Lá vem o Barão

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Edgar Pêra: "O Barão" é o seu filme mais aberto. E é apenas a sua quarta longa de ficção "tradicional", a seguir a "A Janela (Maryalva Mix)" (2001), ao telefilme "Oito Oito" (2002) e a "Rio Turvo" (2007) RUI GAUDÊNCIO

O novo filme de Edgar Pêra adapta Branquinho da Fonseca em tom de falso filme de terror expressionista. História de um "filme extraordinário" assinado por um cineasta que não consegue deixar de brincar com a forma mesmo quando conta uma história. Jorge Mourinha

"Há uma frase do Slavoj Zizek em que ele diz que, com o "Eles Vivem!" do John Carpenter, aprendemos a ver a ditadura na democracia, com aqueles óculos escuros. "O Barão" é um bocado ver até onde é que vão esses limites. Só que sem óculos. É um filme 2D."

Esclarecidos? Não? Nós ajudamos. "O Barão" é um filme 2D de Edgar Pêra; é a ""remake" de um clássico proibido pela ditadura fascista" rodado entre nós pela produtora Valerie Lewton; é uma adaptação da novela de Branquinho da Fonseca, a preto e branco expressionista, sobre um inspector das escolas (Marcos Barbosa) que viaja até um ermo recôndito que vive sob o jugo do Barão (Nuno Melo).

Uma destas afirmações não é verídica. (E não ganham mais por adivinhar a alegoria salazarista por trás da trama.)

Se continuam confusos, é normal que assim seja; é mesmo obrigatório com Edgar Pêra, cineasta "desalinhado". "O Barão", apesar de tudo, é o seu filme mais aberto. E é apenas a sua quarta longa de ficção "tradicional", a seguir a "A Janela (Maryalva Mix)" (2001), ao telefilme "Oito Oito" (2002) e a "Rio Turvo" (2007), já baseado em Branquinho de Fonseca (e até hoje inédito em sala por vicissitudes várias). E é a sua terceira estreia em sala, depois de "A Janela" e do documentário sobre Carlos Paredes "Movimentos Perpétuos" (2006).

Culpa, em parte, de um sistema de produção demasiado formatado para a criatividade endiabrada de um cineasta em "movimento perpétuo", que filma desde a década de 1980 quase inteiramente fora dos circuitos tradicionais de produção e em todo o tipo de suportes, formatos e durações. Perfeccionista obsessivo, está sempre a filmar e um filme seu nunca está acabado (entre a sua passagem no IndieLisboa em Maio último e a estreia em salas esta semana, continuou a trabalhar a montagem de "O Barão" ao ponto de lhe retirar sete minutos).

"É muito difícil construires um percurso clássico quando te empurram sistematicamente para a improvisação," diz ao Ipsilon. "As pessoas usam muito a palavra "experimental" para os meus filmes, quando o que faço é sobretudo investigação. Mas havendo armas para ir para a guerra, acho que se deve tentar... Aqui, tive-as. No fundo, estava à espera desta oportunidade há muito tempo para transmitir uma série de coisas que sempre achei que precisavam de bastante maturidade, de uma certa sabedoria para serem ditas."

Desalinhados

Branquinho da Fonseca (1905-1974), um dos fundadores da revista "Presença" e criador das Bibliotecas Itinerantes, tornou-se no "veículo" perfeito para essa maturidade. "Tal como eu, ele era alguém totalmente desalinhado", segundo Pêra. "Identifico-me com a ideia dele de fazer coisas, de não ficar quieto - ao criar as Bibliotecas Itinerantes ele fez muito por este país, e as pessoas não se dão conta da importância que tem partilhar esse conhecimento numa altura de grande obscurantismo. Conheço a obra dele desde meados dos anos 1990, quando estava a rodar "A Janela" com o [director de fotografia] Luís Branquinho [neto do escritor], mas nunca tinha pensado em adaptá-lo antes do "Rio Turvo". Quando fiz esse filme, entrei pela obra dele, falei com especialistas, fiz todo um trabalho de campo. E depois tornou-se difícil resistir a fazer "O Barão"."

"O Barão" teria sido inicialmente filmado em 1944 por uma realizadora americana, Valerie Lewton, mas essa primeira adaptação teria sido destruída pela censura devido à "proximidade" entre o Barão e Salazar. Assim reza um cartão no início do filme, suportado por uma curta-metragem paralela, "Um Filme Extraordinário", que recolheria imagens descobertas no arquivo da PIDE dessa rodagem inicial.

Mentira galhofa: são tudo falsas pistas que revelam que, mesmo dentro de uma narrativa mais "convencional", nem assim Pêra deixa de subverter as convenções. Valerie Lewton nunca existiu, é uma homenagem ao lendário produtor da RKO Val Lewton, responsável por obras clássicas como "A Pantera" de Jacques Tourneur - ao qual o preto e branco trabalhado de Luís Branquinho presta homenagem, estilística e não só. Ao longo de uma ilustre carreira internacional que já viu o filme passar pelos festivais de Roterdão e (na semana passada) Busan, na Coreia do Sul, bem como pelo IndieLisboa e pelo MOTELx, muito se tem falado também dos filmes de terror da Universal dos anos 1930, de autores como Tod Browning ou James Whale. "Mas não são essas as referências, mal conheço a obra do James Whale. Quando entrei para a escola de cinema, nos anos 1980, os meus heróis eram Fritz Lang e Jacques Tourneur - e um pouco também, mas menos, Howard Hawks", diz Pêra. "Queria fazer filmes mais nesse género, mas tive de dar uma grande volta para lá chegar..."

Rodado em apenas 25 dias inteiramente em estúdio, o filme representou também para Pêra uma tentativa de rodar como esses cineastas o faziam. "Tenho vinte e poucos dias para fazer um filme, o que é que posso fazer com estes cenários e esta história que me veio parar às mãos? A pessoa tenta adequar-se e inventar uma forma de resolver certas equações. Comecei por pensar fazer o filme todo em super-8, com cores saturadas, entre as produções da Hammer dos anos 1960 e os filmes do Paul Morrissey. Mas não foi possível e acabei por ir dar ao super-16."

No meio de tudo isto, uma coisa é certa: "O Barão" é o abrir de um novo ciclo para Pêra. "Para mim, "A Janela" foi um resumo daquilo que fiz no século XX, e "O Barão" é uma síntese daquilo que aprendi no século XXI. O que é paradoxal, porque "A Janela" era um filme mais modernista, mais futurista, e este é um filme de um certo expressionismo abstracto, mais próximo do cinema clássico. Mas, a partir do meu documentário sobre António Pedro ["O Homem-Teatro", 2001], tenho-me aproximado cada vez mais das emoções. E o Branquinho da Fonseca é também uma plataforma para essas emoções desbragadas..."

Ver crítica de filme págs. 44 e segs.

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