Entorpecimentos artísticos

A cultura sempre foi vista como uma área desinteressante - e desinteressada - na formação de um cidadão. Contudo, asseguro-vos que ser criador não passa por adormecer o espectador após a compra de um bilhete

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Jimmy Liew/Flickr

Não, não estou a pensar em cãibras na perna esquerda, nem no formigueiro gerado, enquanto se espera de coluna curvada à beira da caixa de e-mail durante tempos intermináveis pelos resultados de um(a) concurso/bolsa/subsídio. Se o problema fosse a insuficiência muscular manifestada durante um posicionamento impróprio, bastariam algumas embalagens de magnésio e, ao fim de algum tempo, a coisa dava-se.

Estou a falar de um conjunto de membros que também neste momento tenta entorpecer à força. Embora, neste caso específico, já não sintam tanto a diferença entre entorpecimento e actividade (e repito que não me refiro aos órgãos externos), mas que compõem a classe artística portuguesa.

Falo, sobretudo, daqueles que me são mais caros, os artistas de cena. São criadores, habituados desde a mais tenra ideia às condições precárias de trabalho, aos não-contratos e à invisibilidade do seu estatuto social. Se calhar é por isso que não distinguem tão claramente a precariedade da prosperidade no que concerne ao seu departamento. Desde que me lembro (e ainda ando cá há pouco tempo), a cultura sempre esteve em crise, os cortes sempre foram uma constante e a premissa do “poucochinho, mas tem de dar” uma instituição salarial.

Uma tarde a ler ou no Colombo?

A cultura sempre foi vista como uma área desinteressante - e desinteressada - na formação de um cidadão e os subsídios aos criadores vistos como esbanjamentos inúteis a pessoas que não trabalham, apenas brincam. Erroneamente, quando se pensa em actores, encenadores, cenógrafos, dramaturgos, bailarinos, coreógrafos (etc. e tal) crê-se que a sua função é gerar apenas entretenimento com o dinheiro dos contribuintes. Contudo, asseguro-vos que ser criador não passa por adormecer o espectador nas horas que se seguem após a compra um bilhete.

Um artista de cena é, antes de mais, um agente cultural, que contribui para uma coisa chamada "identidade" (do país). É claro que para que tudo isto fosse claro (para os criadores e para os espectadores), teria de existir algo a que todos os governos se têm esquivado: uma política cultural. Por isso, mais do que o entorpecimento físico, a classe artística portuguesa tem sido repetidamente sedada intelectualmente pela inexistência de respeito por um percurso de trabalho.

O pior é que ainda estamos longe de entender que cultura não é erudição apenas e que, se o capitalismo tem alguma utilidade, ainda seria a de tornar-se numa espécie de consumo de saberes. Ainda espero o dia (não falo em esperança), em que será óbvio para (quase) todos que talvez seja melhor, por exemplo, passar uma tarde a ler, do que a fazer compras no Centro Comercial Colombo. Já viram o dinheiro e o ruído que se pouparia? E não tenhamos dúvidas, uma gente desentorpecida, é “fiche”.

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