A revolução começa na minha rua
Sokrates é um cantor de protesto que a crise tornou comercial. Fotis, que toca com ele, quer fazer na música a síntese entre o Oriente e o Ocidente. A amiga Sophia está pronta para a revolução, mas toca violoncelo num clube piroso. Nicolas, jornalista, trabalha de graça num jornal que vai fechar. O pai de Natasha, comunista, obrigou-a a estudar Economia, para que enriquecesse com o boom, mas ela dá aulas de ioga e sustenta-o a ele, que agora está desempregado. Apesar da crise, os gregos não deixaram de viver. Mas vivem de forma diferente.
O Floral já está à pinha quando Natasha entra. De dia é um café, com mesas e cadeiras, e sofás em certos recantos, um balcão e, ao fundo, uma livraria. À noite é bar, quase sempre com música ao vivo. Fica em plena praça de Exarchia, o centro rebelde de Atenas. É daqui que partem os manifestantes anarquistas que costumam atirar cocktails Molotov à polícia, durante os protestos dos últimos anos. Partem daqui porque vivem aqui. Encontram-se, conversam, conspiram aqui.
No centro da praça há faixas com palavras de ordem, as paredes de toda a zona estão cobertas de grafitti. As ruas adjacentes têm bares e cafés com esplanadas, livrarias alternativas, lojas de roupa usada, de adereços punk ou heavy metal, ou New Age ou hippie autêntico. Mas também carpintarias, vidrarias, casas de equipamentos eléctricos. Os nomes de vários estabelecimentos fazem trocadilhos com Exarchia e anarquia. Crepe-archia, por exemplo.
Nos bancos da praça, ou no chão entre as árvores, sentam-se grupos de jovens a qualquer hora do dia ou da noite. Alguns estão a cantar, uns a injectar heroína, outros a pedir esmola. Numa das ruas estreitas que saem rumo a Kolonaki, a zona mais rica da cidade, alguém depôs flores no chão a assinalar o ponto onde Alexandros Grigoropoulos, de 15 anos, foi assassinado pela polícia nos motins de Dezembro de 2008.
Natasha Zarafoniti, 32 anos, vem de boina e traz a irmã mais nova, Sofia, e uma amiga, Violeta. Furam entre a multidão do Floral, aproximam-se dos músicos, que já iniciaram o concerto. Não pagaram nada, à porta. No Floral, a entrada é gratuita, desde o início da crise. Mesmo quando há concertos. E o consumo também já não é obrigatório. Há quem fique a noite inteira sem beber nada, por não ter dinheiro.
Natasha é amiga de um dos músicos, Fotis Siotis, 39 anos, que toca violino. O outro é guitarrista e vê-se que tem a seu cargo toda a componente electrónica. O terceiro elemento da banda apenas se ocupa do vídeo. Vai colocando objectos em frente da câmara, e as imagens são projectadas num ecrã perto do tecto, em tempo real. Nada é gravado previamente, tal como sucede com a música, que usa apenas loops e efeitos em real time. Um relógio de parede, em movimentos circulares, surge no ecrã. Um velho globo terrestre a girar em frente de uma câmara de filmar Super8, um livro aberto com uma palavra sublinhada no meio do texto: "dignidade".
O VJ chama-se Yorgos Constantinides e faz parte dos Erasers, um grupo de dez artistas que trabalham com imagens e teatro e montam espectáculos de forte cariz político. Aqui não. Neste projecto com Fotis Siotas e Kostas Pantelis, o objectivo não é fazer música de intervenção. Embora acabem por fazê-la, de certa forma.
O som que produzem é doce e triste, sulcado por vibrações agressivas, sintetizadas por computadores. Como se do violino emanassem ondas de calor, e da guitarra radiações geladas. Em certos momentos, parece que criam um mundo, utópico, ainda desconhecido.
