A Guatemala é um banho de cor
Rodeado por imponentes vulcões, o lago de Atitlán tornou-se em poucos anos uma das maiores atracções turísticas da Guatemala. De barco, Filipe Morato Gomes (texto e fotos) zarpou da cosmopolita Panajachel para conhecer as velhas artesãs de San Juan, desfrutar do ambiente zen de San Marcos e divertir-se no corrupio hippie de San Pedro. E ainda foi às compras por entre as cores, cheiros e trajes típicos do mercado de Chichicastenango
É o país de todas as cores, a Guatemala. Há o amarelo-ouro das fachadas coloniais, o vermelho-fogo da lava incandescente, o cinzento-escuro das paisagens vulcânicas, o cinza-claro das pirâmides Maia, o verde-clorofila da selva tropical, infinitas tonalidades no trajar dos povos indígenas que habitam as aldeias do lago de Atitlán e, claro, o negro profundo dos longos cabelos de Sandra.
Sandra é uma indígena kaqchikel de descendência maia, oriunda de San António Palopó, que encontrei acariciando orgulhosamente os seus cabelos pretos aprisionados num longuíssimo rabo-de-cavalo por uma fita tricotada colorida, enquanto tentava vender lenços manufacturados pela sua gente aos jovens turistas que passeavam nas ruas de San Pedro La Laguna. Vem todas as manhãs da sua aldeia para a mais concorrida San Pedro, onde passa os dias, até à noite. Estávamos na íngreme rua que desemboca no embarcadero, o cais, porta de entrada naquela que é a Meca mochileira do lago de Atitlán. Trocámos palavras, comprei um lenço artesanal e despedi-me, pensando que poderia ser encantador visitar Sandra e sua família em San António Palopó, ela despindo o fato de vendedora, eu tirando a mochila de turista, numa comunhão desinteressada entre povos e culturas tão distintos - uma das grandes riquezas de viajar no Atitlán, mas já um pouco rara em San Pedro.
San Pedro La Laguna Mescla de indígenas e mochileiros
San Pedro foi "descoberta" por viajantes israelitas há pouco mais de uma década, atraídos não tanto pelas belezas naturais ou paisagísticas mas sim pelo baixo preço (e boa qualidade, presume-se) da marijuana existente na região. E a tal ponto a "notícia" se espalhou, que San Pedro La Laguna se transformou num centro turístico frequentado por jovens viajantes de todo o mundo. Para o bem e para o menos bem, jovens israelitas em processo de libertação pós-serviço militar obrigatório povoaram as ruas de San Pedro, construíram pousadas e restaurantes, foram ficando. Muitos outros estrangeiros seguiram-lhes as pisadas, e assim surgiram espaços ligados à hotelaria e restauração com nomes como Mikasi, Shanti Shanti, Nick"s Place ou The Alegre Pub. Hoje, San Pedro La Laguna não anda longe de um punhado de outros locais mundo fora, que se desenvolveram em torno do turismo mochileiro, oferecendo, porta sim porta sim, tudo o que os viajantes independentes necessitam para se sentirem, digamos, confortáveis: hostels, acesso à Internet e chamadas telefónicas internacionais a bom preço, agências de viagens, restaurantes, cafés e bares com happy hours prolongadas, lojas de artesanato e bancas de pulseiras, brincos e afins, tatuagens - tudo num ambiente informal e descontraído.
Dito assim, pode até parecer coisa ruim, San Pedro La Laguna. Mas não é. A grande vantagem de San Pedro, para além do cenário arrebatador onde está inserido, é que tudo aquilo se mistura com o quotidiano do povo tjutujil que há séculos habita a região. Ainda vestem, aliás, os seus coloridos trajes tradicionais nas ruas empedradas da aldeia, ainda vivem na aldeia, ainda influenciam a vida na aldeia. Basta deixar o cais de embarque e subir até ao centro de San Pedro, onde se situam o mercado de rua e inúmeras lojas com produtos de primeira necessidade, para apreciar e sentir o pulsar de um povoado cujos habitantes descendem, com desmedido orgulho, da civilização maia.
