Ernesto de Sousa, o operador estético

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Com a recente publicação pela editora Tinta-da-China de "Cartas do Meu Magrebe" - na colecção de livros de viagem dirigida por Carlos Vaz Marques -, o nome de Ernesto de Sousa (1921-1988), o seu autor, voltou a estar em contacto com o público. No prefácio ao livro, Isabel do Carmo conta a história destas crónicas (acompanhadas por fotografias) magrebinas, escritas no início dos anos 60, com o Magrebe em convulsão independentista, e o fim da guerra da Argélia. Ernesto de Sousa decide assumir a "missão de mensageiro desta realidade" e propõe à direcção do "Jornal de Notícias" uma série de crónicas a serem enviadas de Marrocos, Argélia e Tunísia. Os custos seriam suportados pelo repórter, e posteriormente o jornal pagá-las-ia. Umas quantas chegaram a ser publicadas, mas sobre outras caiu a tesoura da censura. Relembra Isabel do Carmo que "não era oportuna qualquer menção a um país que ‘tão desfavorável e reprovável atitude' (palavras do director do jornal) tinha em relação" a Portugal. Mas essas crónicas censuradas foram agora, e pela primeira vez, publicadas. E basta a leitura de uma ou de duas, para percebermos que foram escritas por alguém com uma sensibilidade e poder de observação singulares. A geração mais nova - ou mesmo aqueles que nos anos 70 e 80 andaram mais distraídos da realidade cultural portuguesa - perguntarão quem foi este Ernesto de Sousa. E para avivar a curiosidade, a "nota biográfica" apresentada no final do livro impressiona. Estranho país que deixa corroer algumas memórias em poucos anos.

Do neo-realismo

às artes experimentais

E foi exactamente para lutar contra esta tendência de deixar perder memórias importantes, no caso presente, as dos trabalhos realizados por Ernesto de Sousa - que marcaram gerações de artistas -, que um grupo de pessoas se reuniu e criou o CEMES, Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa - que tem na net o sítio (www.ernestodesousa.com) - e criou ainda uma bolsa de estudos (a ser utilizada numa universidade dos EUA) atribuída anualmente a um estudante de artes plásticas. Em breve, será publicado no Brasil o livro de Ernesto de Sousa "Oralidade, futuro da arte?" (textos de 1957-1987).

Nos anos 40, depois de ter passado pela Faculdade de Ciências de Lisboa, onde cursou Ciências Físico-Químicas, Ernesto de Sousa começa a interessar-se pela "câmara escura", como ele próprio refere. Fez inúmeros levantamentos etnográficos, fotografou escultura medieval, arte popular, e fez retratos urbanos, mais ou menos carregados com a indústria da época. Parte desse importante acervo fotográfico encontra-se hoje na Divisão de Documentação Fotográfica do Instituto Português de Museus). A par da fotografia, interessa-se também pelo cinema, e é o impulsionador do cineclubismo em Portugal, ao fundar em 1947 o primeiro Cineclube, o "Círculo de Cinema", que alguns anos depois é assaltado pela PIDE e encerrado. No entanto, o facto não deixa esmorecer o movimento cineclubista, tendo sido organizados vários congressos. Mais ou menos por esta altura, foi co-fundador, com Fernando Lopes-Graça, do Coro da Academia dos Amadores de Música.

O design gráfico foi também um dos seus interesses, tendo reunido ao longo de décadas uma importante colecção de cartazes, quer políticos, quer relacionados com o cinema, com exposições, ou com outro tipo de manifestações.

É também por estes anos, a meio da década de 40, que se dedica a escrever sobre arte e literatura (fazendo crítica) - ele posicionava-se como neo-realista - nas revistas "Seara Nova" e na "Vértice". Na sua autobiografia, interroga-se: "A crítica é uma opção ou uma necessidade?" E depois cita Garrett, "Em Portugal é uma necessidade."

Mariana Pinto dos Santos, estudiosa da obra de Ernesto de Sousa e autora do livro "Vanguarda & outras loas: percurso teórico de Ernesto de Sousa" (Assírio & Alvim, 2007), é da opinião que "já nessa altura, o neo-realismo dele não era muito ortodoxo - vinha mais na linha de Mário Dionísio". O que parece explicar o seu interesse posterior pela Arte Popular. Durante algum tempo, estuda escultura portuguesa popular. E ainda segundo Mariana Pinto dos Santos: "estes estudos são importantes porque vão abrir a possibilidade estética para o neo-realismo, numa linguagem mais aberta a tudo quanto possa ser absorvido - como acontece na Arte Popular - e tudo isso se encaixa muito bem com algumas propostas de arte experimental e performativa que está muito em voga na Europa." É desta forma, ou melhor, é por esta via, que Ernesto de Sousa passa do neo-realismo (que não chega a abandonar) para as artes mais experimentais e conceptuais. Não estabelece uma cisão entre uma coisa e outra, fazendo antes uma espécie de "movimento autofágico" em que consegue incorporar o neo-realismo neste novo sistema aberto em que tudo pode entrar. A experiência passada pode ser digerida e transformar-se assim numa coisa nova.