Crescer com a euforia do euro
"É mais ou menos isso", explica Fotis no dia seguinte, sentado, com Natasha, numa esplanada do bairro pobre de Metaxorgeio, onde ambos vivem. "Pretendemos produzir esse encontro entre a tradição grega, balcânica, oriental, e a cultura moderna ocidental." O violino representa a primeira, a guitarra a segunda. "Acredito que essa conciliação é possível, mas, na realidade, está a ser feita da pior maneira. No entanto, ela é inevitável. Nós, os gregos, precisamos de encontrar uma maneira de viver com a modernidade, de incorporar os valores da sociedade moderna ocidental, da Europa. Ainda que sem trair as nossas raízes."
Natasha não pensa assim. Acredita na ruptura. O plano dela é criar uma comunidade, numa ilha, onde as pessoas vivam de forma simples e frugal, produzindo tudo o que necessitam, trocando produtos e bens entre si, totalmente independentes do mundo global.
Natasha estudou Economia Internacional, mas hoje é professora de ioga. Como isto aconteceu, é uma longa história. Inclui ingredientes como a infância numa aldeia do Peloponeso, um pai camionista, depressões na juventude, um acidente grave, a crise da dívida grega.
Foi o pai que a convenceu a estudar Economia. Parecia a decisão acertada, naquela época. A Grécia experimentava a euforia da entrada no euro, gastava alegremente os subsídios da União Europeia (UE), preparava-se para organizar os Jogos Olímpicos. O futuro parecia luminoso e opulento, a maioria dos jovens inscreveu-se em cursos de Economia ou Gestão, antecipando carreiras de sucesso, à garupa do alucinante e irreversível boom económico.
Na aldeia de Fihtia, pouco mais de uma centena de quilómetros a sul de Atenas, não havia muitas perspectivas de emprego, além dos laranjais (que a Política Agrícola Comum da UE mandaria arrancar) e das ruínas de Micenas, que ficam mesmo ao lado. Dimitra, a mãe de Natasha, sempre trabalhou aí, numa das lojas de recordações para turistas. O pai, Stathis, foi condutor de autocarro, e depois de camião, numa empresa de transportes que operava por toda a Europa de leste.
Quiseram dar às duas filhas outro horizonte, e orientaram-nas para um curso especial de funcionários administrativos subsidiado pela UE, no caso de Sofia (que encontraria trabalho na função pública), e para Economia Internacional, no caso de Natasha.
"No primeiro dia de aulas percebi que aquilo não me interessava", diz esta. "Mas decidi fazer a vontade ao meu pai, e terminar o curso." Não foi fácil. Obteve sempre excelentes classificações, mas passou a maior parte do tempo em depressão psicológica. No fim, foi dar aulas de Economia, e de castelhano, que entretanto estudara. E inscreveu-se noutros cursos, de teatro, de dança, de pintura. Viajou pela Europa, viveu um período no Mali. Andava à procura de um rumo para a sua vida. Para pagar as viagens e os cursos, trabalhou à noite, em bares. Foi num deles que conheceu Fotis, que tocava lá com outra das suas bandas, a de Sokrates Malamas.
Sokrates é um músico famoso. "Uma espécie de Bob Dylan da Grécia", diz Fotis. Começou a tocar nos anos 1980, precisamente no início da onda eufórica que tomou o país. É oriundo de uma aldeia na península de Khalkidiki, junto às montanhas Cholomontas, na Anatólia Central, mas viveu a infância na Alemanha, para onde os pais, pobres, tiveram de emigrar. Quando regressou, estava apto a produzir uma síntese musical que criaria um novo estilo, e também uma nova forma de interpretar, através da música e das letras, a experiência de ser grego no mundo moderno.
Ao contrário das canções populares da época, as de Sokrates Malamas eram nostálgicas, pessimistas. Exprimiam o desgosto com os valores fúteis e superficiais que passaram a dominar as vidas das pessoas. Denunciavam esse estilo de vida falso, sem sentido profundo, o consumismo, o enriquecimento fácil, a ostentação. Faziam-no, não de forma explícita, mas através de poemas de amor infeliz, ou sobre histórias pessoais de frustração e de descoberta das coisas simples e valiosas.
