Uma vida quase igual às outras

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Durante dez anos engenheiro electrotéc-nico, em 2009 houve um despedimento colectivo na empresa onde trabalhava. Nessa noite decidiu que não ia desesperada-mente à procura de emprego, ia escrever um livro MIGUEL MANSO

Com o seu primeiro romance "O teu rosto será o último" João Ricardo Pedro conquistou o Prémio Leya 2011. Desempregado, resolveu concretizar o seu sonho. Isabel Coutinho

João Ricardo Pedro, 38 anos, está à porta da Pastelaria Carcassone, Lisboa, de óculos escuros. Passou mal a noite. Dormir tem sido difícil desde o dia em que o júri do Prémio Leya 2011 deliberou por maioria atribuir os 100 mil euros ao seu romance "O teu rosto será o último".

É uma mudança de vida. Durante dez anos engenheiro electrotécnico, em 2009 houve um despedimento colectivo na empresa onde trabalhava. "Fiquei umas horas abananado: dois filhos, casado, uma casa por pagar, era uma situação complicada." Mas naquela noite em que se viu sem emprego, tomou uma decisão: "É amanhã. Vou levar os miúdos à escola, volto para casa e começo a escrever um livro." No dia seguinte a mulher chegou a casa e perguntou-lhe: "Então, já começaste a procurar emprego?" João respondeu-lhe: "Não. Comecei a escrever um livro". Ela olhou-o demoradamente e fê-lo prometer que escreveria uma página por dia. Durante dois anos escreveu milhares de páginas. A maioria foi para o lixo.

O autor de "O teu rosto será o último" nasceu na Reboleira. Passou a juventude em Queluz. Foi péssimo aluno. Tinha jeito para matemática e não tinha hábitos de leitura. Foi para engenharia electrotécnica porque diziam que dava dinheiro. Em 2000 arranjou emprego, casou e passou a morar em Lisboa. Numa entrevista disse que tinha começado a ganhar o gosto pela leitura ao ler "O Velho e o Mar", de Hemingway. Afinal não foi bem assim. Ao pé de sua casa havia uma Livraria Europa-América onde, aos 17 anos, comprou uma edição "ranhosa" de "A Metamorfose", de Kafka. Era para lhe dar "estilo" quando ia para o liceu. "Não sabia quem era Kafka, nem sequer sabia o que queria dizer "metamorfose". Achei que tinha "estilo". Depois comprei "O Processo" que me ocupou mais tempo." Dois anos depois chegou a "O Velho e o Mar", conselho de um amigo. Sentiu que havia uma presença física por trás daquele livro. "Se calhar" podia fazer uma coisa parecida. Na adolescência leu Kafka, mas não leu "Os Maias" de Eça, que fazia parte do currículo obrigatório. "Agora gosto mais de Eça do que de Kakfa [gargalhadas]. Li já casado, há pouco tempo, fascinou-me. Aos 17 anos não tinha maturidade para o Eça. Queria era jogar à bola, estar no computador. O meu mundo era completamente masculino, de bairro suburbano."

A maratona

Trabalhou muitos anos em Coimbra. Quando chegava ao final do dia, cansado, ao hotel e desatava a ler, os colegas de quarto gozavam com ele: "És maricas, pá!" Mas entre cada livro que lia, pensava: "Vou começar a escrever o livro." Não queria contar uma história, queria escrever. "É como um tipo que acha que é capaz de fazer a maratona. E qual maratona? Uma qualquer! A de Londres, a de Lisboa, a de Nova Iorque. Pus na cabeça: eu hei-de ser capaz de escrever um livro". Não tinha ideia de história. Se calhar tinha algumas ideias vagas, "porque uma pessoa vai no carro e pensa". Mas quando se sentou a escrever, o livro começou por ser a história do seu falhanço profissional. "A minha vida recente reflectiu-se nas primeiras páginas que estava a escrever. Três dias depois abandonei a ideia. Não fazia sentido, não queria falar de mim." Passou então a ser a história de uma criança que relatava o funeral do avô e as vidas das pessoas que por lá passam. Ao fim de uns meses tornou-se terrível. "Eram tristes as vidas daquelas pessoas. Ao ser relatado na primeira pessoa afectava-me a mim. Não tinha capacidade emocional para escrever na primeira pessoa. Foi outra vez tudo para o lixo." Começou, então, a escrever sobre um Duarte que nasceu antes do 25 de Abril, tal como ele. Mas também sobre os avós e os pais dessa personagem (chama-se Duarte em homenagem ao filho de Ruy Belo, o fotógrafo Duarte Belo, com quem João jogava à bola em Queluz). "Construí a história de uma família feita de exílios, de segredos, de incapacidades de comunicação. O livro começou a ganhar uma nova dimensão: de que forma a história dos países pode dar cabo da vida das pessoas."

