Terra damnata

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Comecei a ler o romance de Cormac McCarthy Meridiano de Sangue (1985) na língua em que foi escrito. Nunca mais afirmarei que domino o inglês quase tão bem como o português: tenho que recorrer ao dicionário para saber o significado de um terço das palavras. Custa muito, ando muito devagar pelos parágrafos abaixo, mas creio que percebo melhor assim a textura espessa da linguagem de McCarthy, a sua capacidade evocativa, o seu ritmo lento, laborioso, impecável, implacável. Até a metáfora, essa figura de estilo como que tendencialmente vulgar, aparece na escrita com a pertinência de um bisturi: este livro vê-se, cheira-se, treme-se, chora-se, porque tanto as palavras como aquilo que referem são causa de dor.

Recordei o medo que senti com o filme dos irmãos Coen Este País não É para Velhos, baseado numa história de McCarthy. E não consegui passar da primeira parte de Meridiano de Sangue, não sei se por falta de tempo ou de coragem. Ando há dias a reler, sufocado, as páginas que contam a marcha de uma companhia irregular norte-americana através da desolação de planícies e montanhas escalavradas pela guerra. Ocorreram-me outras histórias que li há muitos anos, histórias de exércitos de desgraçados a caminhar para a perdição, chacinados pelo clima e o inimigo. Escrevi aqui, uma vez, acerca do modo como Raul Brandão evocou o avanço sobre Lisboa das tropas de Junot no terrível Inverno de 1807 e agora McCarthy fez-me lembrar as memórias de um soldado francês ew de um soldado italiano que contam a sua experiência pessoal do desastre que por duas vezes acometeu os europeus quando tentaram invadir a Rússia: a Grande Armée napoleónica, feita de quase um milhão de homens de muitas nações, a bater em retirada através do gelo em 1812, e os exércitos alemão, italiano, romeno, estraçalhados pelos soviéticos em 1942/43. Um soldado arranca um pedaço da carne de um cavalo que marcha a seu lado, curvado e doente debaixo da neve. O cavalo está tão gelado que nem dá pela faca que o cortou. Li isto nas memórias do italiano Egisto Corradi e nunca mais me esqueci (A Retirada da Rússia, Portugália Editora, 1965). Imagens de um rio de gelo, cadáveres a desabar pelos penedos, a neve tinta de sangue. Ficou-me isto, apenas isto, das memórias de Eugène Labaume (A Campanha de Napoleão na Rússia: do Avanço à Derrocada, Sociedade Nacional de Tipografia, 1942).

Terras sem alma, homens malditos, animais que sofrem sem perceber, o silêncio pesado da marcha, a vegetação rala e os charcos de gelo, cadáveres à flor da terra, o mastigar lodoso e sangrento da escrita, os seus uivos de morte.

É melhor não ler. É melhor não ver. O Samuel, que me deu o livro de McCarthy e me avisou acerca dele, tem sobre mim a vantagem de acreditar que alguns homens são melhores do que outros e que isso transparece até na guerra, talvez sobretudo na guerra. Eu penso nos animais e nas crianças e sinto pena do espanto silencioso do horizonte na terra maldita. Vou pousar o livro e deixar a morte sossegar.

Historiador

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