Numa altura em que estava no auge a cultura popularucha do buzukia (do instrumento com o mesmo nome), a música de Sokrates foi criticada como negativa e derrotista. Tinha poucos adeptos. No primeiro concerto que deu, num bar de Salónica, apareceram apenas cinco pessoas. Sokrates veio a saber depois que todas elas tinham ganho os bilhetes no concurso de um programa de rádio.
Com o tempo, porém, Sokrates Malamas tornar-se-ia numa figura de culto para todos os contestatários do regime, os críticos da cultura da superficialidade, do consumo e do capitalismo. Sempre se recusou a dar entrevistas ou a aparecer na televisão, mas a sua música foi sendo cada vez mais conhecida.
Algumas canções ficariam famosas, como Prinkipessa, em cuja letra um homem se dirige ao amor da sua juventude, pedindo-lhe perdão por se ter tornado no oposto daquilo que lhe prometera. Por não resistir a levar uma vida diferente da sua verdadeira natureza.
A história de Prinkipessa acompanhou também a da Grécia. Foi-se tornando mais popular, à medida que a crise ficava mais previsível. Hoje, é até cantada pelos cantores de charme dos clubes de buzukia, no meio de orquestrações pomposas, espampanantes e efeitos de luz e chuvas de flores.
"Os clubes buzukia são os templos da nova cultura", diz Fotis. "Simbolizam toda uma mentalidade. É uma estética, um espírito de ostentação e de falsidade, que dominaram a Grécia desde os anos 1980 e 90. Tem a ver com os bancos, que emprestaram dinheiro a todos, para comprarem casas e carros, fazendo crer que era fácil e não teria custos futuros, a publicidade, a televisão."
O factor buzukia
Há quem fale do "factor buzukia" como um dos índices mais fiáveis sobre o estado da economia e da crise. Quem frequenta esses clubes, instalados em edifícios enormes e horrendos construídos nas avenidas à beira-mar, quer mostrar poder, prosperidade. De certa forma, é ali que aquelas pessoas exprimem toda a razão de ser das suas existências, pelo que só em casos extremos deixarão de lá ir. Se o número de clientes nos bares buzukia diminuir, isso é portanto um sinal inequívoco de que a crise se agravou.
Há alguns anos, os clubes estavam abertos, e repletos, todos os dias. Agora, só abrem de quinta a domingo. Nestes dias, porém, continuam cheios. Milhares de pessoas, em toilettes de gala, gastam centenas ou milhares de euros em whisky e em flores para lançar aos seus cantores predilectos.
Apesar da visibilidade dos edifícios, da quantidade e qualidade dos carros estacionados à porta, dos rios de dinheiro que correm entre as mesas dos recintos em estilo vlachobarok (barroco folclórico), e do facto de serem frequentados pela classe alta e pelos políticos de Atenas, os clubes buzukia vivem à margem da lei. Os salários dos empregados e dos músicos são pagos em cash, sem recibo, dos lucros não é pago qualquer imposto. As autorizações para abrir os estabelecimentos, em zonas nobres das cidades, são obtidas à custa de substanciais subornos às autoridades. É o chamado "miza", que significa "mala" e se refere a uma mala de dinheiro, em oposição a "fakelaki", que se traduz por "envelope" e designa os pequenos montantes que qualquer cidadão tem de pagar se quiser ser atendido numa repartição ou num hospital.
O "factor buzukia" vai dando conta do agravar da crise. Mas mostra também que a economia informal continua viva e pujante na sociedade grega.
"Nunca vou a esses clubes", diz Fotis. "Não gosto da música, nem do comportamento das pessoas. Podia ganhar muito dinheiro se tocasse lá, mas recuso-me."
Sophia, que foi colega de Fotis no Conservatório de Salónica (onde ambos nasceram), e agora vive no mesmo prédio em Atenas, tinha posição idêntica. Desde o Verão, por necessidade, alterou-a. O pai, que é dono de uma empresa de embalagens de plástico em Salónica, deixou de conseguir cobrar dinheiro aos clientes. Encheu-se de dívidas e interrompeu o pagamento das prestações da casa de Sophia. Esta, se queria continuar a viver em Atenas, onde há mais oportunidades para uma violoncelista clássica desejosa de experimentar outros géneros, tinha de ganhar mais dinheiro. Encontrou trabalho na banda de um grupo de teatro, mas pagavam mal. Acabou por aceitar a oferta de um cantor de buzukia que actua no Fantasia, um clube da Avenida Poseidon, na zona de Gaifada, na marginal.
