Em casa de Fernando Lemos

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"Eu, poeta" e "A mão e a faca-acordo secreto", duas das fotografias da extraordinária série que fez em Portugal entre o fim dos anos 40 e o começo dos 50 DIVULGAÇÃO/PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

O Brasil acreditou nele. E Fernando Lemos encontrou no Brasil o território que Portugal lhe roubara. Aos 85 anos está com uma retrospectiva na Pinacoteca de São Paulo. Uma conversa em casa sobre a sua vida brasileira. Alexandra Lucas Coelho, em São Paulo

"Leva o que não trazes - a tua mocidade.

Traz o que não levas - ter vivido.

É a história do mundo a sua crueldade

E o sonho o seu sentido."

Poema de António Pedro, pouco antes de Fernando Lemos partir, em 1953, de Portugal para o Brasil

Dá para chegar de metro a casa de Fernando Lemos, contando com uma caminhada. A estação chama-se Butantã, quase periferia já. Paisagem cinza, avenida de armazéns e stands de automóveis, sem mais pedestres à vista. No primeiro sinal, é preciso virar à esquerda e começar a subir uma encosta que lá em cima parece uma aldeia pendurada por cima de São Paulo.

Este é o Morro do Querosene, onde vários artistas moram.

A casa de Fernando na verdade são quatro, unidas pelo mesmo jardim com um muro de hera, porta vermelha e uma grande buganvília branca a pender para fora. Famílias amigas juntaram-se para construir como lhes apetecesse. Uma pequena comunidade.

A porta abre-se e aparece Adelino, motorista e assistente permanente de Fernando Lemos. Sabe tudo, onde está aquele DVD ou quem telefonará amanhã. Até para Portugal já foi, a última vez que o artista lá esteve.

Do jardim, passamos a um átrio aberto para a cozinha. Grande mesa com livros, computador, pincéis, candeeiros e, sentado ao centro, Fernando Lemos. Quem o veja, moreníssimo, hirsuto, adunco, nas raras fotografias em que aparece entre os surrealistas portugueses, terá dificuldade em reconhecer esta cabeça. Aos 85 anos, parece mais louro que grisalho, cabelo e barba, com algo de leão.

Roda a cadeira para cumprimentar. As pernas são o seu fraco. Em bebé teve uma paralisia, até aos 20 anos andou em hospitais, coxeou sempre, ao envelhecer veio a bengala e agora só cadeira-de-rodas. Do tronco para cima ninguém diria. Um homem vigoroso e atraente.

Poucas pessoas ficam mais bonitas com a idade, mas Fernando Lemos é uma delas.

Convida a sentar à sua frente. O candeeiro central fica entre nós, um cone de luz. Boa luz para os claros-escuros que ele praticou na extraordinária série de fotografias que fez em Portugal entre o fim dos anos 40 e o começo dos 50, antes de vir para o Brasil.

"Isto aqui é um achado", diz, sobre o morro. "Ficou um bairro de casinhas pequenas. Aqui não passa ônibus, não tem comércio. Significa que estamos num sossego mortal." Fala um português com sotaque de Portugal, mas aberto por décadas de Brasil e de vez em quando, numa palavra ou noutra, com sotaque repentinamente brasileiro. Veio em 1953, façam as contas: dá 27 de Portugal e 58 de Brasil.

Quando decidiu vir para o Morro do Querosene morava perto da Avenida Paulista, centríssimo da cidade. "A gente vendeu a casa, juntámos-nos com amigos, comprámos o terreno e fizemos um condomínio. Os nossos filhos tinham a mesma idade, comprámos uma "combi" para os levar à escola, ao dentista, essas coisas. Temos uma piscina ali atrás. Uma cozinha comum, com uma cozinheira que cozinha para todo o mundo."

Porque toda a gente trabalha. E entre as quatro mulheres, há uma absoluta prevalência profissional: todas psicólogas, incluindo portanto a mulher de Fernando Lemos, que daqui a pouco vai aparecer.

Entretanto ele roda a cadeira para ir buscar uma edição rara que milagrosamente lhe reapareceu em meia-dúzia de exemplares: "Cá & Lá", a sua poesia editada em 1985 pela Imprensa-Nacional com prefácio de Jorge de Sena. O mesmo título, mas invertido, da retrospectiva que neste momento - e até 15 de Novembro - tem na Pinacoteca de São Paulo.