Deixei Sandra entregue aos seus cabelos e fui galgando a rua principal de San Pedro, voltando-me, a espaços, para apreciar a magnífica vista sobre o lago através do emaranhado de cabos eléctricos que sobrevoavam a ladeira, nas minhas costas, e ignorando os tuk tuk vermelhos que, insistentemente, me tentavam fazer crer na necessidade de recorrer aos seus préstimos para ultrapassar a inclinação das ruas empedradas. Foi quando o cheiro a café torrado me invadiu as narinas. µ
±À minha esquerda, dentro de um pequeno café, um moinho antigo acabara de transformar em pó grãos de café guatemaltecos de produção caseira, e uma antiga máquina La Cimbali ainda fumegava. Do outro lado do balcão, assim que entrei, um jovem explicou que todo o processo de produção de café era artesanal e familiar, enquanto preparava um expresso surpreendentemente saboroso. Mostrou sacos de café com o produto final, já moído e toscamente embalado, à venda para os transeuntes que se dignassem entrar. "Também vendemos no mercado", disse. Segui para lá.
Em San Pedro La Laguna, as mulheres - principalmente as mulheres! - utilizam o seu trajar típico no dia-a-dia, constituído por saias longas, rodadas e coloridas até aos tornozelos, combinando com blusas trabalhadas e, como quase tudo na Guatemala, multicoloridas. Cada guatemalteca de descendência maia é um caleidoscópio ambulante, mas foi, no entanto, o trajar masculino no corpo do velho Miguel Puac que me prendeu a atenção.
Miguel estava sentado à porta de sua casa, numa rua secundária que eu percorria a caminho do mercado, dando descanso aos 85 anos de existência, com ar desconfiado à paragem do forasteiro. Envergava uma grossa e colorida camisa de lã tecida manualmente, composta por pequenos rectângulos verdes, rosa, vermelhos, azuis de vários tons, laranjas e brancos, numa profusão de cor desconexa e fascinante e, nas pernas, umas calças absolutamente deslumbrantes, brancas, com apontamentos negros e bordados coloridos, assaz originais.
Tentei ficar à conversa, mas Miguel era homem de poucas falas - até porque não falava castelhano nem eu o seu dialecto tzutujil. Talvez estivesse a invadir o seu espaço, talvez me olhasse como um israelita "invasor", ou talvez preferisse apenas fumar o seu cigarro tranquilamente. Não foi, por isso, longa a conversa com Miguel, ainda que, por interposta pessoa da sua família, curiosa com a presença do forasteiro à porta de casa, conseguíssemos estabelecer comunicação. No fundo, agradou-me que o castelhano fosse uma língua estranha para Miguel. Consta que existem actualmente duas dezenas de minorias étnicas descendentes dos maias a habitar as pequenas aldeias que bordejam o Atitlán. Muitos, como Miguel Puac, não abdicam da sua língua, dos seus costumes, da sua cultura. E essa é, sem dúvida, uma das grandes riquezas do lago Atitlán e suas aldeias, de San António Palopó a San Juan La Laguna.
San Juan La Laguna As tecelãs tzutujil
Visto do embarcadouro numa manhã de domingo incrivelmente luminosa, ainda na lancha feita transporte público que atravessou todo o lago, o verde da vegetação fundia-se com as casas salientando a encosta do vulcão, imponente, por detrás do singelo casario da aldeia, causando uma primeira impressão muito cénica e agradável. Tudo estava calmo em San Juan La Laguna.
Terra do povo tzutujil, a minoria étnica de origem maia a que o velho Miguel pertence, San Juan é uma pequena povoação localizada entre San Marcos e San Pedro. É, de certa forma, simpática, com inúmeras pequenas lojas que vendem os trabalhos artesanais das mulheres tzutujil, como Dolores, que me recebeu sentada no chão, de roca em riste, num dos barracos feitos loja-atelier da Cooperativa de Mulheres Tecedoras - a Ixoqí aj Quema. Desde o início da década de noventa que as mulheres da região se uniram para tecer e comercializar, de forma organizada, as roupas maia tradicionais, como ponchos e os bordados de güipiles, e ainda centros de mesa, toalhas e colchas de cama. Numa terra onde 95% das mulheres são analfabetas, a criação da associação foi, por si só, um feito assinalável.
Depois de algum tempo apreciando o trabalho das tecelãs tzutujil, e na falta de outros atractivos, não me alonguei demasiado em San Juan e regressei a pé para San Pedro. Trata-se de um pequeno trecho de uma caminhada maior que une San Pedro à muito alternativa San Marcos. Um passeio absolutamente deslumbrante, durante o qual o trajecto escolta os humores orográficos das montanhas, acompanhando a baixa cota as margens do lago.
