Leonardo Da Vinci Esta é uma exposição épica
A National Gallery inaugura hoje em Londres aquela que é, provavelmente, a mais importante exposição de Leonardo alguma vez realizada. Centrada no período inicial da sua carreira, Leonardo Da Vinci: Pintor na Corte de Milão levou anos a ser preparada e terá exigido um investimento astronómico em seguros
Para montar a exposição Leonardo da Vinci: Pintor na Corte de Milão, que hoje se inaugura em Londres, na National Gallery, onde poderá ser vista até Fevereiro de 2010, foram necessários quase seis anos de trabalho intenso, que incluiu investigação académica, tarefas de restauro, operações de financiamento em grande escala e, sobretudo, morosas diligências diplomáticas junto do Louvre e dos outros raros museus que possuem pinturas de Leonardo.
Reunir num só lugar, durante três escassos meses, oito pinturas do mestre e algumas dezenas de desenhos e estudos, pode parecer relativamente simples, mas é tão complicado que só uma vez se tinha tentado algo de semelhante, e foi já há mais de 70 anos, numa histórica exposição realizada em Milão no final dos anos trinta. Mas nem então foi possível, por exemplo, apresentar lado a lado, como agora acontece em Londres, as duas versões que Da Vinci pintou da Virgem dos Rochedos. E a exposição da National Gallery tem ainda outro trunfo: a pintura de Cristo como Salvator Mundi, que se julgava ter sido executada por um discípulo de Leonardo, mas que, após um recente e minucioso restauro, é consensualmente atribuída ao pintor. Pertence a um consórcio americano e deverá ser leiloada no próximo ano, prevendo-se que possa ser licitada por valores próximos dos 200 milhões de euros, o que a levaria a bater todos os recordes anteriores de obras de arte vendidas em leilões.
Leonardo Da Vinci (1452-1519) tinha, como se sabe, interesses um tanto diversos. Além de pintor, foi, entre outras coisas, escultor, poeta, músico, botânico, matemático, engenheiro, arquitecto, anatomista e, claro, inventor. Os seus projectos e engenhos anteciparam a aviação e a balística e contribuíram significativamente para várias outras disciplinas científicas, como a óptica ou a hidrodinâmica. Estava longe, por isso, de dedicar todo o seu tempo à pintura, mas quando pintava também não era homem para se apressar. O resultado é que embora tenha chegado aos nossos dias um considerável acervo de estudos e esboços, o número de pinturas acabadas de Leonardo Da Vinci, mesmo tendo em conta algumas cuja autoria é ainda disputada, não ultrapassará hoje, em todo o mundo, a dezena e meia.
Dada a discrição que geralmente envolve os seguros de obras de arte, não é fácil averiguar o esforço financeiro envolvido nesta exposição, mas o site do jornal Art Newspaper sublinha que a dotação governamental para a National Gallery teve, só na parcela que se destina ao financiamento de empréstimos, um astronómico aumento de 1,5 mil milhões de libras (cerca de 1,7 mil milhões de euros). Parte desta verba dirá respeito a outras exposições, admite o Art Newspaper, mas o número serve ainda assim, argumenta, "para indicar a que escala está o valor" desta exposição.
Depressa corriam nus...
Luke Syson, comissário da exposição da National Gallery, e o grande responsável por ter levado a bom porto o que parecia ser um projecto tão ambicioso quanto irrealizável, sabia que era literalmente impossível reunir todas as pinturas de Leonardo, de modo que concentrou os seus esforços no período correspondente às últimas décadas do século XV, quando Leonardo trabalhou em Milão para o duque Ludovico Sforza. Precisou de cinco anos para garantir que conseguiria juntar na National Gallery todas as obras executadas para este mecenas entre 1482 e 1499, e ainda algumas ligeiramente posteriores. À excepção, naturalmente, da Última Ceia, representada na exposição por uma cópia em tamanho natural, já que seria difícil convencer as autoridades italianas a emprestar a parede do refeitório do mosteiro de Santa Maria delle Grazie.O período escolhido deixava felizmente de fora A Gioconda, que Leonardo terá começado a pintar por volta de 1503, quando já estava de regresso a Florença. O próprio comissário da exposição de Londres admite não ter sequer sonhado em pedir emprestada a jóia da coroa do Louvre. "Os responsáveis da colecção mais depressa se punham a correr nus do que a emprestavam", disse Syson ao jornal inglês Guardian.
Mas Syson não se pode queixar da generosidade do Louvre, que cedeu, além de alguns dos mais importantes desenhos de Leonardo, a primeira versão de Virgem dos Rochedos e a pintura conhecida como La Belle Ferronière, assim chamada porque erradamente se pensou que representaria a amante do rei francês Francisco I. Hoje pensa-se que possa tratar-se da duquesa de Milão, Beatrice d"Este, havendo também quem sugira que a mulher retratada é Lucrezia Crivelli, amante de Ludovico Sforza.
