Alemanha acorda para terror neonazi
A revelação de que uma onda de crimes contra estrangeiros cometidos entre 2000 e 2007 foi obra de um grupo de extrema-direita deixou o país em choque. Os alemães perguntam-se como foi possível que os autores dos crimes tenham permanecido invisíveis para as autoridades durante tanto tempo
Enver Simsek, 38 anos, estava à frente da sua loja de flores na cidade de Nuremberga (Sul), a substituir um empregado que tinha ido de férias para a Turquia. Foi aí que foi morto com vários tiros na cabeça, em plena luz do dia. A família suspeitou de neonazis; a polícia insistiu em máfia.
Simsek foi, em Setembro de 2000, a primeira vítima dos "crimes dos kebab" (as sandes dos fast food turcos). Nos sete anos seguintes, foram mortos outros sete turcos e um grego, a maioria pequenos empresários, em vários locais na Alemanha. À luz do dia, todos com tiros na cabeça.
As autoridades puseram 160 agentes a investigar: examinaram 11 mil pessoas, milhões de registos telefónicos e de cartões de crédito, seguiram milhares de pistas, mas sempre com a mesma tese: grupos criminosos, dívidas, ajustes de contas.
A polícia nunca pensou na extrema-direita. Os neonazis alemães são conhecidos por manifestações em datas históricas, confrontos com grupos rivais, espancamentos, por vezes mortes. Mas não destas.
Afinal, sabe-se agora que um grupo de neonazis, operando de modo clandestino, matou a sangue-frio estas nove pessoas. No ano seguinte, o grupo assassinou uma polícia.
O que mudou tudo foi a descoberta, na semana passada, da arma usada em todos estes crimes: uma pistola Ceska. Também foi encontrado um DVD reivindicando os crimes em nome do grupo auto-intitulado "Nacional-Socialista Clandestino". O grupo tinha ainda uma lista de alvos políticos a abater: 88, incluindo dois deputados.
Como num thriller policial, as revelações foram-se seguindo em cascata: tudo começou numa perseguição após um assalto a um banco em Zickaw, na Saxónia (Leste). Os dois assaltantes, Uwe Mundlos, 38 anos, e Uwe Bönhardt, 34, tinham usado o seu meio preferido de fuga (as autoridades dizem que lhes consegue imputar pelo menos 14 assaltos a bancos): desapareciam em bicicletas sem que ninguém percebesse para onde. A polícia decidiu cercar um parque de campismo onde suspeitava que se tivessem escondido após o assalto, e estava certa. Pressentindo que não tinham saída, os dois mataram-se. Antes, deitaram fogo à caravana.
Três horas mais tarde, noutro local da cidade, Beate Zschäpe, 36 anos, que partilhava uma casa com Uwe B. e Uwe M., fez explodir a moradia. Dias mais tarde, Zschäpe entregou-se à polícia.
Uwe B., Uwe M. e Beate Z. eram já conhecidos das autoridades do estado da Turíngia por crimes com motivações xenófobas. A polícia tentou detê-los, mas eles fugiram dias antes, e desde 2000 nunca ninguém teve mais informações sobre eles. Os três elementos seriam o núcleo de uma célula neonazi, operando clandestinamente, e a polícia tenta agora descobrir se teriam cúmplices (um suspeito foi já detido em Hanôver).
Na caravana e no apartamento algumas provas escaparam à tentativa de destruição: um DVD reivindicando os crimes, a arma usada para matar os imigrantes e alguns pertences de uma polícia que tinha sido assassinada em 2008. No filme, a figura animada da Pantera Cor-de-Rosa apontava os locais dos crimes, e eram mostrados os cadáveres das vítimas cobertos de sangue. Uma das imagens foca-se nos olhos aterrorizados de um dos imigrantes, mesmo antes de ser morto.
Novo terrorismo
Os DVD estavam prontos para enviar a vários meios de comunicação social e centros islâmicos.A reivindicação era o que faltava para que estes crimes passassem ao nível de terrorismo. Agora, a revista Der Spiegel não hesitou em fazer uma capa falando de uma "Fracção Exército Castanho" (cor das camisas da força paramilitar nazi), o equivalente de direita à "Fracção Exército Vermelho" (RAF).Este é "um novo terrorismo de extrema-direita", não hesitou em classificar o ministro do Interior, Hans-Peter Friedrich. "[As descobertas revelaram estruturas] que nunca tínhamos imaginado", declarou a chanceler, Angela Merkel.O especialista em extrema-direita Kai Arzheimer, professor na Universidade de Mainz, não se lembra especialmente de nenhum dos "crimes dos kebab". Quando ouviu as revelações da semana passada, o perito ficou, como toda a gente, "chocado e surpreendido". "Há uma semana, não acharia possível que os assassinos continuassem tanto tempo sem ser detectados", declarou, numa troca de emails com o P2.
Os serviços secretos estão a ser especialmente questionados, não só pelo falhanço no detectar da ameaça, mas por se suspeitar de alguma ligação entre a célula e agentes, especialmente informadores infiltrados pagos.
A notícia de que um agente secreto do estado da Saxónia tinha estado no local de um dos crimes, um café de Internet, em 2006, aumentou a especulação. O agente tinha já sido detido e questionado sobre o crime, mas foi libertado, embora acabasse afastado para um departamento menos sensível. Mas as dúvidas sobre o papel dos agentes secretos e dos informadores mantêm-se.
Em 2003, foi justamente a grande presença de agentes que fez falhar o processo de ilegalização do Partido Nacional Democrático (NPD), o único de extrema-direita da Alemanha (sem representação parlamentar nacional, mas com deputados em dois parlamentos de estados federados).
Há muitas perguntas sem resposta. Mas a principal, que tem ocupado jornalistas, comentadores e políticos, é simples: como foi possível que estes crimes tenham passado sob os radares das autoridades? Arzheimer vê duas explicações possíveis: "Uma falta de coordenação das forças a trabalhar neste campo. Segundo, e mais preocupante, a possibilidade de que alguém não tenha passado informação, possivelmente para proteger as suas fontes." A grande percentagem de agentes infiltrados nos círculos de extrema-direita é "muito problemática", diz, deixando um alerta: "À medida que as revelações se vão sucedendo, espero mais surpresas desagradáveis."