Zamperini sobreviveu à história do século XX

Se há vidas que dão um filme, a de Louie Zamperini é um festival. Foi aos Jogos Olímpicos, conheceu Hitler, andou na guerra, sobreviveu ao Pacífico, foi torturado, descobriu a fé e perdoou aos inimigos. Está tudo num livro, escrito por uma mulher a quem Louie ofereceu uma das suas medalhas.

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Treino em 1940, quando o sonho dos Jogos Olímpicos de 1940 ainda estava de pé;na página anterior, Zamperini diverte-se com um

Louie Zamperini fala ao telefone, a partir da sua casa na Califórnia, mas o sorriso adivinha-se. "Cometi o erro número um, que é estar ansioso por razão nenhuma... Estava ansioso por acabar aquilo, andava a fazer uns arranjos no quintal, caí e por pouco não partia o pescoço. Mas já passou." Três dias antes, a entrevista fora adiada devido a este incidente doméstico. Fosse Louie um tipo normal e provavelmente ainda estaria a recuperar do susto. Mas ele é um sobrevivente. Aos 94 anos, tem para trás uma vida recheada de histórias dramáticas, episódios divertidos, momentos de glória e abismos de desespero.A vida dele vai dar um filme. E, entretanto, já deu um livro.

Diga-se, desde já, que Louie não parece particularmente entusiasmado com a ideia de se ver em filme. Prefere o livro, escrito por Laura Hillenbrand e lançado agora em Portugal pela D. Quixote com o título Invencível. Nele se conta a história do miúdo problemático de Torrance, Califórnia, que se tornou atleta olímpico, herói da II Guerra Mundial, náufrago no Pacífico, sobrevivente dos campos de prisioneiros japoneses, cristão iluminado, orador motivacional, pai e avô. O livro tem mais de 500 páginas e difícil será condensar tudo isto em filme...

Louie não poupa elogios ao livro. "Quando ela me telefonou a dizer que queria escrever a minha autobiografia eu disse-lhe: "Lamento, veio tarde, já está feita [O livro de memórias chama-se Devil at my Heels]." Mas ficámos amigos e continuámos a falar. E então, passado um ano, ela disse-me que queria escrever a minha biografia... Achei que já não sobrava grande coisa para contar, mas ela surpreendeu-me. Pesquisou tudo, descobriu coisas que eu nunca descobriria!" Solta uma gargalhada. "Mandei-lhe o meu diário de guerra e ela confirmou tudo duas vezes, para ver se eu não tinha inventado nada!"

Espantoso é que esta relação de oito anos tenha sido forjada ao telefone. Laura e Louie nunca estiveram juntos. "Ela é uma querida. Falámos por telefone para aí umas 100 vezes, mas nunca a conheci pessoalmente", lamenta.

Laura, a autora do best-seller Seabiscuit, que conta a história de um cavalo de corrida durante os anos da Grande Depressão, sofre de síndrome de fadiga crónica, uma doença altamente incapacitante. Nas fases mais agudas, que envolvem tonturas permanentes, nem sequer consegue sair do quarto. "Nunca soube que ela estava doente até o ler no livro", conta Zamperini. "Ela nunca me disse. Quando me apercebi de que ela estava em sofrimento há 25/30 anos e eu só sofri um par de anos no campo de prisioneiros, mandei-lhe a minha medalha Purple Heart [condecoração militar dos EUA], dizendo-lhe que ela a merecia mais do que eu."

Pés para que vos quero

Bom, Louie também está a ser um querido. A Purple Heart é atribuída a militares feridos ou mortos em combate e muito poucos a terão merecido mais do que ele. Não foi, aliás, a única homenagem pública que recebeu. Mais do que de um militar corajoso e sacrificado, a história de Zamperini fala de um homem capaz de sobreviver às mais atrozes provações e de as encarar, sempre, com um sorriso nos lábios. É uma história que envolve duas revelações e outras tantas situações-limite de sobrevivência, uma queda aos abismos e o regresso ao mundo dos vivos. É uma história americana por excelência. Na verdade, é a história americana.

