Cinco cientistas portugueses entre a memória genética, a dança dos cromossomas e as leucemias infantis
Para descrever a descoberta que fez de um mecanismo genético universal, Sérgio de Almeida, do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, começa por utilizar a metáfora do ADN enquanto livro onde cada gene é uma “receita de cozinha” para o fabrico de proteínas. “Para não estragar o livro original, copiamos a receita [o gene] para uma folhinha, e é essa folhinha que levamos para a cozinha”, explica-nos o autor principal, com Carmo Fonseca, de um dos projectos de investigação básica distinguidos nesta quinta-feira pelos Prémios Pfizer.
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Para descrever a descoberta que fez de um mecanismo genético universal, Sérgio de Almeida, do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, começa por utilizar a metáfora do ADN enquanto livro onde cada gene é uma “receita de cozinha” para o fabrico de proteínas. “Para não estragar o livro original, copiamos a receita [o gene] para uma folhinha, e é essa folhinha que levamos para a cozinha”, explica-nos o autor principal, com Carmo Fonseca, de um dos projectos de investigação básica distinguidos nesta quinta-feira pelos Prémios Pfizer.
Este (primeiro) processo de cópia genética chama-se transcrição e a folhinha em questão é o ARN mensageiro (ARNm). Por sua vez, o ARNm será ainda cortado e é o padrão desse corte (splicing) que determinará a sequência genética que será efectivamente utilizada, ou expressa, por uma dada célula, para fazer só uma proteína entre as várias que eram possíveis antes do corte do ARNm.
Dependendo das células, porém, os genes do ADN original podem revelar-se mais ou menos fáceis de transcrever. É em parte este mecanismo que faz com que, a partir de uma única molécula de ADN original, os organismos vivos possam ter tantos tipos de células diferentes: em cada tipo de célula, certos genes vão ser transcritos enquanto outros vão permanecer trancados. E, no fim do processo todo, uma célula do fígado não vai expressar o mesmo conjunto de genes que um neurónio, nem fabricar as mesmas proteínas.
Como é que isso é assegurado pelas células? Graças a proteínas chamadas histonas, que se ligam aos genes e cujas modificações químicas afectam não apenas a facilidade com que cada gene pode ser transcrito em ARNm, mas também o padrão de corte que o ARNm irá sofrer antes de ser usado para fabricar proteínas.
“Já se sabia que as [modificações das] histonas influenciam a expressão dos genes nas diferentes células”, diz-nos Sérgio de Almeida. “Mas nós quisemos investigar o processo ao contrário.” Em particular, quiseram ver se, por sua vez, o padrão de corte do ARNm era capaz de induzir, retroactivamente, modificações químicas nas histonas.
Foi exactamente isso que a equipa agora premiada mostrou – e o seu trabalho deu origem ao artigo de capa da edição de Setembro da revista Nature Structural & Molecular Biology. “Mostrámos que quando um gene é expresso numa célula, o facto de ter sido expresso introduz uma modificação numa das histonas”, diz Sérgio de Almeida. “Introduz uma ‘memória’ do padrão de corte.” Tudo se passa como se cada gene, uma vez expresso numa célula, possuísse a partir daí uma etiqueta a assinalar que é ele que deve agir nessa célula e não outros. “A nossa ideia é que isso provavelmente facilita a expressão subsequente desse gene, minimizando os erros, que podem ser catastróficos para as células.”
Mas há mais: quando olharam para os 30 mil genes do genoma humano, em todos eles era sempre a mesma modificação da mesma histona que se verificava quando os genes eram expressos. “Esta modificação [nome de código H3K36me3] é específica desta histona, a H3”, explica o cientista. “É um mecanismo universal.”
O passo seguinte consiste em estudar se as perturbações do mecanismo podem dar origem a doenças. Será que quando essa modificação da histona se verifica nos genes errados, surge o cancro? “Estamos agora a estudar amostras de cancros do rim e da mama e os nossos dados preliminares mostram que a modificação da histona está efectivamente presente nalgumas amostras”, diz Sérgio de Almeida, que acredita que será um dia possível utilizar fármacos para reparar esta situação – e não apenas no caso do cancro, mas contra muitas outras doenças.
Pelo seu contributo para a compreensão da divisão celular, Elsa Logarinho e Hélder Maiato, do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) do Porto, partilham os 20 mil euros do prémio de investigação básica com a equipa do IMM. O prémio de investigação clínica (também de 20 mil euros) vai para João Barata, também do IMM, pela descoberta de mutações inéditas numa forma aguda de leucemia infantil.
Os laureados foram escolhidos entre 93 candidatos (54 na categoria da investigação básica e 39 na categoria da clínica). O galardão ser-lhes-á atribuído nesta quinta-feira, pelas 18h, numa cerimónia no auditório principal da Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de Santa Maria.
Este ano, os prémios, uma iniciativa dos laboratórios Pfizer e da Sociedade Portuguesa de Ciências Médicas de Lisboa, comemoram 55 anos de existência com a edição de um livro sobre a sua história.