou de forma tão leve deu-lhe várias voltas à vida em apenas cinco anos. Entretanto, perdeu o cabelo todo, as sobrancelhas e as pestanas, depois voltaram a crescer, às vezes tem recaídas, descreve, num discurso seguro que contrasta com o rosto jovem.

Ainda hoje, Cátia não consegue ter a certeza das causas. Os médicos insistem que é uma questão nervosa e acrescentam que está envolvido o sistema imunitário. Cátia reconhece que teve uma recaída quando fez exames escolares, mas estranha que a medicina não relacione mãe e filha. "Eles dizem que isto não é genético, que não tem nada a ver. Mas é um bocado esquisito a minha mãe ter e eu ter também."

O presidente da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia (SPDV), Américo Figueiredo, ter-lhe-ia dado uma resposta diferente. É que, afinal, "parece existir de facto uma componente genética para a alopécia areata", defende o médico dermatologista, que explica que "a alopécia areata familiar tem sido descrita em 10 a 20% dos doentes, consoante os estudos, e parece ser mais marcada nos doentes com formas mais graves". Leia-se a alopécia total, em que se perde o cabelo todo, e a alopécia universal, na qual a queda abrange todos os pêlos do corpo. Na verdade, Américo Figueiredo diz que já existe um gene identificado, o HLA DQ3, "que está presente em cerca de 80% dos doentes com alopécia areata".

A história de Cátia é um exemplo entre muitos numa doença de que não se fala mas que atingirá 10 mil a 20 mil pessoas em Portugal. Números para os quais apontam estudos internacionais, que concluíram que a quantidade de casos na população, em cada momento, é de um a dois por mil habitantes, diz o presidente da SPDV. Já a National Alopecia Areata Foundation (NAAF), nos EUA, calcula que quase 2% da população sofre do problema. Ou seja, cerca de cinco milhões de pessoas naquele país e 117 milhões no mundo inteiro.

A alopécia no cabeleireiro

No caso de Carla Sousa, a primeira pelada das várias que a afectaram ao longo dos últimos 14 ou 15 anossurgiu-lhe pouco depois de um episódio traumático. Foi quando lhe morreu a avó, embora só "muito mais tarde"tenha "vindo a saber que possivelmente foi essa" a causa da queda de cabelo.Carla vai enumerando os episódios da doença, uns mais graves do que outros, enquanto as palavras lhe saem a 100 à hora sentada numa esplanada na zona dos Leões, no Porto. Hoje consegue relacionar quase todas as situações de maior perda de cabelo com alturas de grande nervosismo, mas vividas mais ou menos seis meses antes dos episódios de alopécia. E, se os investigadores que estudam a doença a ouvissem, diriam que tem muita razão. "Sabe-se que o stress "major" nos seis meses anteriores ao aparecimento de alopécia areata (por exemplo a morte de um familiar) é um dos factores desencadeantes mais vezes identificado nos estudos retrospectivos da doença", concorda Américo Figueiredo.

Também frequentes são doenças associadas "como o eczema atópico e o vitiligo [descoloração da pele]". E não só: outros problemas do foro psicológico e psiquiátrico, "ansiedade, doenças da personalidade e depressão ocorrem, ao longo da vida, em 75% dos doentes". Tal como Carla Sousa, Fátima Seixas também sabe que a primeira pelada "foi do stress, de coisas acumuladas" e que mais tarde teve de enfrentar uma depressão, ainda para mais a cuidar do cabelo de outras pessoas no dia-a-dia. Sentada no cabeleireiro em que trabalha, em Vila Nova de Gaia, lenço a emoldurar-lhe o rosto, relata como em pouco tempo perdeu uma parte do corpo com a qual trabalha todos os dias.

O que às vezes lhe custa é a falta de informação dos outros. Quem não sabe faz sempre perguntas sobre cancro e por isso Fátima puxa logo o assunto com as novas clientes, para que percebam que a sua falta de cabelo nada tem a ver com quimioterapia. Ao longo dos anos, foi percebendo que é fácil distinguir quem tem alopécia areata de quem enfrenta outros problemas, mas em geral quem está do lado de fora não diferencia. "Temos uma pele normal, mas nas pessoas que fazem quimio nota-se que têm uma pele mais escura, estão mais inchadas."

O problema é que a informação em português é escassa: as pessoas preferem guardar o problema só para si, isolam-se, e não existem associações ou grupos de auto-ajuda. Carla Sousa sente-se com sorte, porque por ser tradutora domina bem o inglês e encontra explicações em sites estrangeiros, mas sublinha que "a informação que existe em Portugal não é nada suficiente". "Por que é que nos custa tanto?Não percebemos o que temos, não há informação", critica. Muito diferente é por exemplo no Reino Unido e também nos Estados Unidos, onde a NAAF reconhece como vitória a divulgação que tem feito sobre o que é a alopécia areata, "de todas as formas possíveis", diz Joe Della Cella, da associação.

Por vezes, quando se pesquisa muito em português, encontramos um blogue isolado (Cátia Andrade tem um, por exemplo) ou descobrimos uma pergunta sobre o assunto num fórum sobre problemas de saúde. É assim que as pessoas se conhecem, trocam emails, telefonam-se e encontram-se. Partilham sucessos e insucessos, trocam mensagens de encorajamento.Foi o que aconteceu com Sandra (nome fictício, porque prefere não ser identificada), que quando fez um post num forum ficou "a conhecer muita gente". "Hoje tenho uma lista com cerca de 20 pessoas que já me contactaram e com quem já troquei emails. E é assim que sei que não estou sozinha", reconhece.

