O músico das contradições

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O compositor e os seus alunos. À esquerda, uma caricatura de época mostra a "lisztmania" que levava o público feminino ao rubro fotografias Bettmann/CORBIS

Pianista virtuoso e compositor visionário, amante requisitado e místico fervoroso, Liszt foi uma das figuras mais contraditórias do Romantismo. Inventou os princípios do recital e da masterclass, criou o poema sinfónico e foi um hábil gestor da sua imagem. Nascido há 200 anos, continua a inspirar paixões e reservas

Franz Liszt (1811-1886) é uma das figuras mais fascinantes do Romantismo musical e de toda a história da música, cuja personalidade multifacetada nem sempre foi compreendida na globalidade. O mito do pianista virtuoso, de técnica quase sobrenatural, e o inventor de exuberantes fórmulas composicionais que serviam de veículo à exibição do intérprete e ao deleite de um público ávido de malabarismos colocam na sombra o carácter visionário de uma grande parte da sua música e a sua dimensão de profeta da modernidade. A sua trajectória é surpreendente: de pianista inigualável, passou a compositor defensor da "música do futuro" e depois a músico religioso, chegando a receber as ordens menores e a converter-se no abade Liszt após uma vida repleta de amores escaldantes, muitas vezes ilícitos segundo a moral vigente.

Como recordou o pianista Leslie Howard em entrevista ao Ípsilon por ocasião da sua passagem pelo Festival de Sintra em Julho, "para muitas pessoas a imagem de Liszt assenta na vertente pianística e, não necessariamente, da melhor maneira". Para este intérprete australiano, o único a gravar a integral da obra pianística do compositor húngaro, "uma das piores coisas que se pode fazer é usar Liszt como veículo de show-off", pois essa atitude "faz parecer a sua música terrível, vulgar e sem préstimo". "Em vez disso, a obra de Liszt deve ser abordada com a mesma seriedade da de Beethoven, o que a torna muito mais interessante."

Na opinião de Howard, a música de Liszt não alcançou de imediato um lugar no repertório, pois havia uma certa desconfiança, se não mesmo inveja, perante o seu sucesso. "Custava-lhes admitir que Liszt ganhasse tanto dinheiro nas suas digressões e que fosse tão famoso, convidado por reis, rainhas e príncipes de toda a Europa. No entanto, ele investiu muito ao ajudar outros músicos, nunca teve casa própria, nem mesmo um cavalo, o que no século XIX significava o mesmo que ter um carro hoje", refere o pianista. "Só estava interessado em adquirir partituras e livros. Tinha uma biblioteca pessoal imponente, que subsiste em Budapeste e Weimar. Era uma pessoa com grande nobreza de carácter e pagou para que a música de outros compositores fosse publicada."

A ouvir Paganini

Mas se hoje Liszt é também admirado por obras de grande envergadura e originalidade como a Sonata em Si menor, o imaginário colectivo encontra em peças como os Estudos de execução transcendental, as paráfrases de trechos de ópera ou as Rapsódias Húngaras o reflexo do intérprete fora de série que se tornou num fenómeno de culto. Quando Henrich Heine usou o termo "lisztmania" para descrever o público feminino em delírio que gritava, atirava flores para o palco e até desmaiava quando assistia às suas actuações, conforme se vê nas caricaturas da época, não poderia adivinhar que um fenómeno semelhante viria a ocorrer num género musical bem distinto no século XX: a "beatlemania" dos anos 60.

Nascido em Raiding, na Hungria, Liszt demonstrou desde cedo um grande talento para a música, de tal forma que os seus pais resolveram mudar-se para Viena de modo a que este pudesse estudar com professores qualificados. Depois de um ano de lições com Carl Czerny, o pequeno Franz fez uma apresentação de sucesso na Kleines Redoutensaal e com apenas 12 anos estreava-se em Paris. Na capital francesa estudou teoria e composição com Ferdinando Paer e Reicha, mas não voltou a ter professores de piano de vulto. Tocava composições suas, como as variações sobre temas de óperas de Rossini e Spontini ou o Allegro di bravura e ia ganhando fama, mas a viragem decisiva para a superação dos limites técnicos do piano deu-se depois de ouvir Paganini. Numa carta de 1832 escreveu: "Que homem, que violino, que artista!" De acordo com o seu próprio testemunho, Liszt impôs a si próprio um regime de várias horas diárias de estudo de "trilos, sextas, oitavas, trémulos, notas repetidas, cadências" e outras dificuldades técnicas com o objectivo de conseguir no seu instrumento os efeitos quase sobrenaturais alcançados por Paganini no violino.