Mas o Louvre não foi a primeira porta a que Syson foi bater. E se o tivesse feito sem antes ter garantido um núcleo de obras que assegurasse, por si só, a relevância da exposição, o mais certo é que lhe tivessem dito que não.
O projecto Leonardo da Vinci: Pintor na Corte de Milão começou a nascer em 2006, quando o então director da National Gallery, Charles Saumarez Smith, pediu ao curador da colecção de arte italiana anterior ao século XVI que lhe apresentasse ideias para possíveis exposições. O curador era Syson, que andava obcecado com o ambicioso projecto de restaurar a Virgem dos Rochedos. Mais precisamente, a segunda versão da obra, já que a primeira, composta entre 1483 e 1486, está no Louvre. Tendo em conta que Leonardo não foi um pintor especialmente prolífico, é desconcertante que tenha pintado duas versões deste quadro. Sabe-se que foi encomendado pela fraternidade da Imaculada Concepção para ser colocado na capela de San Francesco Grande, em Milão, e alguns autores sugerem que Leonardo, uma vez terminada a pintura, pode ter exigido mais dinheiro do que o que estava estipulado e acabado por vender a pintura a outro comprador. Chegando depois a novo acordo com os clientes originais, teria então executado a segunda versão, muito semelhante à primeira. Ambas mostram a Virgem Maria numa gruta, possivelmente durante a fuga para o Egipto, a apresentar Jesus a S. João Baptista, ainda criança, sob o olhar do anjo Gabriel. A principal diferença é que, na versão de Paris, o anjo aponta com o dedo para S. João Baptista.
O recente restauro da versão "londrina", que durou anos, veio retirar credibilidade à tese, muitas vezes sutentada, de que o exemplar da National Gallery seria da autoria de um discípulo de Leonardo. Em contrapartida, os mesmos especialistas admitem que a obra possa ter algumas partes inacabadas. Quando o trabalho de restauro chegou ao fim, Syson começou a pensar numa exposição que comemorasse a recuperação desta obra-prima de Leonardo. Pensou imediatamente que faria sentido focar-se no período milanês, ao qual a pintura pertencia, e deverá ter-lhe ocorrido que o ideal seria reunir ambas as versões, algo que nunca tinha sido feito. Mas ainda era cedo para atacar o Louvre.
Syson começou por indagar se a rainha Isabel II, proprietária da maior colecção mundial de desenhos e esquissos de Leonardo, estaria disposta a emprestar as obras que conserva na biblioteca do castelo de Windsor. Quando recebeu resposta afirmativa, abordou a Fundação Czartoryski, de Cracóvia, que detém a extraordinária pintura Dama com Arminho, representando Cecilia Gallerani, outra amante de Ludovico Sforza. Segundo Martin Kemp, um dos maiores especialistas de Leonardo, o quadro já antes teria sido emprestado para exposições menores, ao que se diz a troco de compensações financeiras. Talvez por isso tenha parecido a Syson que valia a pena tentar primeiro este empréstimo, que lhe foi concedido.
Só então se dirigiu ao Louvre, conseguindo não apenas Virgem dos Rochedos, mas também La Belle Ferronière e um conjunto de importantes desenhos de Leonardo. O facto de a National Gallery ter emprestado há poucos anos uma pintura de Mantegna para a grande exposição que o museu parisiense dedicou ao pintor terá ajudado nas negociações. E o Louvre conseguiu ainda a promessa de que lhe seria emprestado, para uma exposição a realizar na Primavera de 2012, o célebre Cartão de Burlington, um desenho de grandes dimensões mostrando a Virgem com o Menino, Sant"Anna e S. João Baptista.
Com um tal conjunto de obras já asseguradas, começava a tornar-se evidente que a exposição de Londres ia ser um momento histórico, o que facilitou bastante as conversações com os restantes proprietários de peças que Syson queria ter na National Gallery. A Biblioteca Ambrosiana aceitou ceder o Retrato de Músico, o Hermitage de S. Petersburgo emprestou a Madonna Litta, uma pintura da Virgem a dar de mamar ao Menino, o Vaticano acedeu a deixar viajar o retrato inacabado de S. Jerónimo, e muitas outras instituições emprestaram desenhos de Leonardo e obras dos seus principais discípulos, como Giovanni Antonio Boltraffio, Francesco Napoletano ou Marco d"Oggiono. E, último triunfo, também os proprietários privados do Salvator Mundi permitiram que esta obra, dada como perdida durante séculos, fizesse em Londres a antestreia da sua ressurreição.
Quando hoje se abrirem as portas da National Gallery, o que espera os visitantes é um conjunto de 80 obras que dificilmente voltará a ser reunido este século.