Todos os dias, até às 22h30, Sophia Pavlina Evclido, 34 anos e olhos azuis, toca durante a peça de teatro do grande Centro para as Artes Onassis. Janta rapidamente num restaurante próximo, mete a caixa do violoncelo na mala no seu Toyota Starlet usado, e parte para o Fantasia, onde toca das 23h30 às 5h30. Odeia a música e ainda mais o clube, onde nunca esteve, excepto no palco. Mas esforça-se por se divertir. Os restantes músicos da banda de 25 elementos são excelentes profissionais que, como ela, detestam aquele género musical e estão ali por dinheiro.
"A minha tarefa, como pessoa, é ser optimista. Tento ver o lado bom de todas as coisas. Trabalhar num lugar como este, por exemplo, era visto dantes como uma vergonha. Agora não. Muitos músicos foram obrigados a fazê-lo, e passou a ser aceitável. Nesse sentido, a crise foi positiva. Sinto-me mais livre agora."
Por várias razões, Sophia acha que a crise foi a melhor coisa que poderia ter acontecido à Grécia. Desenvolveu a consciência das pessoas. Foi um acordar para a realidade. "Desde o início do Verão, as pessoas começaram a juntar-se, nas ruas, para discutir a realidade, para decidir o que fazer. Assisti a reuniões dessas, não apenas nas cidades, mas também em aldeias, até nas ilhas."
Isso pode significar o início de uma nova forma de viver, pensa Sophia, que já não acredita nos políticos nem no sistema vigente. Nem nos media, que só "criam tensão" e "espalham o medo". Fazem parte da "grande conspiração" responsável pela crise na Grécia e no resto do mundo. Envolvidos estão os bancos, as grandes empresas, os governos. Os políticos gregos e todos os outros. "Os políticos gregos são apenas formigas, não têm poder nenhum." Assim pensa Sophia. E também Fotis, Natasha e Sokrates. Para estar informado, a solução não é ver televisão nem ler jornais. É falar com outras pessoas.
"É cada vez mais importante conversar com os outros, estar em contacto com muitas pessoas." Só através dessas redes sociais espontâneas se pode formar uma verdadeira consciência da realidade. Apercebermo-nos das verdadeiras conspirações que condicionam as nossas vidas. O facto de toda a zona de Metaxorgeio estar ocupada por toxicodependentes e prostitutas, por exemplo. Não é por acaso.
"Trouxeram para aqui a droga, para criar uma má atmosfera, e obrigar as pessoas a abandonar e vender baratas as suas casas. Para depois as comprarem e construírem prédios de luxo. É fácil trazer para aqui os junkies. Basta que a polícia os persiga noutras zonas, e os tolere nesta. Tudo começou assim. Só que depois a situação saiu de controlo, e agora é impossível tirar daqui os drogados, as prostitutas e os imigrantes ilegais."
Na rua onde vivem Sophia e Fotis há um bordel porta sim, porta não. Paquistaneses solitários entram e saem daquelas portas sempre abertas onde brilha um candeeiro vermelho. Na rua, sentados no chão, rapazes e raparigas de roupas imundas procuram por todo o corpo uma veia sã onde ainda se consigam injectar.
É assim por todo Metaxorgeio, mas também pelos bairros adjacentes de Gazi e de Omonia, até à de Exarchia. Não se trata de subúrbios, mas do centro de Atenas. Omonia foi em tempos uma zona rica, repleta de lojas e hotéis. A crise foi obrigando a fechar as lojas, desertificando algumas ruas outrora movimentadas. Prostitutas começaram a frequentar essas ruas, usando os hotéis, que se transformaram em bordéis. Os toxicodependentes vieram a seguir. Os criminosos também. A fama da zona tornou-se tão má que ninguém se atreve mais a por lá passar. Mais lojas fecharam por causa disso.