Louis Silvie Zamperini nasceu em 1914 em Olean, estado de Nova Iorque, filho de imigrantes - o pai, italiano; a mãe, austro-italiana. Ainda muito novo, mudou-se com a família para a Califórnia, onde se instalaram na cidade de Torrance. Para se defender das constantes provocações de que era alvo na escola devido à sua condição de filho de imigrantes, o pai iniciou-o nos segredos do boxe. Abriu, sem querer, uma caixa de Pandora que quase levaria Louie à prisão.

Depois do primeiro soco, o miúdo de apelido e sotaque italiano deixou-se inebriar pela sensação de poder que lhe dava a violência. Ele que já era um artista dos pequenos furtos (muitos deles, reconheça-se, apenas para pregar partidas), tornou-se num rufião. Saía de casa, roubava, batia. "Tive a sorte de ter um irmão [mais velho] que me apontou o caminho. Sem ele, acho que nunca teria conseguido fugir à vida que levava. Acho que nunca teria sido ninguém na vida."

Um dia, o irmão Pete pegou em Louie e levou-o até um sítio onde estavam "uns tipos a trabalhar ao sol, a darem cabo do físico por meia dúzia de tostões". Louie relembra este episódio como uma das poucas coisas que realmente o assustaram na vida. "O Pete disse-me que um dia eu me juntaria a eles; que, se não mudasse de vida, ia ser um inútil." Foi então que surgiu o atletismo. Pete corria, Louie - que nesse dia tivera a sua primeira grande revelação - seguiu-lhe as pisadas e a sua vida mudou para sempre. "Nessa noite, fiquei acordado durante horas. Decidi que iria ser atleta. Tinha de ter um futuro!"

E começou a correr. Bom, correr era coisa que ele sempre tinha feito, quanto mais não fosse para se escapar rapidamente, e indetectado, das cenas que armava... Só que os treinos eram diferentes. Doíam. "O meu irmão dizia-me sempre: "A última volta é a sofrer, mas é um minuto de dor para uma vida de glória!"" Custou, ao princípio. Até que um dia Louie ouviu o seu nome gritado das bancadas. E gostou. A partir daí, soube que a recompensa valia o sacrifício.

O aperto de mão de Hitler

Na prova da milha, cujo equivalente olímpico é a corrida de 1500m, Zamperini tornou-se sinónimo de grande promessa. Estabeleceu recordes escolares e universitários, depressa se colocou na pole position para ser o primeiro do mundo abaixo dos quatro minutos. Os Jogos Olímpicos de 1936 vinham aí e Louie, ainda praticamente um rookie, sonhava com o apuramento na sua distância de eleição, mas depressa percebeu que os escassos meses de treinos não davam. Desilusão. E novo plano. Louie era sempre capaz de mudar de planos. Numa corrida épica, conseguiu um lugar entre os apurados olímpicos americanos para os 5000m.

De repente, o miúdo de Torrance via-se a bordo de um transatlântico rumo à Europa, na companhia de todos os grandes nomes do atletismo dos EUA. "Foi fantástico, conhecer toda aquela gente e - ainda mais marcante - nunca pensei um dia estar a bordo de um navio daquele tamanho e que servia aquela comida... Durante a Grande Depressão [período de crise económica e social nos EUA que se seguiu ao crash bolsista de Wall Street, em 1929] havia pouca comida e a que eles serviam ali... bom, eu comi, comi, e engordei uns seis quilos a bordo..."

Zamperini não fala por falar. Como se percebe ao longo de todo o livro, a sua vida não foi feita de meias medidas. Até ele ficou impressionado. Tão impressionado que, após o jantar da noite de 17 de Julho, anotou o que ingerira: "1 litro de sumo de ananás, 2 taças de caldo de carne, 2 saladas de sardinha, 5 pães, 2 copos grandes de leite, 4 minipepinos de conserva, 2 pratos de frango, 2 doses de batata-doce, 4 pedaços de manteiga, 3 doses de gelado com wafers, 3 fatias de bolo "manjar de anjo" com cobertura glacê, 700 gramas de cerejas, 1 maçã, 1 laranja, 1 copo de água com gelo. Foi a maior refeição que comi em toda a minha vida."