"Cá & Lá", o livro, "Lá & Cá", a exposição, sendo cá o Brasil e lá Portugal - que não haja dúvida sobre isso.

Fernando Lemos, nascido português e naturalizado brasileiro, é pai de cinco filhos e quatro netos brasileiros. A sua primeira mulher era brasileira (de Campinas, interior do estado de São Paulo, onde continua, como professora universitária), a segunda também. São brasileiras as duas sogras que ele gosta de dizer que tem. E, tanto quanto pode prever, evitará sair mais do Brasil.

É uma decisão recente. Ainda há dois anos foi à Rússia expor.

A propósito volta a rodar a cadeira para ir à estante buscar "Eu sou fotografia", o álbum editado pela Fundação Cupertino Miranda onde só ficou a faltar um "a" no título. O correcto seria "Eu sou a fotografia", frase tirada de uma entrevista a Sérgio Gomes, do PÚBLICO, e que na altura (2009) foi polémica. Como é que alguém dizia que era "a" fotografia? Mas o que Fernando Lemos quis dizer é que já não precisava de tirar a fotografia porque o que via já era a fotografia. "Eu já sou uma câmara."

Falamos dos retratos que estão na Pinacoteca, alguns dos quais não tão conhecidos em Portugal por fazerem parte das décadas brasileiras de Fernando Lemos. Por exemplo, as escritoras Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst, em "glamour" de filme negro.

Também lá estão alguns da "fase portuguesa", mas não muitos, porque já tinham sido expostos antes na Pinacoteca.

"Amor da minha vida...", diz uma voz, entrando. É a mulher de Fernando Lemos, alta, esguia, eléctrica, olhos azulíssimos. Vem despedir-se, está a caminho do aeroporto para voar para Buenos Aires onde vai ver a filha de ambos, que ficou grávida. Quinto neto a caminho, carinhos e beijinhos.

Voltamos a ficar sós.

Fernando embrulha o álbum da Fundação Cupertino Miranda, que faz questão de oferecer à repórter, e de caminho a cabeça vai vagueando: "Sou um emigrante, estou assumindo isso com a retrospectiva. A maior parte da minha obra já foi feita aqui."

E como foi essa decisão de vir?

"A vida em Portugal era uma coisa para chorar. Uma agonia viver naquele país com uma ditadura que ia roubar o que podia ser bom em mim. Então me entusiasmei com os festejos do 4.º Centenário do Brasil em São Paulo, que seriam em 1954. Vim em Agosto de 1953. Arranjei passagem no Vera Cruz, com a ideia de não voltar mais a Portugal e não voltei. Despedi-me de toda a gente."

Levava na mala ampliações das fotografias que tinha mostrado em Lisboa, a par de Fernando Azevedo e Vespeira, numa loja chique de móveis e decoração do Chiado, a Casa Jalco. E levava cartas de recomendação de Jorge de Sena, Adolfo Casais-Monteiro e António Pedro para entregar a poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro, que era o seu destino. "Quando o Bandeira viu as fotografias disse: "Você precisa expor isso aí." Então telefonou à directora do MAM [Museu de Arte Moderna]."

Eis como, acabado de chegar, Fernando Lemos começou logo pelo topo. Mas nem por isso com os bolsos cheios.

"Fui morar no apartamento de uma família pernambucana que era na rua Tonelero, em Copacabana. Apanhava o bonde de madrugada para a praça Mauá, onde tinha um escritório..."

Operários e artistas

Primeiro impacto do Rio de Janeiro? "O clima. Saí de casa e estava chovendo aquela chuva em que cada gota é um litro de água. Entrei numa loja na esquina para comprar um guarda-chuva e quando saí o chão já estava seco. Aí entendi que estava nos trópicos. O calor..."

