O leão que muda de pele

A China cresce e impõe-se ao mundo, e no Ocidente - depreende-se quando se ouvem os políticos e os analistas - ainda ninguém sabe muito bem como encarar e como lidar com este esquizofrénico colosso, metade comunista e repressor, metade capitalista e selvagem. Viver entalado no meio disto não dever ser fácil, e é desta dificuldade que Jia Zhang-ke têm falado. Também por isso, e porque estamos a falar de um assunto “importante”, e cada vez mais relacionado com as nossas vidas, surpreende que os filmes de Jia (que têm sido estreados por cá) não sejam mais vistos, e arrancados ao nicho dos filmes “de autor”, aquelas coisas a que, por razões incompreensíveis, os críticos prestam atenção quando deviam era estar a bater palmas ao Tintin, como toda a gente. Jia não explica nada, mas ajuda a compreender, mostra e faz ouvir. É por isso que além de fazer cinema “sério”, faz cinema bom.


Desabafo feito, estas “Histórias de Shanghai” são mais uma notável peça acrescentada por Jia à sua colecção de retratos da China contemporânea. Trata-se mesmo, o título não engana, de histórias de Shanghai (ou Xangai, à portuguesa), cidade histórica na mitologia revolucionária chinesa e cidade capital na conversão ao capitalismo financeiro. Filme de encomenda (para a Exposição Mundial de Shanghai em 2010), e portanto filme “oficial”, e portanto, outra manifestação da curiosa esquizofrenia do regime chinês, porque se trata de tudo menos de um filme festivo ou digamos, “positivo”. No centro está um conjunto de 18 depoimentos de habitantes ou antigos habitantes da cidade, arrumados por ordem cronológica - dos velhotes que ainda se lembram do aconteceu em 1949, quando a cidade foi tomada pelo exército comunista, a jovens de agora, se não nados, pelo menos criados no actual estado de coisas, e tu cá tu lá com ele. Pelo menos na sua grande maioria, não são deponentes quaisquer, e é gente de algum destaque na vida chinesa das últimas décadas, e muita gente do cinema (Hou Hsiao-Hsien, por todos).

O leitor interessado pode encontrar na Internet (na “Cinema Scope”) um artigo de Tony Rayns que ilumina o que está por detrás destas personalidades, assim como outras subtilezas operadas por Jia na relação entre relatos e imagens.Se todas estas histórias falam, no fim de contas, de muito mais do que de apenas uma “história de Shanghai”, a cidade nunca deixa de estar no centro e o filme é, com propriedade, uma pequena “história de Shanghai”. A Shanghai contemporânea, percorrida em “travellings” de automóvel, em contra-picado para apanhar os arranha-céus, cidade-estaleiro em permanente reconstrução, à medida que os edifícios históricos dão lugar a prédios modernos e espectaculares. O olhar de Jia é melancólico, sem ser assertivo nem violento: é um observador desconsolado, razoavelmente perplexo, que sabe que não se trata de uma mera questão de fachadas.

Cada prédio construído é um pedaço de história destruído - e depois há as pessoas, trabalhadores da indústria ou dos serviços, a quem a câmara dedica o mais compassivo dos olhares, compensação para o olhar vidrado, sonhador ou apenas triste deles próprios enquanto esperam pelo “ferry” para Hong Kong ou outro destino qualquer. Jia também lhes oferece canções, as canções populares (de onde vem o “Quem Me Dera Saber” do título) que já tinham papel fundamental no filme anterior, “24 City”, e são aqui outra vez a memória sussurrada, o eco, a expressão de um paradoxal tempo de inocência, de uma outra China apagada a ritmo galopante (o plano inicial, com duas grandes estátuas de leões dourados, já assinalara sinteticamente esta progressivamente desequilibrada coexistência do “velho” e do “novo”).

A paisagem e as memórias, portanto, mas ainda as representações da cidade: “Histórias de Shanghai” também é “história do cinema de Shangai”, com profusas ilustrações a partir de excertos de filmes chineses (e não só), de clássicos da propaganda dos anos 50 a filmes modernos, de Xie Jin a Hou Hsiao-Hsien ou Wong Kar-wai (porque o “prolongamento” e a “diáspora” de Shanghai para Taiwan ou Hong Kong são outro dado importante).

O espectador não compreenderá os pormenores todos, não porque Jia trabalhe em cifras, mas porque a riqueza e a complexidade das articulações e ligações que o filme estabelece apelam a um conhecimento da história política e cultural da China que não está ao alcance de toda a gente. Mas não compreender os pormenores todos, garantimos, não o impedirá de compreender o filme, muito menos de o apreciar. É rico, é complexo, é belo - e serve para aprender alguma coisa. “Pedagógico”, se a palavra ainda fizer algum sentido num contexto de cinema.

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