Morreu a rapariga com olhos de gato

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Danielle com o marido e os filhos FILIPPO MONTEFORTE/AFP

Conheceram-se na Resistência e viveram juntos 51 anos. Fizeram dois pactos, um sobre a vida pública, outro sobre a vida pessoal. Foi a consciência de esquerda do marido, François, lutou pela liberdade e pelo socialismo e viveu uma vida que nada teve de "banal, de medíocre"

Há uma última fotografia, tirada em Outubro. Poderia ter sido tirada noutro mês, noutro ano. Usa a camisola preta de sempre e, sobre ela, o eterno pendente em forma de árvore, a árvore imaginária de François Mitterrand, meio carvalho, meio oliveira, meio Norte, meio Sul, desenhada à medida da sua ideia para a França.

O retrato define a personagem. Danielle Mitterrand, que morreu na madrugada de terça-feira, foi sempre uma mulher de constância no aspecto e na convicção - a alta-costura parisiense manteve-a à margem; a esquerda usou-a sempre no pensamento; o socialismo teve-a sempre junto ao coração.

"Era uma mulher de uma grande inteligência e de uma grande finura. Tinha grandes convicções e batia-se por elas. Foi sempre socialista, foi socialista antes mesmo do marido", diz Mário Soares, que a conheceu. Quando estava no exílio, conta o antigo dirigente socialista e ex-Presidente da República, visitou várias vezes a casa do amigo Mitterrand, "na Rue de Bièvre, ali ao pé da Notre Dame".

É conhecida a história de uma conversa entre os dois políticos. Soares falava de Timor. "Conheço bem a questão, a minha mulher chateia-me com Timor todas as noites", disse François. Escreveu-se muitas vezes, em artigos de jornais, de revistas e em livros, que Danielle era a consciência de esquerda do marido. "Sim - confirma Soares -, ela foi bastante importante na vida de Mitterrand", o único Presidente socialista da V República, inaugurada em 1954, e que esteve 14 anos no Eliseu. "Onde nós chegámos, Danou", disse à mulher, quando tomou posse, em Maio de 1981.

Falemos dele, antes de a introduzirmos a ela na história de França.

François foi o quinto filho de um chefe de estação de Jarnac e foi educado nos valores católicos da burguesia rural. Estudou Direito e Política em Paris, combateu na frente ocidental contra o exército de Hitler e foi capturado em Dezembro de 1941. A fuga levou-o a Vichy, onde se juntou ao Governo de Pétain, mas a ruptura com o general manipulado pela Alemanha foi rápida e o destino lógico de François foi a Resistência, onde Charles de Gaulle (no exílio) lhe deu a missão de organizar os grupos formados por antigos soldados. O vínculo à política estava feito, tornando-se deputado no pós-guerra e membro dos 11 governos centristas de curtíssima duração.

Danielle foi a segunda filha de um casal de professores (o pai director de um colégio franco-maçon e membro da secção francesa da Internacional Socialista), laicos, republicanos e de esquerda. Aos 16 anos, Danielle Gouze já é socialista e já está na Resistência, onde oficialmente tem o posto de enfermeira.

Quando o regime de Vichy pediu ao pai de Danielle a lista dos alunos judeus e este não a deu, foi despedido. "Tinha 16 anos e tive de sair da minha indiferença para medir a minha capacidade de revolta contra a injustiça", disse ao jornal Le Monde numa entrevista de 1982.

Como nasceu o amor

Foi na casa dos Gouze que se conheceram. Há versões diferentes sobre como nasceu o amor. Eis as duas versões:

- "Tenho um homem para ti", disse-lhe a irmã, Christine Gouze, também membro activo da Resistência e que seria a primeira mulher produtora de cinema em França. "Mas é um homem, eu gosto de jovens", respondeu Danielle.

- "Vou casar-me com ela", disse François ao entrar na casa dos Gouze (ali se escondeu da Gestapo) e ao ver uma fotografia de Danielle. "Tem uns admiráveis olhos de gata, fixos sobre alguma coisa tão mais além que ignoro os limites", escreveu o futuro marido numa carta.

Na véspera de fazer 20 anos, Danielle casa-se com François, de 28. Antes mesmo do cortar do bolo - houve um jantar em Paris - o noivo parte para uma reunião do Movimento de Antigos Prisioneiros. Estão unidos, mas são duas pessoas, cada uma luta na sua frente.

Na última entrevista, à revista La Vie, Danielle conta que só teve um desgosto, "uma coisa má", na vida: a morte de Pascal, o primeiro filho, aos dois anos. "Sou agnóstica. Duvido. Não acredito em Deus, pois penso que foi fabricado pelos homens que tinham necessidade dele. Mas talvez [François] me tenha influenciado. Quando olho para o nascimento de uma criança, os seus pequeninos dedos tão bem desenhados... digo a mim própria "há mesmo um arquitecto"." O casal teve mais dois filhos, Jean-Christophe e Gilbert, e a vida decorreu tranquila em Paris até à ruptura política de Mitterrand.