O primeiro carnaval. "Aí já morava no morro de Santa Teresa. Foi a maior vadiagem, com uns trocados no bolso. Acabei de madrugada indo para Petrópolis, para casa do [crítico de arte] Flávio de Aquino, que acabou me levando para desenhista da [revista] "Manchete". Conheci-o no bar Villarino, onde se concentravam os artistas da vida nocturna, o Vinicius, o Paulo Mendes Campos... Eles me recebiam dizendo: "Olha o Fernando Lemos, o Salazar mandou ele pra gente...." Ficavam lá tomando whiskey e penduravam a conta no prego. Bebiam whiskey noite e dia. Eu ia no fim da tarde e bebia água tónica, uma cerveja. Não sei beber. Também aparecia o Rubem Braga, mas o bar dele era o Vermelho. O Rio tem uma influência de coisa lisboeta."

E Fernando Lemos conheceu-o de vários ângulos. "Em Santa Teresa, os negros do morro baixavam lá no batuque. Eu vinha com eles no bonde, cantando. Conheci gente que a única coisa que tinha em casa era antena de TV, porque os filhos roubavam-na na cidade. Filhos enterrados à volta de casa. Eu tive juventude proletária, meus pais eram operários [pai marceneiro de antiquário]. Então morro para mim não era muito diferente da Rua do Sol ao Rato, onde nasci."

Ao mesmo tempo, convivia com os artistas. "O Brasil era para mim uma curiosidade muito grande. Não essa coisa do país-irmão, colonizadora. Era a inspiração de um lugar onde se criam coisas. O emigrante só se realiza se encontra o seu novo território. E eu percebi que este era o meu novo território. Senti-me entre gente livre. Porque o Brasil esteve muito bem até 1964 [data do golpe militar]." A língua, diz, não era o mais importante. "O mais importante são as linguagens, a criatividade. Portugal ainda fala como escreve. Aqui parece que a gente inventa na hora em que fala."

As noites do Villarino continuavam em boates. "Furávamos a noite em Copa. Acabávamos no Posto 6 [fim de Copacabana] a ver o sol nascer com a [cantora] Dolores Duran. Nesse tempo havia uns dois prédios em Copa, o resto eram casas. A gente andava a pé e via os velhinhos de pijama regando o jardim. Parecia uma aldeia."

Manuel Bandeira morava atrás do Villarino e uma vez por semana recebia os amigos em casa. Convidava Lemos para ir ajudar. "Não tinha nenhuma conversa pretenciosa. Gostava de saber coisas de Portugal." Já com Drummond, a relação não era tão estreita. "Era um homem mais aquietado, embora com um humor muito particular. Foi sempre uma pessoa íntegra, digna. Foi a grande figura do que deve ser um intelectual que trabalha para o estado, não para o governo. A nossa sociedade foi perdendo isso. O intelectual não teve mais orgulho em trabalhar para o estado."

São Paulo, Sampa

A mudança do Rio para São Paulo acontece quando Jaime Cortesão o convida a trabalhar no 4.º Centenário do Brasil. "Mudei-me de armas e bagagens. E aqui fiquei vivendo, indo muito ao Rio." Porque São Paulo oferecia muito mais trabalho. "O Rio praticamente não tinha galerias..."

Toca o telefone fixo. É o filho, ouve-se bem a voz. Fernando Lemos despede-se com grande carinho e rapidamente pega na conversa.

"Aqui senti que a brincadeira tinha acabado. Aqui a coisa é para valer. Trabalhei em secretarias de cultura, fui funcionário público 25 anos, sou um cara empreendedor. Não fiquei só cuidando da minha arte. Vim para saber o que significa a liberdade. E São Paulo me abriu as coisas. Foi aqui que tive oportunidade. Não é qualquer um que faz uma retrospectiva na Pinacoteca."

Cinco salas com 200 obras, entre fotografia, desenho e pintura (sobre tela, mas também em cerâmica e tecido), incluindo a recente experiência das "ex-fotos" (fotos domésticas, rejeitadas por amigos e família, raspadas e repintadas) e exemplos do grande trabalho de "design" gráfico de Fernando Lemos.

"Não sei se tudo isto poderia acontecer no Rio. São Paulo acredita em você. Me apaixonei até pelo lado pior da cidade, esse crescimento desordenado que ajudou a imprimir a velocidade, a pressa."

Em São Paulo entram na sua vida intelectuais como o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o ensaísta literário Antônio Cândido ou o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes. "O Sérgio Buarque era uma figura muito livre, uma pessoa aérea. Estava sempre de brincadeira. Quem não o conhecesse pensava que ele era bobo. Entrava em qualquer conversa. Não era de dar aula, não ficava explicando. E "Raízes do Brasil" [livro célebre de Sérgio Buarque de Holanda] é uma das coisas mais sérias feitas aqui."