Apesar deste e de outros exageros, o jovem Zamperini lá se apurou para a final dos 5000m dos Jogos de Berlim, no cenário majestoso e marcial do Estádio Olímpico de Berlim. Na corrida decisiva, ficou para trás (os americanos não eram favoritos), mas, na última volta, lembrou-se das palavras do irmão e acelerou para recuperar posições. Terminou em oitavo, mas os últimos 400m foram cronometrados em 56s, qualquer coisa de inédito (e espantoso) numa corrida de meio-fundo. "Chamaram-lhe Miracle Lap [volta milagre] e ainda hoje se fala disso..."

Um dos impressionados pela velocidade do jovem prodígio americano foi o próprio Adolf Hitler, que o mandou conduzir ao seu camarote para o cumprimentar. Trocaram um breve aperto de mão. "Nem penso muito nisso, não significou grande coisa. Bom, ele parecia mesmo um comediante de Hollywood. Na altura não podíamos imaginar que ele ia tentar conquistar toda a Europa e que tinha sonhos de dominar o mundo...", recorda Louie. Sim, se lhe pedirem recordações de Berlim, o que ele vai buscar são as pequenas partidas que pregou. Roubou o dístico "Do Not Disturb" da porta do quarto do mítico Jesse Owens, "confiscou" à laia de recordação uma bandeira nazi pendurada na porta da Chancelaria do Reich.

Rir no campo de concentração

"Sempre achei que o bom humor é tudo. Toda a minha achei. Tentei sempre manter o espírito, o sentido de humor, até quando estava no hospital, no campo de concentração. Acho que estar bem-disposto e ter uma boa atitude é o segredo para uma boa saúde e longevidade. O humor faz bem ao nosso sistema imunitário. A Bíblia diz que devemos ter sempre uma atitude positiva, alegre. E sempre fiz isso." Zamperini tornara-se num atleta famoso, mas continuava, no fundo, a ser o miúdo que, um dia, em Torrance, atou uma corda ao sino da igreja e o estendeu até uma árvore próxima. Muitos viram no toque a rebate dessa noite, aparentemente sem intervenção humana, um sinal divino.

Depois da aventura dos 5000m, virou-se de novo para a milha. Em 1940, Louie Zamperini tinha tudo para se sagrar campeão olímpico e recordista mundial. Mas o mundo tinha outros planos. A II Guerra Mundial eclodiu e o jovem atleta alistou-se. Por ter medo de voar, Zamperini queria evitar a Força Aérea, mas as contas saíram-lhe furadas e quando deu por si o jovem segundo-tenente estava a bordo de um bombardeiro B-24 Liberator, com as funções de apontador de bombas. Cenário de guerra: Pacífico.

Desses tempos, dos quais manteve um diário, Louie recorda, acima de tudo, "a camaradagem": "Tornamo-nos muito próximos dos nossos camaradas de armas. No outro dia, vi um tipo que tinha sido ferido no Afeganistão e, quando lhe perguntaram se ia retirar-se, ele disse que ia voltar para o Afeganistão, porque era lá que tinham ficado os seus amigos. Também tive camaradas no atletismo, etc... mas a guerra é diferente. Mais profunda."

As estatísticas não eram boa companhia para os tripulantes do B-24, também chamados "Caixão Voador", tal a sua propensão para se despenharem. Para lá dos incidentes de guerra, os B-24 caíam por tudo e por nada, revelavam-se caprichosos de manobrar, estavam sujeitos a problemas técnicos constantes e - coisa inimaginável num quadrimotor - não se aguentavam no ar quando perdiam um dos propulsores. Ou seja, a comissão normal de um tripulante (40 missões de combate) era praticamente uma meta inalcançável. Louie também não chegou lá.