A escassas centenas de metros da praça Omonia, entre o Museu Nacional de Arqueologia, um dos mais importantes do país, e o Instituto Politécnico, o principal foco de contestação anarquista, há uma estranha e sinistra avenida. Chama-se Tositsa, é larga, com duas faixas separadas por um corredor de árvores, mas está como que fechada ao trânsito. À primeira vista não se percebe o que se passa ali. Parece uma festa, ou uma feira, embora reine um funesto silêncio entre as centenas de pessoas que se aglomeram em grupos, ao longo da alameda paralela ao majestoso edifício do museu. Ao cair da noite, alguns dos grupos acendem fogueiras, com lixo e pedaços de madeira encontrados na rua. A avenida enche-se cada vez mais, algumas pessoas parecem estar a vender alguma coisa, outras estão deitadas no chão, ou a dormir dentro de tendas feitas com farrapos ou cobertores velhos.
Só entrando na avenida, passando por entre a multidão, se percebe que todos têm seringas nas mãos, ou canecas de fumar crack, fazem garrotes nos braços, queimam heroína nas pratas. Tositsa é uma imensa sala de chuto ao ar livre, em pleno centro turístico de Atenas.
"Toda a zona de Omonia foi abandonada à marginalidade", diz Nicolas Zergani, 52 anos, jornalista, amigo de Fotis. Trabalha na edição de domingo do Elefterotypia, um dos mais influentes diários gregos, que está prestes a fechar, e vive em Exarchia, o bairro que reagiu à degradação tornando-se no centro da cultura alternativa.
Omonia e Metaxorgeio desembocaram no mesmo pântano, ainda que por vias diferentes. O primeiro era rico, o segundo pobre. Hoje são estranhamente semelhantes, embora só em Metaxorgeio haja sinais de renascimento. Foram construídos edifícios novos, ou reabilitados os antigos, como este onde Sophia e Anna compraram os seus apartamentos, por preços relativamente baixos.
Anna Kalaitzid, 33 anos, actriz, é amiga de infância de Sophia, que a apresentaria a Fotis. Apaixonaram-se rapidamente e vivem agora juntos no apartamento de Anna, que está nos últimos dias da sua primeira gravidez.
Geralmente faz teatro, mas também gosta de cinema. Há dois anos, teve um papel importante no filme Dogtooth (Canino), realizado por Giorgos Lantimus. O filme ganhou o prémio Un Certain Regard, no Festival de Cannes, e foi este ano nomeado para os Óscares, mas Anna não enriqueceu por causa disso. Ao todo, ganhou 2000 euros pelo trabalho. "Como já era pobre, não fui afectada pela crise. Acho que o mesmo se passa com todos os artistas." Agora está em casa, onde tenciona ficar um ano, para tratar do bebé que vai nascer dentro de dias.
Anna é loira, apesar da sua origem turca, enquanto Fotis, que nasceu numa família eslava da Anatólia, tem cabelo escuro. Os gregos são um povo diverso e miscigenado, entalado entre culturas e impérios rivais ou hostis. "Não acho que sejamos europeus", diz Fotis. "Antes de mais, somos balcânicos. É outra mentalidade. Vê-se na música. Se viajar de Salónica a Atenas, o tipo de música varia a cada 20 quilómetros. Há influências da Jugoslávia, Bulgária, dos turcos, dos otomanos. Vai variando como a paisagem, as montanhas, as praias, sol e neve."
Trabalhar de graça, por princípio
Na opinião de Nicolas, o jornalista, estas circunstâncias geográficas e históricas explicam a incapacidade de os gregos se entenderem no campo político, e de respeitarem a disciplina e as regras impostas pela UE. "A Europa tem uma cultura de consensos. A nossa é uma cultura do conflito", diz Nicolas. "Quando conseguimos expulsar os turcos, obtendo a independência, os alemães impuseram-nos um rei, que veio para cá, com uma equipa de centenas de peritos, para nos governar. O palácio dele era o edifício da Praça Syntagma onde hoje é o Parlamento. Os insurrectos gregos incendiaram-no, tal como farão agora, quando forem anunciadas as próximas medidas da troika."