François inflectia à esquerda e afastava-se, ideologicamente, de Charles de Gaulle. A separação - e a perda do lugar parlamentar - definitiva aconteceu em 1958, quando contrariou a decisão do então Presidente em criar a V República.

Encadernar como hobby

Durante a década que se seguiu, Mitterrand começou a trabalhar para a criação de uma nova força política, uma federação de esquerda que derrubasse de Gaulle e a sua entourage. Em 1971, tornou-se o dirigente do Partido Socialista. E foi chefe de Estado dez anos depois, com a árvore imaginária e o slogan "Força Tranquila" colado a ela. Aliás, o aniversário da tomada de posse e da euforia de então pelo corte com o passado gaullista e a renovação do Estado e da sociedade está a ser capitalizado pelos socialistas na campanha eleitoral que decorre em França e por François Hollande, que aspira a tornar-se no segundo Presidente socialista da V República nas eleições de 2012.

Diz Le Figaro, num perfil de Danielle, que, quando o casal chegou ao Eliseu, os franceses sabiam muito pouco sobre esta mulher, que tinha o estranho hobby da encadernação. Os perfis foram descobrindo a personagem - condecorada pelo trabalho na Resistência, irmã da produtora de cinema casada com o famoso actor Roger Hanin, mulher discreta e profundamente distante de Anne-Anymore Giscard d"Estaing, a anterior primeira-dama, que gostava do protocolo e da alta-costura.

Os franceses perceberiam depressa que a mulher do novo Presidente - não gostava de primeira-dama - era um turbilhão. "Demasiado à esquerda, excessiva, intransigente", chamou-lhe o Figaro. Durante os mandatos do marido, sobretudo na época de coabitação, a partir de 1986, quando a direita de Jacques Chirac ganhou o Governo, Danielle Mitterrand foi uma dor de cabeça para a diplomacia francesa. "Vivi com François 51 anos; estive com ele em muito desse tempo e tive sempre a minha posição. Há mulheres que não a têm, embora estejam lá, que não se situam, embora componham o cenário."

"Foi uma mulher polémica, mas no sentido em que era uma socialista muito convicta e lutava muito pelas suas ideias", diz Soares, contando que visitou Danielle Mitterrand várias vezes na sede da fundação que a mulher do Presidente francês criou, a France-Libertés. Nascida não por acaso em 1986, a fundação permitia a Danielle eleger as suas causas e agir a favor do seu socialismo. "Ela foi uma mulher de Presidente da República que fez muitas obras sociais e muitas obras internacionais a favor da liberdade e do socialismo", avalia Mário Soares.

Defendeu os guerrilheiros salvadorenhos; os zapatistas mexicanos e o seu comandante Marcos; recebeu o Dalai Lama e o Governo arcou com a irritação chinesa; abraçou o dirigente cubano Fidel Castro; expressou publicamente o seu ódio por Hassan II de Marrocos - tratava-o por "tirano", o rei chamou-lhe "esposa morganática", o que significava que tinha casado com um homem acima da sua condição; ficou obcecada com os curdos, tendo sido alvo de um atentado ao visitar o Curdistão (sobreviveu, mas sete pessoas morreram).

Nos últimos anos, a sua luta principal era o acesso de toda a população do planeta a água potável.

A France-Libertés foi o produto de um pacto do casal sobre a vida pública. Ele dedicava-se à política, ela lutaria pelas suas causas. Houve um segundo pacto, antes, o da vida privada. Eles seriam para sempre um casal, o que houvesse pelo meio passaria. Dos affairs de Danielle sabe-se muito pouco - um professor de ginástica, certa vez. Dos casos de François sabe-se mais.

O antigo Presidente português diz que Danielle "se portou muitíssimo bem", quando a França conheceu a segunda família de François. Danielle convidou a filha fora do casamento do marido, Mazarine Pingeot Mitterrand, nascida em 1974, e a mãe dela para o funeral de François. Abraçou as duas e os seus filhos fizeram o mesmo. "Não foi um drama", diria Danielle depois.

François não lhe escondeu só a filha, escondeu-lhe a doença, o cancro que já existia nos últimos anos de governação e que o mataria em 1996. "Tentava manter a nossa tranquilidade", disse a mulher.

Há anos, Danielle fora operada ao coração. Desde Setembro, andava cansada - assim foi vista a 21 de Outubro, a celebrar o 25.º aniversário da France-Libertés. "Tenho de escrever o meu discurso", disse na véspera; estava de cama segundo o Le Monde.

Tinha prometido trabalhar até ao fim, e assim foi. Tinha prometido ser a mulher de François Mitterrand até ao fim, e assim foi. Morreu aos 89 anos e teve uma vida que, como ela mesmo disse, "nada teve de banal, nada teve de medíocre".

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