O Super Man (todas as tripulações baptizavam os seus aparelhos) ainda foi estrela numa missão de bombardeamento no atol de Wake, um dos primeiros "castigos" aéreos infligidos pelos americanos às forças japonesas. Espantosamente, todos os B-24 regressaram à base, em Midway, e a imprensa americana destacou a colaboração de Zamperini, uma figura pública, na batalha. Algum tempo depois, o avião de Louie, pilotado pelo seu amigo Phil (Russell Allen Phillips), dava nas vistas: após uma missão sobre Nauru, regressou à base completamente destroçado pelo fogo inimigo. Quase todos os tripulantes (eram dez, ao todo) tinham ferimentos, um deles acabou por sucumbir. O Super Man exibia 594 orifícios de bala. Mas regressou a casa.

Seguiu-se-lhe o Green Hornet, um semidestroço em que foram forçados a levantar voo para uma missão de busca de um aparelho desaparecido sobre o Pacífico, a 27 de Maio de 1943. Seria a sua última missão.

Recorde de sobrevivência

Perto do atol de Palmira, repetiu-se a sina dos malfadados B-24: avaria num dos motores e o avião despenhou-se. No livro, Louie recorda o seu último pensamento antes de o aparelho atingir a água com violência: "Ninguém vai conseguir sobreviver a isto." Estava enganado. O piloto, Phil, e o artilheiro da cauda, Mac (Francis McNamara), estavam à superfície quando ele emergiu. Como se safou, não sabe. Recorda-se de perder os sentidos, preso dentro da fuselagem que se afundava por um emaranhado de cabos, e acordar instantes depois, já liberto.

Os três homens instalaram-se como puderam em duas balsas salva-vidas e prepararam-se para aguardar o salvamento. Não era plausível que viessem a ser detectados (só uma pequena percentagem das missões de busca era coroada de êxito). Mas Phil (ferido na cabeça) e Louie mantiveram sempre um espírito positivo e uma atitude proactiva - e sobreviveram. Mac morreu.

A odisseia dos tripulantes do Green Hornet bateu recordes. Durante semanas, os três homens resistiram ao sol, ao mar e ao desespero, beberam água da chuva, comeram aves e peixes que apanhavam, enxotaram tubarões - e comeram o fígado de um ou outro mais pequeno que conseguiam sacar da água numa manobra de equipa bem coordenada -, bombearam ar para as balsas. "Nunca pensei que tinha chegado o fim. Nunca. Frequentei muitos cursos de sobrevivência, mantive a frieza, nunca pensei em morrer - estava demasiado ocupado a manter-me vivo para pensar nisso!", recorda Louie.

Até ao dia em que um avião japonês os detectou. "OK, quando o avião mergulhou sobre a jangada e nos metralhou, bom, não havia maneira de falhar e aí pensámos, "Estamos mortos"." Esse foi o terceiro ataque consecutivo. Nos primeiros dois, Louie mergulhou para baixo da balsa, por entre os tubarões. Depois, já não tinha forças e conformou-se. "É difícil de acreditar que as balas acertaram em todo o lado menos no pequeno espaço onde nós estávamos. Havia 48 buracos de bala, foi um milagre..."

Incrivelmente, uma das balsas resistiu. Com remendos e muitas manobras radicais, conseguiram mantê-la a flutuar. E foi já depois disso que Mac morreu, ao 33.º dia de sofrimento. Quando não chovia durante vários dias seguidos, passavam sede. Um enorme tubarão branco quase os atirou ao mar, enfrentaram as ondas gigantescas de um tufão, as calmarias equatoriais que transformavam água e céu numa única superfície cristalina. Mesmo entre a vida e a morte, Phil e Louie recordam a beleza irreal desse dia.

Os dois continuavam a exercitar a mente, tentando não cair nas teias da loucura. Louie criava diariamente ementas imaginárias para três refeições, os dois começaram a perceber como a fome lhes aguçava a capacidade de raciocínio e a memória. E então, ao 46.º dia, viram uma ilha - ainda não o sabiam, mas estavam num atol das Ilhas Marshall, a mais de 1700 milhas marítimas do local do despenhamento do Green Hornet. Na manhã seguinte foram resgatados. Por militares japoneses.