Como não sabia como se constrói um romance ou como se fazem diálogos, à medida que escrevia devorava livros que já tinha lido (por exemplo, Tolstói) com a perspectiva de perceber "como é que isto se faz". Por essa altura comprou as sonatas para piano de Beethoven tocadas por Alfred Brendel. Teve a sensação de que Beethoven tinha problemas na sonata 15 que só eram resolvidos na 32. "Melodias, harmonias que remetiam para coisas passadas. Isso influenciou-me e se eu fizesse um livro assim? Fiz. Não o dividi em 32 partes, mas em sete. Também não sou o Beethoven!" (risos)

A opinião do júri

Dividiu o romance como se de uma sonata se tratasse, em diferentes andamentos. Coisas que parecem desconexas têm resposta mais à frente. A forma e a estrutura de "O teu rosto será o último" foram realçadas pelo júri do Prémio Leya. O crítico e escritor brasileiro José Castello considerou-o um romance curioso, logo na estrutura. "É um conjunto de histórias de aparência solta. Em alguns momentos você sente que está a ler um conjunto de contos mas com o avançar da leitura percebe o modo subtil como essas histórias soltas se ligam". A editora Maria do Rosário Pedreira, que integrou a equipa que fez a primeira triagem dos 162 originais que concorreram ao prémio, considerou-o "um romance com uma estrutura original, cuja história apreendemos a partir de capítulos autónomos que representam momentos-chave na vida de Duarte, o protagonista, pianista que não chegou a ser."

João Ricardo Pedro podia ter ficado a escrever o livro o resto da vida. Foi nessa altura que a mulher lhe chamou a atenção para o concurso. O prazo de entrega dos originais era no final de Maio. Faltavam três semanas. João disse que não tinha tempo. A mulher lembrou-lhe que tinham passado dois anos, tinha de arranjar tempo e concorrer. Os 100 mil euros eram o incentivo. João leu por alto o regulamento - "li o valor, ainda hoje não faço ideia das letras pequeninas" - e trabalhou intensamente nas semanas seguintes. A entrega dos inéditos terminava numa terça-feira, João acabou-o no fim-de-semana.

Para Nuno Júdice, outro dos membros do júri presidido por Manuel Alegre, este livro tem "uma capacidade de agarrar a leitura que se associa a uma permanente sensação de surpresa, sobretudo quando fala de coisas já muitas vezes tratadas: a ditadura, o 25 de Abril, a guerra colonial, a vida na província, etc." Foi essa frescura ficcional que o prendeu. Quando terminou a leitura, ficou com as personagens na memória, "o que é totalmente inesperado numa primeira obra". Para este escritor, que vai acompanhando a nova ficção portuguesa "muitas vezes obediente a códigos que não a deixam voar", há neste livro "qualquer coisa de novo e de diferente".

O prémio Leya mudou a vida a João Ricardo Pedro que agora só quer passar os seus dias em casa, começar a escrever às 8h30, almoçar da uma à uma e meia, regressar à escrita até às quatro da tarde e, depois, ir buscar os filhos à escola. Enfim, ter uma vida igual às outras.

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