Borges versus Maradona
Borges vincava as suas origens nos antepassados portugueses e admirava Camões, o Padre António Vieira e Pessoa
Em 24.08.1999 o Clube de Tango do Porto, uma modesta mas animada associação cultural patrocinada pela Embaixada da República Argentina, comemorou (no Norte, ninguém mais o fez) o 1º centenário do nascimento de Jorge Luís Borges, o genial escritor que propalava a sua ascendência portuguesa ("pouco ou nada sei dos meus antepassados/portugueses, os Borges: vaga gente/que prossegue na minha carne, obscuramente/os seus hábitos, rigores e temores...").
Em 1984 ele esteve em Portugal pela terceira vez e, embora já sendo cego, queria ir a Moncorvo, "pisar o chão dos antepassados e sentir o mesmo odor dos pinheiros", o que não aconteceu por condicionalismos da sua estadia entre nós.
Quem visitar a linda vila trasmontana fica surpreendido com a placa toponímica numa via com pouco mais de cem metros que evoca, desde 1987, este gigante da literatura universal (como o designou Saramago): Avenida Jorge Luís Borges/Escritor Argentino descendente de Torre de Moncorvo. Alguns dos habitantes mais velhos, reunidos num café com o divertido nome de Café Petisqueira Tango, próximo dessa pequena avenida, quando questionados sobre quem é esse Borges, têm uma ideia muito vaga da sua biografia, mas, naturalmente, demonstram orgulho nesse parente distante de cujos antepassados não conhecem o rasto.
Apesar de ser um recatado senhor sem vícios, de distintas famílias e esmerada educação, Borges descreveu, em algumas páginas da sua obra, as origens humildes e pecaminosas do tango e a alma desta música e dança, nascida em Buenos Aires mas expandida para o mundo como "um pensamento triste que se dança" e que agora foi declarado património da humanidade. "O tango cria um turvo passado irreal/ que faz algum sentido:/ a incrível sensação de ter morrido/lutando numa esquina de subúrbio." Estes são os versos finais de O Tango, um poema épico de Borges, que via na essência do tango a história amarga e atribulada das gentes de todas as proveniências que constituíram o aluvião imigratório desaguado em Buenos Aires desde meados do séc. XIX, onde se contaria o seu bisavô português marinheiro.
Da dita comemoração constou um recital de poemas seus, realizado no Labirinto (café do Porto, com história, assim baptizado nos anos 70 em alusão ao conto O jardim dos caminhos que se bifurcam), e um espectáculo de tango (musical e coreográfico) em Moncorvo, patrocinado, com o maior desvelo, pela respectiva câmara. Nesse evento, explicou-nos o autarca, a pouca afluência de público deveu-se a que, nessa mesma noite e a uma légua dali, actuavam os Anjos, banda musical de sucesso na época.
Passado algum tempo deste evento, numa manhã em Buenos Aires, na feira dominical de San Telmo, avistei Maria Kodama (a paixão tardia de Borges a quem ele, agnóstico, confessou: "Preferiria viver contigo no inferno do que com Deus no paraíso."). Via-se-lhe um semblante triste, mas um sereno caminhar. Abeirei-me, irresistivelmente, dela e estivemos uns breves momentos à conversa antes de ser envolvida por uma onda de mulheres locais que, de repente, se formou e a levou, excluindo-me naturalmente, mas ainda me tendo confidenciado que Borges vincava as suas origens nos antepassados portugueses e admirava Camões, o Padre António Vieira e Fernando Pessoa, entre outros da nossa literatura.
A imprensa culta de toda a parte tem evocado a efeméride dos 25 anos da sua morte (Genebra, 14.06.1986) e, no passado 24 de Agosto, data do aniversário do seu nascimento, o motor de busca Google homenageou-o apresentando um logótipo (google doodle) especial, evocativo dos seus dois contos mais conhecidos. É espantoso que entre nós a efeméride tenha passado completamente despercebida, desprezando as origens portuguesas desta figura maior das letras universais, ao ponto de não sentirmos o mínimo interesse em divulgá-la. Aqui a grande imprensa desse dia, como a da véspera e a do dia seguinte, nem um apontamento de caridade dedicou a Borges, esgotado o espaço com informações de fealdades e horrores à mistura com coloridas imagens de ídolos de pés barro e os habituais figurantes dum circo pobre.
Esta realidade não seria estranha ao próprio Borges, nem tão-pouco o perturbaria, como no dia em que ia proferir uma palestra na Biblioteca Nacional de Buenos Aires, já no auge da grandeza e da fama, e a organização se viu desapontada perante uma assistência de, apenas, uma vintena de pessoas. Lamentaram e desculparam-se perante Borges, com o mesmo embaraço do autarca de Moncorvo, explicando-lhe que a essa hora "estava toda a gente a ver o Maradona". "E quem é o Maradona?" perguntou-lhes Borges. "Não sabe quem é Maradona?!... Olhe que é mais popular que Borges!...", ao que ele retorquiu com oportuna franqueza: "Bem!... a estupidez também é muito popular!..."
Nesta efeméride, obrigado a Borges pela beleza dos seus textos e poemas que dão claridade à epopeia da nossa existência no labirinto onde, no final, nos espera, implacavelmente, a morte. Co-fundador, em 1995, do Clube de Tango do Porto, associação cultural extinta em 2003