O "inferno" de Kwajalein

Depois de serem bem tratados inicialmente, acabaram transferidos para outra ilha. Quando a pergunta é colocada ao telefone, Louie Zamperini hesita apenas por breves instantes. "O momento mais difícil da minha vida? Bom, o pior, o mais duro, foi passar 43 dias em Kwajalein [também conhecida como Ilha da Execução]. Na altura estava a pesar pouco mais de 30kg [para 1,77m de altura], dormia no chão da cela, com a cabeça no buraco da fossa..." A diarreia, que nunca mais deixou de o apoquentar, acabava quase por ser uma benesse, porque os únicos momentos em que era autorizado a tirar a cabeça da entrada do buraco era quando se agachava sobre ele para descarregar os intestinos...

"Usaram-me como cobaia de experiências médicas, a terceira vez quase me matou, os interrogatórios eram brutais (tinham a mesa cheia de bolos e guloseimas e diziam que se respondêssemos às perguntas nos dariam de comer e beber). Nos estávamos muito vulneráveis, mas nem pensar em dar-lhes informações úteis! Na cela, alimentavam-nos com uma mão cheia de arroz cozido, mas era como se o atirassem aos porcos, tínhamos de catar do chão, grão a grão, no meio da imundície. Às vezes levava horas. E davam-nos de beber, três vezes ao dia, uma água tão má que era melhor quando estávamos na jangada - assim tínhamos diarreia e perdíamos todos os líquidos, desidratados."

Ao longo da conversa telefónica, esta é a única altura em que Louie perde a noção do tempo enquanto fala. Há qualquer coisa de maldito que ainda o consome por dentro. Continua a desabafar: "E um dia veio um submarino e a tripulação, uns 80, nunca tinham visto prisioneiros de guerra, vieram todos, cuspiram-nos, atiraram pedras... Uma semana depois, repetiu-se com outra tripulação. Já consegue imaginar o inferno. A seguir falou-se em ser executado. E então veio um oficial e disse que um atleta famoso como eu podia ser usado para propaganda e sugeriu que eu fosse levado para o Japão."

Zamperini já superara a prova da sobrevivência física ao longo de 47 dias no Pacífico. Ia agora enfrentar um teste ainda mais duro: o achincalhamento psicológico. E, como diz no livro, um homem sem dignidade é um homem morto.

Ofuna, um campo secreto de interrogatório de prisioneiros de guerra, foi o destino seguinte. Phil também lá estava, mas os dois homens quase não podiam comunicar, esmagados pelas regras impensáveis impostas pelos guardas. A mais pequena violação era punida com espancamentos. Passava-se fome e frio, as doenças matavam com regularidade. E mesmo assim nunca esmoreceu o sentimento de resistência - desde roubar alimentos a soltar gases durante a saudação obrigatória ao Imperador Hirohito, os prisioneiros nunca se conformaram.

Em Setembro de 1944, Zamperini foi novamente transferido, desta vez para Omori, um campo perto de Tóquio. E foi aí que conheceu Mutsuhiro Watanabe, um psicopata, possivelmente esquizofrénico, que tanto mimava os prisioneiros como os violentava, física e emocionalmente, de forma sádica. Assim que percebeu que Zamperini era um herói no seu país, Watanabe, depois conhecido como The Bird [O Pássaro], assumiu como missão pessoal transformar num inferno a vida do seu "prisioneiro número um".

Uma nova vida

Até ser libertado, no final da guerra, nunca mais Louie se viu livre do seu algoz. Uma passagem do livro permite ter uma ideia do que era viver num campo sob o jugo do Pássaro: "Watanabe batia nos prisioneiros de guerra todos os dias: fracturou traqueias, rompeu tímpanos, partiu dentes, arrancou metade da orelha de um homem, deixou outros inconscientes. (...) Ordenou a um homem que lhe lembrasse todas as noites, durante três semanas, que tinha de esmurrá-lo na cara. Praticou judo num paciente que fora sujeito a uma apendicectomia. Quando se via imerso no êxtase da agressão, gritava e gemia, babava-se e espumava, por vezes soluçando e com as lágrimas escorrendo-lhe pela cara."

