Desta década em que vivemos diz-se segunda, apenas porque nos chega em trespasse da primeira - cujo privilégio passou por desvirginar o milénio. Podemos simplesmente olhá-la com o despudor experiente que lhe confere a década anterior ou mesmo apelidá-la, não de "vintage", mas de pós-dramática, pois todas as convenções que criámos até hoje deixaram de nos servir, tal vestido de casamento, após dez anos de enfastiadas ceias em frente ao televisor.
Se por um lado, deixámos de ser personagens anónimas ou de ter grandes protagonistas, por outro, tornámo-nos pseudo-estrelas "pop" das redes sociais – como se alguém fora do nosso círculo de curiosos tivesse interesse acerca do nosso estado de espírito, que só por si escrito, já está em segunda mão.
Os veículos motorizados estão apetrechados de uma caixa de velocidades (em português do Brasil, diz-se “caixa de câmbio”, o que não podia ser mais apropriado nesta segunda década) e a cada instruendo das escolas de condução cabe a sensibilidade de, pelo som do motor, distinguir e intuir naturalmente qual a mudança a colocar para que a viatura circule com normalidade. Com o tempo, o condutor mais experiente, fá-lo em pleno processo inconsciente das suas faculdades psicomotoras.
À semelhança de um veículo quitado e/ou no nosso caso luso, quinado, digamos que nesta segunda década, deixamos de ser o condutor e transformámo-nos numa carrinha de pão-de-forma Volkswagen, equipada com uma caixa de velocidades automática. Acontece que a velocidade do nosso veículo é operada, não pela nossa própria vontade ou intuição ou experiência, mas por uma segunda mão motorizada, cujo único objectivo é levar-nos ao destino no mínimo de tempo possível e com o mais baixo consumo. Era bom que a viagem que nos reserva esta década de segunda, fosse traçada por uma rota teológica e/ou "egológica", mas a verdade é que, somos apenas passageiros numa engrenagem manhosa, operada por artistas de marionetas.
Mesmo sem entender de mecânica e de física, qualquer pessoa pode concluir que não existe segunda sem primeira – Jacques de la Palice anui – e que só existem verdadeiramente duas velocidades relevantes: a inércia e o movimento.