A este propósito, não deixa de ser curiosa a afirmação de Ernesto de Sousa numa entrevista dada em 1965 a Fernando Tunhas: "O meu interesse pela escultura vai nele de par com o interesse por uma definição viva, estética e não etnográfica da nossa arte popular, e resulta em parte de uma óptica que ganhei com o cinema e a fotografia. Com efeito, a fotografia da escultura conduziu-me a uma atitude que raiava a da estética do fragmento ainda antes de ter lido os trabalhos de Croce e Berenson. Nesta matéria, a minha única preocupação é ser, como diria Rimbaud, absolutamente moderno. Mas o problema põe-se: como ser absolutamente moderno? Se se trata da nossa própria vivência é necessária uma descoberta de mim próprio. Eu sou original e único, mas esta certeza íntima é pré-reflexiva."

Cinema

O interesse de Ernesto de Sousa pelo cinema é enorme, e não apenas como espectador. E graças a uma bolsa de estudos consegue ir para Paris, onde permaneceu desde 1949 a 1952. Frequenta cursos de cinema na Sorbonne e no Institut des Hautes Études Cinematographiques, ao mesmo tempo que tem aulas de arte na École du Louvre. A curiosidade pelo cineclubismo não se tinha apagado e torna-se membro do cineclube do Quartier Latin, onde, entre outros, conhece François Truffaut. Chegou, à época, a privar também com Alain Resnais e Agnès Varda. Regressado a Portugal, cria a revista "Plano Focal" (de que saem 4 números, um deles com uma longa entrevista a Man Ray), é uma revista de técnica fotográfica "pura e dura".

Ainda no campo das publicações mais ou menos técnicas, há que destacar a revista "Imagem", fundada em 1956 (manteve-se com uma publicação regular até 1961), e de que Ernesto de Sousa era o redactor principal, estabelecendo e defendendo já as ideias do chamado "Cinema Novo".

Lutando sempre com problemas financeiros para começar a realização de um filme (os subsídios estatais eram distribuídos para os "populares" filmes do regime), consegue fazê-lo em 1958. O filme iria chamar-se "Dom Roberto", e no elenco estão nomes como Raul Solnado, Glicínia Quartin, Nicolau Breyner e Rui Mendes. Com todas as dificuldades financeiras, fica pronto apenas em 1962, e é exibido ainda nesse ano. Ernesto de Sousa condensa no filme todo o seu conhecimento, tornando-o num objecto curioso. A acção passa-se nos pátios de Lisboa, mas é uma visão crítica, muito diferente daquela que passava cheia de alegria nos filmes do regime. "Dom Roberto" é considerada uma obra inovadora em que se juntam elementos do neo-realismo e da Nouvelle Vague, movimento com esteve em contacto nos anos que passou em Paris. No ano seguinte, estreia-se "Verdes Anos", de Paulo Rocha, filme que é considerado também uma das obras fundadoras do "Cinema Novo Português".

"Dom Roberto" é apresentado no Festival de Cannes, em 1963, e são-lhe atribuídos dois prémios: "La Jeunesse Critique" e o da "L'Association du Cinema pour la Jeunesse". As críticas dos jornais e revistas francesas enaltecem-no. A esse propósito, reproduz-se aqui excertos de uma carta de Ernesto de Sousa para a sua irmã e cunhado, Eduardo Calvet de Magalhães, datada de 4 de Março de 1963:

"E agora depois do tríptico Mannheim-Paris-Bruxelas; agora que o historiador de cinema e crítico Georges Sadoul, numa longa crítica entusiasta me considera "realizador de classe internacional", e ter o filme sido apresentado em França, "um acontecimento na história do cinema"; que outros fazem comparações com Buñuel e Vigo, (ou Sadoul com Chaplin); que me comparam, preferindo-o, com filmes de grande êxito como ‘O Dia Mais Longo' ou ‘Sodoma e Gomorra'; que o único crítico que lhe torceu o nariz me tenha honrado comparando-o com um dos meus desenhadores preferidos (o filme é um Peynet miserabiliste), agora, sinto que só ganharei esta batalha, quando na minha terra me tiver imposto, tiver imposto o maravilhoso e imperfeitíssimo filme que é o ‘Dom Roberto'. (O que só conseguirei, verdadeiramente, com outros filmes...). Mas adiante: lereis as críticas, gozareis comigo."