As sucessivas ocupações estrangeiras geraram uma desconfiança crónica em relação ao exterior e ao próprio Estado. E as contínuas e recentes guerras civis deixaram marcas ainda muito vivas na sociedade. Nicolas conta que, durante a última guerra civil, o seu avô era uma figura proeminente da facção comunista. Quando a facção conservadora-fascista tomou a aldeia onde viviam, decidiram executá-lo. Mas, como ele era amigo de um dos líderes conservadores, optaram por executar um dos seus filhos, em alternativa. "Há tempos o meu pai fez obras em casa, e contratou um homem para abrir uma valas. Enquanto ele cavava, alguém veio dizer ao meu pai: "Sabes quem é? É o tipo que matou o teu irmão"."
Durante os mais de 20 anos que trabalhou como jornalista, Nicolas investigou vários escândalos de corrupção, como, por exemplo, o da venda ilegal de antiguidades gregas para o estrangeiro, que envolveu grande empresas e políticos gregos. Os seus colegas do Elefteriotypia (que significa "Imprensa Livre") investigaram vários dos escândalos financeiros que, de forma mais ou menos directa, estiveram na origem da crise que agora estrangula o país.
Devido a essa mesma crise, o jornal não tem publicidade, e não consegue sobreviver, apesar de realizar vendas acima dos 100 mil exemplares. Os jornalistas e os 850 trabalhadores da empresa não recebem salários há cinco meses. Mas continuam nos seus postos. "Trabalho de graça por respeito por mim próprio. Trabalho de graça porque amo o meu trabalho. Trabalho de graça porque quero que este jornal continue aberto. E trabalho de graça provavelmente porque estou tão lixado com esta crise que insisto que temos de continuar a ter jornais que digam o que se passa. Porque se os media deixarem de fazer o seu trabalho, de investigar, de explicar às pessoas como são tomadas as decisões, o que estas por trás das grandes notícias, então teremos uma sociedade manipulada, pela televisão, ou pelos ignorantes", diz Nicolas sentado na sua secretária, enquanto no 9.º andar decorre um plenário para discutir as condições do encerramento do jornal.
"Quem é que me paga?"
Sokrates Malemas tem um perfil de estátua grega e uma forma naturalmente filosófica de dizer as coisas. "Os alemães e os ingleses têm medo de nós, porque nós já somos pobres", diz ele, entre uma canção e um gole de whisky, durante um ensaio em Salónica. "Nós somos mais felizes do que os outros europeus, e isso assusta-os. Por isso nos querem domar."
No ensaio está toda a banda de Sokrates, que inclui o baixista Giannis Papatriantantafiloy, a cantora Marina Dakanali, Kyriakos Tapakis, que toca buzukia e lauto, e Fotis, trémulo no violino, porque espera que o filho nasça esta noite. Ensaiam para um concerto na maior sala de espectáculos de Salónica, o clube Milos, a realizar-se dentro de dois dias.
"A União Europeia não existe", diz Sokrates. "Apenas os grandes países como a Alemanha e a França, que ditam o destino dos pequenos." Os colegas músicos olham com admiração para Sokrates, o seu guru, e também o seu ganha-pão. Todos eles têm outros projectos, eventualmente mais aliciantes, mas é aqui que ganham dinheiro. As canções de protesto de Sokrates tornaram-se êxitos comerciais, à medida que a crise avançou.
"A ideia de um mundo sem fronteiras era muito boa, e nós, os artistas, já a tínhamos tido, mas não a conseguimos realizar. Quem o fez foi o dinheiro. O capital chegou primeiro a essa utopia, e destruiu-a", diz ainda Sokrates, de guitarra nos joelhos. "O capitalismo tornou-se desumano. Temos de voltar às origens. Recomeçar o mundo."
As suas tiradas são lendárias, e vê-se que ele retira disso um certo gozo. Quando Natasha o conheceu, através de Fotis, ele estava particularmente inspirado. Pôs-se a contar façanhas e costumes da civilização pré-colombiana dos toltecas. Disse que eles, os toltecas, possuíam uma técnica de cura que consistia em concentrar o pensamento, de forma demorada e intensa, em cada milímetro do próprio corpo.