É nesses fóruns sobre saúde, quando raramente surge uma questão sobre a doença, que se acumulam dezenas de comentários: mulheres que já tentaram de tudo, outras que tiveram sucesso, mães de crianças desesperadas à procura de uma solução, homens que, apesar da frase feita que diz que "é dos carecas que elas gostam mais", ainda não se conformaram com esta perda tão diferente do cabelo. Américo Figueiredo nota que, "em estudos que envolvem quase mil doentes com alopécia areata de qualquer gravidade, se verifica que a relação é praticamente igual - um doente do sexo masculino para um doente do sexo feminino". Mas em estudos "com menos quantidade de doentes parece verificar-se uma ligeira predominância do sexo feminino".

Tentar de tudo para parar

A alopécia pode surgir quando ainda mal se deram os primeiros passos na vida. O surgimento depois dos 40 anos só acontece em 30% dos doentes - "o início preferencial é entre os 15 e os 29 anos, sendo que cerca de 44% dos doentes a iniciam antes dos 20", explica o dermatologista. Este último foi o caso de Sandra, cabelo escuro e lisinho de franja pelos olhos e um discurso desembaraçado. Conta que a primeira pelada lhe surgiu aos oito anos, "quando andava na escola primária", e melhorou com um medicamento caseiro.

Américo Figueiredo confirma que "a forma mais comum desta doença é a pequena pelada do couro cabeludo ou da barba", que se cura rapidamente, bastando muitas vezes "o líquido ou o creme cedido pelo farmacêutico ou indicado pelo cabeleireiro". No entanto, "mesmo essas lesões discretas podem evoluir ou antecipar o aparecimento de formas mais extensas e graves". Enquanto tomamos um café, sentadas numa sala dos Pastéis de Belém, em Lisboa, Sandra recorda que com ela foi assim mesmo. A alopécia areata ressurgiu, e com mais força, à entrada da adolescência. Ao longo de anos, enquanto disfarçava a falta de cabelo com ganchinhos, fitas e penteados diferentes, também ela tentou um número infindável de hipóteses de tratamento. Imuno-supressores, cortisona em comprimidos e em injecção, ciclosporina, irritantes da pele do couro cabeludo.

Muitos doentes experimentam aplicar um fármaco contra a hipertensão que tem efeitos vasodilatadores e que pára ou diminui a queda de cabelo ou corticóides em pomadas, em crianças com menos de dez anos. Aos adultos, tenta-se por vezes "induzir eczema alérgico localmente com agentes alergénicos conhecidos com bons resultados", ou então "uma técnica de fototerapia (PUVA)", descreve o presidente da SPDV.

O último tratamento que Sandra experimentou, depois de nascer o seu filho (que tem quatro anos), envolveu comprimidos de cortisona e parecia estar a resultar. Quase um milagre? Uma desilusão. Foi depois que perdeu todo o cabelo e ainda as sobrancelhas. Quanto ao marido, sabe que a relação que os une sobrevive a esses problemas. "Foi ele que me ajudou imenso com alguns tratamentos. Só eu saber que ele gostava de mim mesmo assim era muito bom. E hoje, que não tenho cabelo, sei que ele gosta de mim na mesma." Mas a família não é tudo, também importa a mentalidade no meio onde se vive. E por causa disso, há dois anos, decidiu passar a usar cabeleira: 300 euros que teve de pagar na totalidade, por falta de apoios do Estado para situações como a sua, e que tem de reinvestir anualmente, porque passados 12 meses o cabelo que comprou já não está em condições. A verdade é que Sandra sente-se melhor agora, anda "à vontade" e até consegue brincar com o assunto. "É um investimento que todos os anos tem de se fazer, mas pelo menos poupamos em cabeleireiros e depilações", ri-se.

Por ser considerada uma doença estética e que não coloca vidas em perigo, a alopécia areata e respectivas variantes (total e universal) tem sido esquecida nas grandes investigações médicas. Mas os estudos mais recentes, especialmente nos Estados Unidos, onde a NAAF recolhe fundos para financiar a pesquisa, fazem crer que dentro de alguns anos já haja tratamentos mais certeiros. É nisso que parece acreditar Américo Figueiredo. Sobre as últimas descobertas, diz que "se sabe actualmente que é uma doença auto-imune mediada por linfócitos T, embora se encontrem, muito frequentemente, anticorpos contra o folículo piloso". É como se o sistema imunitário identificasse os sítios de onde nos nascem os cabelos como inimigos. Mas mais importante é que, revela, "do conhecimento do tipo de células e mediadores envolvidos podemos vir a avançar para terapêuticas que atinjam esse tipo de imunidade, da mesma forma que está a acontecer com outras doenças imuno-inflamatórias, durante muito tempo consideradas sem tratamento".

Quanto a Sandra, talvez não precise de esperar tanto tempo. Três anos depois de desistir completamente dos tratamentos, "farta" da montanha russa por que estava a passar, reparou há pouco tempo que o cabelo está a voltar, embora ainda sem certezas sobre se será possível deixar de usar cabeleira. E nas sobrancelhas cuidadosamente delineadas, num traço esbatido, vêem-se já pelinhos verdadeiros.

isequeira@publico.pt

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