Acabou por conhecer os filhos todos de Sérgio. "O Chico [Buarque] foi meu aluno. Eu estava na faculdade de Arquitectura, na parte de atelier, projectos. Quando veio a ditadura fui posto de lado pelos militares. Os alunos fizeram uma homenagem para mim, com uma exposição de desenhos, e o Chico ficou cantando a noite toda lá. Depois fomos para o atelier de um pintor, e continuámos no samba e bebendo, até que os vizinhos chamaram a polícia. Foi aí que o Chico fez aquela canção do delegado ["O delegado é bamba / Na delegacia / Mas nunca fez samba / Nunca viu Maria"]."

E que tal era Chico como aluno? "Péssimo!", ri Fernando Lemos. "Abandonou [a faculdade]. Ele pensava era em música. Bem jovem começou a ter lá em casa o [Tom] Jobim, os grandes músicos. Foi sempre um encanto. Muito cuidadoso com a fala dele. Gosta de rir, de beber, de cantar, um grande companheiro. Sempre do lado esquerdo. Não temos nada de mais bonito que o Chico."

Reparem no plural: "Nós, brasileiros. Já me é natural. Vem do amor total pela família, pelos amigos, pelo país. Foi aqui que encontrei o território que me foi roubado em Portugal. Eu não sabia se ia ficar aqui. Apesar das cartas de recomendação e tudo o mais, vim praticamente sem dinheiro." E soube logo que ia ficar? "Aos poucos. Chego num momento em que São Paulo estava tendo um grande impulso, uma grande abertura. A primeira Bienal, a indústria automobilística, os concretistas..."

Como Haroldo, já desaparecido, e Augusto de Campos, com quem Fernando Lemos ainda se dá. "O Haroldo era uma figura de génio. A gente já via que ele era um génio. Ele me telefonava e me chamava. Íamos muito a restaurante, sempre ali em volta da casa dele, em Pinheiros. O Haroldo era o centro, gostava de falar, era muito brilhante na fala, falava criando. Muita poesia dele é o resultado desse imediatismo."

Fora dos concretistas, conviveu por exemplo com Murillo Mendes. E João Cabral de Melo Neto. "Era um homem com uma permanente dor de cabeça, que ele controlava, mas que lhe dava a presença de alguém que está com atraso para fazer outra coisa. Que está mas não está."

E, claro, havia os velhos amigos como Jorge de Sena, que teve a sua temporada de exílio brasileiro em universidades do interior como Araraquara e Assis, então uns faroestes. "Ele não foi feliz aqui. Não lhe deram uma importância universitária. O [Antônio] Cândido foi quem lhe deu mais apoio. Sena era um tipo de talento que se sobrepunha aos talentos alheios. As pessoas se incomodavam com o talento dele. Isso o tornou muito áspero. Ele queria ser um ser humano completo e foi percebendo que a humanidade não é assim tão generosa. As sociedades são geralmente feitas contra a inteligência. E depois do 25 de Abril sabotaram-no completamente [em Portugal]."

Mas para Fernando Lemos, o Brasil foi o infinito. "Perdemos a noção de que na terra existem coisas que não estão exploradas. O Brasil tem isso e tem um enredo." Semelhanças com Portugal? Ambos têm de um lado o mar e do outro língua espanhola. "E é a única semelhança", sorri. "O Brasil é um tamanho que escapa à nossa noção de tamanho. Aqui a gente tem liberdade, não tem guerra, só tem malandro. A gente enfrenta corrupção e não afunda. Estamos pondo a mão no nosso atraso e ganhando etapas como se fossem vitórias. A gente pode discordar do Lula. Eu não discordo. Foi uma maravilha o Brasil ter o poder de baixo para cima, com todos os defeitos."

Amanhã é feriado. Fernando Lemos lá estará na Pinacoteca, rodando as cinco salas da exposição na sua cadeira de rodas, com uma cauda de gente atrás, improvisando uma visita guiada. O Ípsilon há-de ir dar com ele na última sala, a despedir-se da gente, um por um.

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