Enquanto caminhava, reparei num conjunto de caiaques repousando nas águas do Atitlán à espera de pagaias e de quem as fizesse deslizar pelas águas calmas do lago. Dois adolescentes mergulhavam do pontão do embarcadero, com piruetas juvenis e muitas gargalhadas, entre a chegada das lanchas que, dias antes, me tinham transportado desde a caótica Panajachel, porta de entrada na magia do lago Atitlán. Na verdade, toda a gente passa por Panajachel, mesmo que o objectivo seja, apenas, conhecer as mais pacatas aldeias do lago.
Panajachel De passagem
A primeira impressão que se tem de Atitlán, ainda na estrada sinuosa que bordeja o lago a caminho de Panajachel, por altura de San Andrés Semetabaj, é a de uma descomunal pequenez perante tamanha visão. Lá em baixo, um imenso manto de água azul-escura é abraçado por montes e vulcões, num cenário dramático e impressionante esculpido pela força indomável das entranhas da Terra. Montanhas expelidas em forma de lava pelas crateras dos três vulcões circundam o lago.
Dizem as páginas da história que a paisagem em torno do lago de Atitlán, tal como é conhecida actualmente, tem origem numa massiva explosão do vulcão Los Chocoyos há oito ou nove dezenas de milhar de anos. A fúria intestinal do planeta provocou o colapso da crosta terrestre, abrindo um gigantesco "buraco" de forma quase circular que, paulatinamente, haveria de se encher com água - e assim nascia o lago de Atitlán. Posteriormente, foram surgindo nas suas margens vulcões de menor dimensão - primeiro o vulcão San Pedro, depois o Atitlán e, finalmente, o Tolimán -, que conferem à paisagem o dramatismo actual.
É precisamente essa beleza selvagem que fica na retina antes da entrada na malha urbana de Panajachel, para quem chega de urbes maiores como Antígua ou Cidade da Guatemala. O contraste vem adiante, com o início da descida da Calle Real. Chega-se a Panajachel e, sem aviso, penetramos numa cidade buliçosa, com muita gente nas ruas, carros lutando por espaço entre as bancas de rua, os vendedores ambulantes e os muitos turistas que, numa escolha de difícil compreensão, fazem de "Pana" (como é carinhosamente conhecida Panajachel) a sua base para explorarem as belezas naturais da região.
No meu caso, uma dúzia de minutos foram suficientes para confirmar que não fazia intenção de ali ficar. Sabia que bastava uma curta viagem de barco para tudo mudar: trocar o fumo dos escapes por incensos, os postes de electricidade por árvores, as pizzas por um peixe grelhado. Pouco depois, partia para San Marcos La Laguna.
San Marcos La LagunaAldeia zen
A travessia de lancha entre Panajachel e San Marcos não demorou mais de 40 minutos mas, assim que desembarquei no periclitante cais de madeira de San Marcos, entrei numa outra dimensão. San Marcos é um local idílico sem ser deslumbrante, povoado por centros espirituais, holísticos e de meditação, sessões de ioga e massagens revigorantes, e viajantes de ar descontraído e aspecto a roçar o hippie do século XXI. Há, por assim dizer, as habituais drogas leves, a comida vegetariana, os seres profundamente espirituais e de bem com a vida, um certo estilo de vida comunitário, o espírito make love not war dos tempos modernos.
Não se passa muita coisa em San Marcos, mas isso é, seguramente, uma das razões do seu encanto. Aparte as sessões de ioga e massagens, os cursos de meditação, as terapias para afastar energias negativas e a boa comida, resta o descanso, a paz de espírito, algumas caminhadas ao ar livre e, claro, as magníficas vistas sobre o lago de Atitlán e o vulcão San Pedro, na margem oposta, a partir de um promontório num dos extremos da aldeia.
San Marcos La Laguna não é, pois, um lugar para ser apenas visto. É daqueles espaços criados para se estar, para viver, para desfrutar sem relógio nem agenda antes de prosseguir viagem para outras das aldeias nas margens do lago. Aldeias como San Pablo La Laguna, Santiago Atitlán, San Lucas Tolimán, Tzampetey, Santa Catarina Palopó ou San António Palopó, a terra para onde Sandra regressa, todas as noites, após a venda ambulante pelas ruas de San Pedro La Laguna. Fico a dever-lhe essa visita. µ