As dificuldades financeiras para continuar a carreira de realizador não se extinguiram, apesar de ter realizado filmes publicitários, e durante os anos de 1966-69, dedica-se ao ensino. Lecciona na Sociedade Nacional de Belas-Artes um Curso de Formação Artística, nomeadamente as disciplinas de Estética do Teatro e do Cinema e Técnicas da Comunicação. O teatro também não era assunto estranho para Ernesto de Sousa, tendo um largo trabalho como encenador, em que algumas das peças apresentavam músicas de Jorge Peixinho escritas propositadamente. É nestes finais da década de 60, mais precisamente em 1969, que realiza algumas obras em vídeo (a que chamou mixed-media), com realce para "Nós não estamos algures", e a mais conhecida "Almada, Um Nome de Guerra" (há a possibilidade de esta tornar a ser exibida em 2012 na Fundação Serralves).

Almada Negreiros foi para Ernesto de Sousa, ao longo da sua vida, referência permanente. Nos anos 70, com outras pessoas, conseguiu retirar de um cinema madrileno, o Cine San Carlos, uns valiosos painéis pintados por Almada, arriscando com isto (segundo ele) uma pena de prisão de 30 anos, caso fossem interceptados pela Guardia Civil na fronteira espanhola.

Durante estes anos, e já desde a década anterior, divulgou em Portugal a arte-vídeo, o happening, e a performance. Graças às suas deslocações ao estrangeiro (torna-se visita frequente de inúmeros museus e galerias internacionais, bem como convidado de importantes conferências), estabeleceu uma espécie de rede de contactos com importantes artistas, e desta forma tornou conhecida lá fora a arte portuguesa, abrindo-lhe caminhos em diferentes direcções. Mas de igual forma trazia para Portugal ideias que então circulavam pela Europa, divulgando-as por cá em conferências e artigos que fazia publicar. Por esta época, era já e desde há muito tempo uma das maiores referências da arte em Portugal. Emídio Rosa de Oliveira, em "Ernesto de Sousa - a Vida transformada em Arte", resume bem a sua importância para a arte em geral: "(...) a desenvoltura que caracteriza o perfil contemporâneo de um esteta que experimenta saberes, manipula técnicas, ensaia pontos de vista, deixando-nos ler, nos resíduos deixados, uma vitalidade crítica e uma vontade deliberada do novo, avessa à mediocridade morna do gosto convencional. Ernesto de Sousa deixa-nos perplexos quando define em termos novos a política da arte - sem emoldurar a produção sublime dos bens estéticos."

O acto artístico era para Ernesto de Sousa uma "operação estética" e ele classificava-se a si próprio como um "operador estético". Não há na arte em Portugal, no século XX, uma figura que se lhe possa comparar e que tenha tido a atenção, merecida, vinda das áreas mais díspares, e que ao mesmo tempo tenha congregado ao seu redor tantos artistas. Um dos melhores exemplos, será a exposição "Alternativa Zero", por ele organizada e comissariada em 1977, e que teve lugar na Galeria Nacional de Arte Moderna, em Belém.

Ernesto de Sousa tenta reunir neste acontecimento todas as tendências da arte experimental e conceptual, ao mesmo tempo que fazia da exposição um núcleo de interactividade. Participam artistas como Helena Almeida, Alvess, Fernando Calhau, Alberto Carneiro, Noronha da Costa, Leonel Moura, Jorge Peixinho, Julião Sarmento, João Vieira, António Palolo, Ângelo de Sousa, entre dezenas de outros. Curiosamente, esta exposição já foi replicada em Serralves em 1998, e em Palermo em 2002. Eduardo Prado Coelho, que chamou a Ernesto de Sousa "inventor de desvios" (expressão feliz que aglutina toda a sua vida), escreveu no catálogo da "Alternativa Zero" um texto lindíssimo que aqui reproduzimos uma pequena parte: "Assim o artista de vanguarda, que menos que artista é mais operador de pautas futuras para encontro, reunião, concílio, estábulo, tábua flutuante de fazer amor, palha incendiada, crepitação venenosa, rampas de fascinação, conchas de sono. Recolho estas palavras desfiadas e avanço-me nelas. Sei apenas, nas calhas do não-saber, que me movo da arte para o futuro dela, e assim deslizo sobre a polpa dos materiais, dos fantasmas, das vozes ciciadas, das memórias soltas (...). Sei ainda que, junto a vós, obstinados trabalhadores do imaginário, estou mais perto de mim do que nunca (...) Aqui não é da arte a completar a vida que se trata, nem as alcatifadas comemorações de um passado glorioso, mas dum resto, dum insignificante e encarniçado resto, o resto da vida que falta a quem da vida apenas vive o que ela é."

À data da sua morte, em 1988, Ernesto de Sousa encontrava-se a trabalhar em dois projectos, "I am Innocent" e "Aldeia Global", e esperava recorrer, para os concretizar "à ligação internacional entre computadores", numa altura em que os computadores eram um bem raro, o que de si mostra o vanguardismo com que sempre acompanhou o desenvolvimento da arte.

O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian dedicou-lhe a exposição "Revolution My Body", em 1998.

O autor agradece a gentil colaboração de Isabel Alves, viúva de Ernesto de Sousa.

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