A linguagem pianística de Liszt acompanha o enorme desenvolvimento que o piano teve no século XIX ao nível da construção e é indissociável desses avanços. Em Paris tornou-se colaborador do construtor Pierre Érard e chegou a fazer demonstrações dos seus instrumentos em Inglaterra. Durante a década de 1830 era um dos mais aclamados intérpretes de Paris e a concorrência não o assustava. Quando Sigismond Thalberg lhe tentou tirar o protagonismo, reagiu com energia, ficando célebre o concurso disputado nos salões da princesa Belgiojoso.

Entre 1838 e 1846 Liszt conquistou toda a Europa: de Constantinopla à Escócia, de Espanha e Portugal à Suécia e à Rússia, dando mais de mil concertos. Durante parte da sua carreira, os programas incluíam vários solistas e em geral uma orquestra que podia acompanhar os cantores ou os concertos instrumentais. A ideia do recital no sentido moderno, com o intérprete sozinho em palco, foi uma criação de Liszt, que contribuiu também para a transformação dos programas. Começou a fazer transcrições e arranjos de obras de Schubert, Beethoven, Wagner, Berlioz e, além das suas composições, começou a tocar obras de Bach, Handel, Scarlatti, Beethoven, Weber e outros. Converteu-se assim num novo perfil de solista, cujo modelo permaneceu no século XX.

Liszt estabeleceu ligações com artistas e literatos como Victor Hugo, Balzac, Alfred de Musset, George Sand e Eugène Delacroix e tinha uma profunda consciência da gestão da imagem e da carreira no sentido moderno que se traduz, por exemplo, no recurso à litografia e à fotografia, que dava os seus primeiros passos, para se fazer representar. Tal como acontece hoje com muitas estrelas da pop, os seus amores foram lendários e por vezes causaram escândalo, destacando-se a ligação com a condessa Maria d"Agoult, que em 1835 deixou a sua família para se tornar amante do compositor e mãe dos seus três filhos, entre os quais Cosima, que viria a casar-se com o maestro Hans von Bülow e depois com Richard Wagner. A sua reputação de destruidor de corações era tão forte como a de músico. Quando foi questionada sobre os três grandes pianistas que tinham tocado nos seus salões, a condessa Pauline Plater respondeu que "Hiller faria o melhor amigo, Chopin o melhor marido e Liszt o melhor amante".

Eram ingredientes mais que suficientes para transformar Liszt num herói romântico, que também viria a ser objecto de elaborações literárias como a que a própria condessa d"Agoult (sob o pseudónimo de Daniel Stern) faz no seu romance Nélida. A literatura e as obras de arte, bem como cenas da natureza, inspiram muitas das suas composições pianísticas (Apparitions, Harmonies Poétiques et Réligieuses, Consolações, a colecção dos Anos de Peregrinação escrita a partir das viagens à Suíça e a Itália, entre muitas outras) e estiveram também na origem da criação de um novo género de música orquestral (o poema sinfónico), depois de Liszt se ter retirado dos palcos como pianista. Algumas das suas composições mais impressionantes prescindem, porém, de programas literários ou títulos evocativos, como é o caso da Sonata em Si menor, uma obra de rara unidade estrutural e grande poder dramático.

O portador do belo

Em 1847, Liszt deixa a carreira de solista, acabando por se instalar em Weimar a tempo inteiro como Kapellmeister do grão-duque Carlos-Alexandre. Dedica-se a compor, à direcção de orquestra, ao ensino e a apoiar músicos que admira, como é o caso de Berlioz e Wagner. Vai somando alunos a quem orienta muitas vezes gratuitamente e ensaia o princípio das masterclasses em detrimento das lições individuais. É também na última fase da sua carreira que o sentimento religioso se torna cada vez mais presente. Entre 1861 e 1869, em Roma, sonha em reformar a música da Igreja católica, torna-se amigo do papa Pio IX e em 1865 recebe as quatro ordens menores do sacerdócio. As Missas, Oratórias, as Lendas Franciscanas para piano ou a original Via Crucis são um reflexo desta inflexão. No final da vida, Liszt compõe também peças de grande ousadia que anunciam a linguagem do século XX e a superação da tonalidade. Nuages Gris ou a Bagatelle sans tonaliè são exemplos de um espírito inquieto que escapa a classificações simplistas. Figura contraditória, Liszt considerava a arte "um Paraíso na Terra, ao qual nunca apelamos em vão, quando somos confrontados com as opressões deste mundo" e o artista "o Portador do Belo", cuja "consciência inviolável" lhe assegurava a autoridade.

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