A roda livre da Ouvidor

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O sol - há-de brilhar mais uma vezA luz - há-de chegar aos coraçõesDo mal - será queimada a semente

O amor - será eterno novamente

1. Foi um daqueles acasos que depois sabemos que são graças, bênções ou o espírito de Nelson Cavaquinho.

Há uma semana entrei na Net à procura de um samba ao vivo para esse sábado no Rio de Janeiro, e ao segundo clique fui parar a um blogue chamado Samba da Ouvidor. Tinha a imagem de um candeeiro de rua e esta legenda: "Uma roda de samba para o samba. Nessa reunião de amigos, o objetivo principal é contribuir para que o samba continue eterno."

Por baixo anunciava uma roda especial para esse sábado mesmo, "naquele pedaço de Rio de Janeiro, onde o carioca é mais carioca", a esquina da Rua do Ouvidor com a Rua do Mercado. E porquê especial? Porque esse sábado era o dia em que o grande Nelson Cavaquinho completaria 100 anos, se estivesse vivo.

Eu já não me lembrava. Tinha sido despachada para Brasília nos dias anteriores. Brasília não tem morros nem tem esquinas. Onde é que Nelson Cavaquinho se sentaria?

2. No Rio dos anos 20, a mãe de Nelson Antônio da Silva lavava roupa para um convento, o pai tocava tuba na polícia e o tio dava aulas de violino. Nelson desviou-lhe umas cordas e tentou prendê-las numa caixa de charuto. Foi o seu primeiro cavaquinho. Até morrer compôs uns 600 sambas, além de ter fundado a Mangueira.

3. Esquina da Ouvidor com a Rua do Mercado. O blogue falava em 16h, passa um pouco quando chego, mas a roda já cá canta, e é mesmo uma roda fechada, quase todos rapazes, um mulato mais-velho ao fundo, um fortão de voz grave ao centro. Ainda está tão pouca gente que é possível ficar na primeira fila e tocar no ombro da morena que samba, para lhe perguntar o nome do fortão.

- Gabriel Cavalcante.

Também conhecido como "Gabriel da Muda", por ter crescido no bairro com esse nome. Sim, é ele que assina os posts do blogue. Aos 25 anos já vai para veterano. Só toca sambas antigos, dos dias da rádio e dos terreiros. Fundou a roda Samba do Trabalhador (segundas, no Renascença, tradicional clube de chorinho e samba) e, desde 2007, esta roda ao ar livre, dois sábados por mês. Pôs no blogue os seguintes versos do sambista Candeia: "A arte é livre e aberta / A imagem do ser criador / Samba é verdade do povo / Ninguém vai deturpar seu valor."

E os nomes dos outros tocadores habituais também se podem achar no blogue: Gabriel Menezes, Julião, Iuri, Visual, Leonardo Lelê, Velha, Pedrinho da Muda, Ricardo Brigante, Marcello Professor, Bidu, Thadeuzinho, Daniel Camisa de Botão, Dudão da Cuíca, Raphael Zanconato, Fabio Cazes.

Rapazes sentados em cadeiras, com cavaquinhos, violões, pandeiros, percussão, mesas de plástico entre eles, copos e garrafas em cima das mesas, e à roda da roda cada vez mais gente, a abraçar-se como quem não se vê há anos, porque é assim que os cariocas se abraçam.

4. Não sabia que a Matilde ia, mas a Matilde estava lá. Sabia que o Carlito ia, mas não foi preciso marcar. O Carlito encontrou o Paulo Roberto, que eu não via há dez anos. E antes de todos eles dei de caras com João Barrento, que andara pelo Brasil a falar de Maria Gabriela Llansol.

5. Ao crepúsculo éramos centenas (milhares?). Após cada intervalo Gabriel da Muda e seus rapazes retomavam com a mesma alegria toda a melancolia. Impossível? Venham ao Rio de Janeiro, ouçam Nelson Cavaquinho: "Sempre só / Eu vivo procurando alguém / Que sofre como eu também / E não consigo achar ninguém / Sempre só / E a vida vai seguindo assim / Não tenho quem tem dó de mim / Estou chegando ao fim."

Agora imaginem centenas (milhares?) a acompanharem Gabriel e a sua roda. As duas cabeleiras afro ao meu lado não têm mais de 20 anos, e cantam a luz negra do mestre que faria 100. Elas, e a avó à minha frente, de alcinhas e shortinhos; e o rapaz de óculos com a namorada mulata; e o par de namoradas, uma loura, outra negra; e o desenhador Flávio, que faz aguarelas da roda; e o velho que frequenta outra roda às quartas-feiras. Cantamos todos, no crepúsculo do Rio de Janeiro: "O sol - há-de brilhar mais uma vez / A luz - há-de chegar aos corações / Do mal - será queimada a semente / O amor - será eterno novamente." Tragédia que já passou de tragédia, como o brasileiro já passou de português, virou dança. Até os músicos sentados, pés, tronco, cabeça balançando no prazer só de estar aqui.

Como toda a poesia, isto não serve nada. Ninguém paga para ver. A gente chega e aperta-se, ombro com ombro. Vai ao bar em frente buscar cerveja, ou ao outro que faz caipirinha. Nos intervalos petisca, namora, conversa. Quando o intervalo acaba, parecemos mais ainda. Às dez da noite eles continuam a tocar e nós já não vemos os pés. "Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor." Beleza que canta, quanta beleza.

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