Khadafi deixou 1300 milhões de euros na Caixa Geral de Depósitos

Dinheiro representa 2% dos depósitos do banco. Primeira conta foi aberta em 2008, na sequência de um humilhante caso de polícia com o filho do antigo ditador

A Caixa Geral de Depósitos tem neste momento 1300 milhões de euros de fundos estatais da Líbia depositados em quatro contas que foram congeladas em Março ao abrigo das sanções internacionais contra o regime de Khadafi, confirmou o PÚBLICO junto de várias fontes da banca, do Governo e da diplomacia ao longo dos últimos sete meses.

Contactada, a Caixa não quis comentar. O primeiro depósito chegou a Portugal em 2008, depois de Khadafi, de forma intempestiva, ter levantado todo o dinheiro dos fundos públicos líbios que estava depositado em bancos suíços. O gesto do antigo ditador foi uma represália contra a prisão, no Verão desse ano, do seu filho mais novo, Hannibal Khadafi, e da mulher, na altura grávida de nove meses.

O casal mudara-se para a Suíça, para o nascimento do bebé, e instalara-se no luxuoso Hotel President Wilson de Genebra quando a polícia os prendeu. Acusação: espancamento dos dois empregados domésticos com quem viajavam.

O filho e a nora de Khadafi passaram dois dias na prisão e foram libertados depois do pagamento de 310 mil euros de caução. Os empregados, segundo a imprensa suíça escreveu na altura, acabaram por retirar a queixa após o pagamento de uma "compensação".

Adensando o folhetim, a "fotografia de prisão" de Hannibal Khadafi circulou no mundo. Humilhado, o ditador exigiu um pedido formal de desculpa a Berna (que veio meses depois e gerou enorme polémica na Suíça) e retirou o dinheiro dos bancos, num total de cerca de 7 mil milhões.

Além disso, proibiu a exportação de petróleo para a Suíça (a Líbia fornecia 20% das necessidades do país), fechou as fronteiras e prendeu dois empresários suíços que trabalhavam na Líbia - um deles foi libertado apenas dois anos depois.

O contacto para Lisboa

Foi neste contexto que o Governo de Khadafi contactou o Governo português, logo em 2008, informando Lisboa que iria fechar as contas na Suíça e distribuir o dinheiro por diferentes países. Portugal fora um dos escolhidos. Nos dois anos seguintes, o regime do antigo ditador líbio transferiu para a Caixa Geral de Depósitos 1200 milhões de euros, depositados em cerca de 10 aplicações a prazo.

Em 2010, porém, "já não havia quase nada", disse uma fonte próxima do processo. "Só havia 200 milhões." No fim desse ano, coincidindo com a terceira cimeira União Europeia-África, em Trípoli - na qual estiveram o então primeiro-ministro José Sócrates, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado, e Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia - deu-se uma nova ronda de negociações entre a Caixa e a Líbia. O banco português fez novas propostas de contratos e o Governo líbio voltou a fazer depósitos em valores semelhantes aos de 2008.

Menos de três meses depois, a Primavera Árabe já tinha chegado à Líbia e, com ela, uma guerra civil. Em tempo recorde, o Conselho de Segurança da ONU e a União Europeia aprovaram resoluções que obrigaram os Estados a três acções imediatas: congelar os bens líbios, não vender armas e não emitir vistos aos familiares e membros do círculo mais próximo do ditador. Foram criadas listas com nomes de pessoas, empresas e entidades públicas. Duas das mais emblemáticas são o Banco Central da Líbia e a Autoridade Líbia para o Investimento, que tem, espalhada pelo mundo, uma enorme massa de dinheiro. Setenta mil milhões de euros é o número mais repetido nos últimos meses, mas o valor estimado hoje, no entanto, é muito superior. "160 mil milhões", disseram ao PÚBLICO duas fontes que acompanham o dossier.

A Autoridade Líbia para o Investimento foi criada em 2005 sobre a riqueza do dinheiro do petróleo e é o 13.º fundo soberano mais rico do mundo, segundo o Sovereign Wealth Fund Institute. No ranking de transparência do instituto, o fundo recebe nota 2 numa escala de 10.

Os 1300 milhões de euros que estão hoje na Caixa Geral de Depósitos representam cerca de 2% dos depósitos do banco (67.680 milhões de euros, de acordo com as contas de 2010). "Isso não faz um banco cair, mas é importante", disseram dois peritos da banca escolhendo, por coincidência, exactamente as mesmas palavras. Fazendo contas primárias e imaginando um juro de 3%, se o Conselho Nacional de Transição líbio viesse hoje levantar este dinheiro, a Caixa teria que pagar, além dos 1300 milhões, cerca de 40 milhões de euros em juros.

Nada indica que as novas autoridades líbias estejam a ponderar levantar o dinheiro agora e, até hoje, confirmou o PÚBLICO, não houve qualquer pedido nesse sentido.

Mas os suíços estão interessados em recuperar os depósitos. A 15 de Fevereiro deste ano - precisamente o dia do primeiro protesto em Bengasi, que, em 10 dias, se transformou numa guerra civil -, Khadafi acordou com a Suíça, após meses de negociações, o nome do homem que iria presidir ao tribunal arbitral criado para reparar as relações diplomáticas: o perito em direito internacional canadiano Philippe Kirsch.

Há meses que o PÚBLICO pergunta ao Governo, actual e anterior, ao Banco de Portugal e a vários bancos quanto dinheiro líbio foi congelado em Portugal. Esses valores foram tornados públicos em dezenas de países, dos EUA à Turquia. Em Abril, o PÚBLICO revelou que tinham sido congelados 14 milhões de euros no BCP, um valor que parecia irrisório no contexto das relações diplomáticas que há anos existem entre Lisboa e Trípoli.

Tal como antes o BCP, em Setembro a CGD respondeu às perguntas do PÚBLICO com um lacónico "a Caixa não faz comentários públicos sobre hipotéticas operações com qualquer eventual cliente".

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