Louie era o seu alvo favorito. Agressão após agressão, humilhação em cima de humilhação. Quando o Pássaro lhe exigia que o olhasse nos olhos, só descobria um ódio profundo, em vez de submissão. E redobrava a tortura. Um dia, agrediu Zamperini com o cinto, batendo-lhe violentamente com a fivela numa das têmporas. Quando Louie caiu, aproximou-se e deu-lhe um bocado de papel higiénico para estancar o sangue. E a seguir, mal o americano se levantou, voltou a golpeá-lo na mesma zona.

Mais do que qualquer outro episódio, este marcou a vida de Louie. Depois da guerra, o veterano Zamperini continuou a reviver, em pesadelos, noite após noite, aquele momento. Vivia afogado pelo ódio, bebia cada vez mais, arquitectava planos para regressar ao Japão e matar Watanabe. Casara-se e tinha uma filha, mas a família começou a desagregar-se. A guerra acabara cá fora, mas não na sua cabeça.

E então veio a segunda revelação. Um dia, arrastado pela mulher, Cynthia (que conhecera em Março de 1946), Louie foi assistir a um sermão do pregador evangelista Billy Graham. De repente, nesse dia de Outubro de 1949, tudo fez sentido. "Acredito que Deus tinha um plano para a minha vida. Olhando para tudo o que me aconteceu... Acho que só percebi quando ouvi Billy Graham, foi então que percebi que tinha sobrevivido por alguma razão. Percebi que Deus queria que eu fizesse alguma coisa e comecei a fazê-lo."

De um momento para o outro, Louie percebeu que estava em paz. "Dei-me conta de que tinha perdoado a todos os meus antigos guardas, ao Pássaro, toda a gente. Era toda uma nova vida e tenho-a seguido desde então. A guerra quase me destruiu, tinha pesadelos todas as noites... depois de ter chegado a Cristo, nunca mais tive pesadelos", conta. Reencontrou os guardas (excepto Watanabe, que recusou vê-lo) quando foi convidado para transportar a tocha olímpica dos Jogos Olímpicos de Inverno em Nagano (1998). "Foi um momento muito emotivo. As pessoas, o cenário, tudo tão belo e gracioso, foi o dia mais feliz da minha vida..."

Sempre um final feliz

Esta, recorde-se, é uma história americana. Não faria sentido sem a redenção final. Mas Zamperini está para lá de qualquer lugar-comum. Desde 1949, toda a sua vida foi devotada à causa da Igreja. Fundou e dirigiu um campo para jovens problemáticos nos anos 1970. "Ainda hoje me sinto recompensado quando algum deles me diz que as coisas que lhe ensinei evitaram que acabassem na cadeia e que agora são homens de negócios e bons pais de família!"

Nada lamenta, de nada se arrepende. Acha que a sua força veio da infância, de ter crescido durante os anos da Grande Depressão, quando a vida era difícil. "Não tínhamos comida - apanhávamos cogumelos, caçávamos coelhos... tudo isso nos elevou os níveis de tolerância ao sofrimento. E sofríamos castigos físicos. Dava por mim a pensar, às vezes, quando era espancado nos campos de prisioneiros, que tinha apanhado pior na América!" E ri-se. Ri-se sempre.

Hoje, com um neto de 25 anos que saiu da universidade e procura emprego (e que, tal como ele, adora escalar montanhas), Louie Zamperini mantém a capacidade para soltar uma gargalhada a meio de uma conversa séria. Está aí o livro que conta "a história verdadeira" da sua vida. Vem aí o filme. Não se pense que estas coisas não o afectam: ele só conseguiu ler um capítulo do livro por dia, porque se emocionava. Nas palestras, prefere não ver o vídeo que antecede a sua intervenção, pelos mesmos motivos.

E o filme? "Bom, estou com 94 anos, acho que ainda andarei por cá, ainda sou bastante saudável. Mas não estou muito entusiasmado com o filme, estou mais interessado no livro, porque acho que um livro vai mais directo às mentes e aos corações. Já o filme... bom, eles vão fazer um bom trabalho, têm boa gente, portanto acho que vai ser bom. Vou tentar ver o filme. Vou tentar, até porque estou interessado em perceber quanto será verdade e quanto é que eles "adaptaram"..." E solta mais uma gargalhada. Com ele, tinha mesmo de ser um final feliz.

lfrancisco@publico.pt

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