E com tanta sedução terá dito isto, que Natasha nunca mais o esqueceu. Mais tarde, quando navegando de uma ilha para outra, teve um grave acidente de barco, que lhe causou a fractura de várias vértebras, obrigando-a a dois meses de imobilidade total, lembrou-se dos toltecas.
De cama, sem poder mexer um músculo, na casa dos pais em Fihtia, decidiu experimentar o exercício de concentração. Durante dois meses, fez isso todos os dias, meticulosamente, disciplinadamente. E quando por fim se pôde levantar, os médicos ficaram espantados: os músculos não tinham atrofiado, com tanto tempo de imobilidade, e ela estava em plena forma.
Foi quando se foi informar sobre aquele tipo de técnicas que Natasha descobriu o ioga. Estudou, praticou, tornou-se professora. Como economista, não é possível encontrar um emprego na Grécia. Mas como professora de ioga é fácil. "As actividades New Age são as únicas que estão a crescer com a crise", diz Natasha.
Alterou todo o seu estilo de vida. Deixou de beber álcool, de fumar e tomar café. Tornou-se vegetariana, recusou os alimentos cozinhados. Só come vegetais crus. Na sala do seu apartamento de Metaxorgeio, transformou a sala em escola de ioga. Aceita todos os alunos, que vêm em número crescente. Adultos, crianças, grávidas, deficientes. Quem não tem dinheiro não tem de pagar. Alguns entregam outros produtos como pagamento, num sistema de troca directa. Legumes que cultivam nas suas hortas, ou mantas que Natasha usa nas aulas.
Ela gosta deste sistema. "Sou contra o monetarismo. Quando estudei Economia, percebi logo que o sistema estava profundamente errado. Acho que todos devíamos produzir o que necessitamos. E trocar de forma directa alguns bens. O meu sonho era criar uma comunidade onde se vivesse assim."
Desde o Natal, Tathsis, o pai de Natasha, ficou desempregado. A empresa propôs-lhe ficar com metade do ordenado, e ele não aceitou. A mãe, Dimitra, 50 anos, foi semidespedida. Trabalha agora só dois dias por semana na loja de Micenas, as ruínas do que foi o berço da civilização europeia.
Tathsis, de 55 anos, não tem direito a subsídio de desemprego, porque já o gastou. No último ano em que esteve empregado, pediu ao patrão uma falsa carta de despedimento, para poder receber o subsídio. É uma prática muito comum, e Tathsis não acha que tenha algo de incorrecto. Mas a verdade é que agora ficou sem nada.
Natasha percebeu que tinha de trabalhar muito mais horas, para ajudar os pais. Abriu também uma escola em Fihtia, no R/C da casa, e agora vem todos os fins-de-semana. Dá seis aulas por dia, o que equivale a 15 horas de trabalho, sete dias por semana.
Tathsis, que é comunista desde a adolescência, diz que sempre soube que esta crise surgiria. Explica com grande competência teórica os seus mecanismos, parece dominar bem a situação, mas não sabe o que fazer à sua vida. "É completamente impossível encontrar um emprego, hoje", diz ele. Senta-se à lareira, em frente à janela da frente, que dá para Micenas, ou à das traseiras que dá para o monte que tem a forma de Poseidon deitado. De manhã vai passear o cão, que é um pastor belga e se chama Zeus.
Como possui um pequeno terreno, a filha tentou convencê-lo a produzir uns legumes, para servir aos alunos de ioga. A ideia não lhe agradou. "Produzir legumes? E quem é que me paga?"
Natasha tentou que ele ao menos praticasse ioga, para se distrair. Ele considera que é "um bom desporto", mas tem vergonha de praticar, com os restantes alunos, ele, o comunista que pressionou a filha para estudar Economia, porque acreditou no grande boom económico grego, e agora vive à custa das suas aulas de ioga. "A Grécia nunca mais será o que era", pensa Natasha. "Dentro de alguns anos estaremos muito mais pobres ainda. Isto é apenas o início. Tudo vai piorar. Agora sabemos que não há saída."
Excepto mudar de vida. E, nesse sentido, a crise é uma oportunidade. "A crise na Grécia é o que o acidente foi para mim. Se não tivesse acontecido, continuaria na mesma vida, sem força para mudar. O acidente obrigou-me a reagir, a escolher o que é importante, a procurar a vida que realmente quero. E o ioga ensina-nos que nós somos apenas uma gota no oceano, para percebermos o que é verdadeiramente importante."
Atirar iogurtes na revolução
O Fantasia já está lotado, e Sophia espera no seu camarim. No parque de estacionamento alinham-se os Porsches, os Mercedes, os BMW. Há mesas com grandes grupos, alguns só de homens, outros só de mulheres, outras com casais. A plateia dispõe-se em anfiteatro, tudo em veludos e madeiras torneadas. Os homens vestem de negro, fatos de tecidos brilhantes, casacas e gravatas de cores berrantes. As mulheres exibem lantejoulas, mini-saias, decotes abertos, saltos altos, chapéus. Tudo brilha. Empregadas seminuas vêm trazer as travessas de flores. Dez euros cada. É preciso comprar muitas, para lançar sobre os cantores. Para se obter uma mesa próxima do palco, 500 euros de flores é o mínimo.
O cantor esbelto e saltitante termina a sua performance para dar lugar ao próximo, que é a grande estrela. Holofotes azuis e vermelhos. Enormes ecrãs de vídeo combinam-se para simular um cenário de ondas do mar e de fogo. Os homens atiram para o palco flores às mãos-cheias. Alguns deitam-nas sobre as cabeças das namoradas. A loucura cresce. As pessoas levantam-se e dançam. Cantam as canções, que sabem de cor.
No camarim, Sophia enfia o vestido preto, os sapatos de salto alto. Pouco antes de descer para o palco ainda diz que, para ela, a única solução para a Grécia é a revolução. "Nunca mais seremos quem éramos. Seremos mais pobres, mas ricos em sentimentos. As pessoas estão a mobilizar-se e, quando chegar a altura, saberão o que fazer. Eu estarei lá. Sou contra a violência, não vou atirar bombas, mas pelo menos vou atirar iogurtes."
No Milos, em Salónica, a plateia também está cheia. Umas mil pessoas, quase tantas como no Fantasia. Sokrates e os seus músicos entram no palco, sob um entusiástico aplauso. Começam o seu espectáculo de quatro horas, com canções recentes e antigas, que a audiência conhece de cor, e canta em conjunto. A voz de Sokrates é grave e firme, num intrigante contraste com o som da buzukia, misterioso, denso, mas também frívolo, estouvado.
"Antes de vir para aqui estive a ver televisão", diz, ao microfone, vestido de negro, sob luzes azuis, Sokrates, que não perde a oportunidade de proferir as suas tiradas, entre as canções. "Ao princípio fiquei triste com as notícias, mas depois comecei a achar que não estava a perceber nada. Confesso que foi uma sensação boa. Como uma criança que não percebe nada do mundo dos adultos, mas ainda assim lhe parece que tudo faz sentido, quando os ouve. Uma sensação agradável."
Ataca a próxima canção, que se chama algo como A Pandilha e fala do mundo superficial e ridículo da televisão, dos políticos e dos banqueiros. Agarrado ao violino, Fotis está radiante, porque acabou de saber que o filho nasceu. Chama-se Kosmas, o nome do avô materno, que significa Mundo.
No apartamento de Metaxorgeio, Anna pega em Kosmas, que ainda mal abre os oihos. Dá-lhe banho, depois a mama. "É claro que se decidimos ter este bebé, em plena crise, é porque acreditamos no futuro", diz. "Mas não quero que ele venha a ser artista, como nós. Esse tem sido o mal da Grécia, querer que todos sejam algo de grandioso, embora inútil. Gostaria que Kosmas tivesse uma profissão honesta, como canalizador ou carpinteiro."
paulo.moura@publico.pt