Glissant entre os poetas ele era rei

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Foi em Fort-de-France que Édouard Glissant cresceu e completou o liceu, antes de prosseguir os estudos de Filosofia na Sorbonne em Paris. Em 1965 regressa à Martinica e a partir dos anos 1980, vive entre França e Estados Unidos. Mantém sempre uma ligação forte à sua ilha onde há escolas e estradas com o seu nome

A poesia era para ele uma forma de interpretar o mundo. Se fosse vivo, teria 83 anos. Para os que gostariam de o voltar a ouvir existe um documentário filmado entre Paris e a ilha que o viu nascer em 1928, a Martinica. "Edouard Glissant, Um Mundo em Relação", de Manthia Diawara, passa terça-feira no Instituto Franco-Português em Lisboa. Ana Dias Cordeiro

O filme "Édouard Glissant, Um Mundo em Relação" pode ser visto como a história de um homem só. Ou a do encontro entre dois homens que, ambos, acabam por se ver retratados no filme: aquele que é filmado e partilha com a câmara a sua visão poética de olhar o mundo, Édouard Glissant, e aquele que filma, Manthia Diawara, por se ter tornado quem é depois de descobrir Glissant.

O encontro entre os dois podia ter acontecido há 20 anos, mas aconteceu há cinco, depois de um livro que suscitou um telefonema e depois motivou este filme sobre um nome maior da Filosofia e das Letras em França, desaparecido em Fevereiro.

Rodado entre 2008 e o princípio de 2010, "Edouard Glissant, Um Mundo em Relação" teve estreia mundial em Avignon, no ano passado, e estreia em Portugal, na terça-feira (dia 25), no Instituto Franco-Português em Lisboa no quadro do ciclo organizado pelo Africa.Cont, "O Barulhamento do Mundo".

Atrás da câmara: Manthia Diawara, intelectual do Mali, cidadão do mundo, a viver entre Paris e Nova Iorque, professor de literatura comparada e de cinema, na New York University, onde dirige o Departamento de Estudos Africanos. É especialista em cinema africano e, ele próprio, cineasta.

É autor de vários livros, entre eles, "Paris-Bamako-New-York: Itinerário de um exilado", que motivou o telefonema inesperado de um "grande, grande intelectual entre os grandes intelectuais em França", Glissant.

"Ele tem a sua maneira de ser muito digna. Ele é Edouard Glissant. Mas telefonou-me, sim", conta Diawara ao Ípsilon por telefone de Paris. "Durante 20 anos, conhecia-o de o ouvir em conferências. Ele vinha à universidade e eu via-o entre a audiência. Não ousava aproximar-me dele."

Nesse telefonema, há cinco anos, Glissant disse a Diawara que tinha gostado muito do seu livro por não se notar nele qualquer "cólera". "Foi no momento certo", diz o cineasta referindo-se à possibilidade de rodar o filme antes do desaparecimento do poeta, e ter assim um documento para mostrar aos alunos. Mas não só.

"[O encontro] foi no momento certo também para mim. Tenho 57 anos. O meu pensamento estava fechado numa maneira de ver o mundo. E ele [Glissant] veio salvar-me, numa altura em que ainda tenho pela frente tempo suficiente para viver livremente. E isso é muito importante. O pensamento dele ajudou-me a libertar-me das ideologias que me tinham formado. A escolher as passagens, na montagem do filme, eu estava, de certa forma, também a fazer a minha própria biografia."

À frente da câmara, então, Edouard Glissant, o poeta filósofo, pensador do mundo, colosso das ideias. Professor e autor de uma obra monumental: ensaios, poesia, romances, teatro. Distinções e prémios, como o Renaudot para o seu primeiro romance "La Lézarde" em 1958. Homenagens e colóquios internacionais sobre as suas ideias. E agora este filme.

Uma homenagem? "Eu queria antes de mais desenvolver o pensamento de Édouard Glissant no ecrã, o que não era fácil porque ele é um poeta mas também um filósofo", explica Diawara. A ideia nunca foi fazer "uma radiografia biográfica mas sim mostrar a sua biografia através do seu pensamento".

Com breves passagens musicais de "All Blues" de Miles Davis e de "Petit Pays" de Cesária Évora, e com imagens em fundo do rochedo em forma de diamante na ponta sul da Martinica, Glissant discorre para a câmara sobre temas presentes em obras suas de referência como "Le discours antillais" (1981), "Politique de la Relation" (1990) ou "Traité du Tout-Monde" (1997), e transforma ensaio em poesia.

O realizador coloca questões simples (pediu a Glissant para explicar a sua filosofia como se falasse a uma criança de 12 anos). Mas só as respostas breves, límpidas, poéticas, se vêem, arrumadas em três grandes temas - a creolização, a poética da relação e o "tout-monde". Alguns conceitos de Glissant não têm tradução estabelecida, por vezes, nem mesmo em francês. Surgiram de forma intuitiva e é assim que devem ser entendidos.

Intuição e jazz

Em passagens a bordo do navio Queen Mary, na travessia do Atlântico - o mesmo atravessado pelos seus antepassados, na condição de escravos - Glissant fala da riqueza das diásporas na "passagem da unidade à multiplicidade" que contêm. No fim da escravatura, no regresso, "os africanos perderam tudo". "Não tinham nada, nem mesmo uma canção. No jazz, os negros americanos tiveram de recompor pela lembrança, de uma maneira extraordinariamente sofrida o eco do que havia para eles em África. Não estava num livro. Estava numa fuga de memória, numa espécie de sofrimento da memória que deu o jazz."

Glissant viveu nos EUA, em Nova Orleães (foi professor da Universidade do Louisiana e mais tarde da City University de Nova Iorque) e foi aí que desenvolveu a filosofia presente em "A Poética da Relação". "O jazz era muito importante para ele", diz Diawara. "O jazz, a improvisação, a intuição. Todos os elementos que fazem da poesia uma maneira de pensar eram importantes para ele."

Creolização vs Negritude

É, com Aimé Césaire e Frantz Fanon, um dos três grandes intelectuais da Martinica. E foi (como Fanon) aluno de Césaire - ou discípulo, no sentido em que eram intelectuais formados tendo como referência o pensamento do poeta Césaire, um dos fundadores do movimento da Negritude. O movimento defende uma valorização das origens como forma de combater o racismo colonialista, que Glissant vem mais tarde a contestar quando cria o conceito de creolização. Para ele, é a "relação entre as diferenças que faz a beleza do mundo" e são os "pequenos países" que mais facilmente sobrevivem à complexidade do mundo perante o desmoronar dos impérios.

Voltava frequentemente à Martinica onde foi sepultado. Nos últimos anos de vida, passava aí longas temporadas. "Era a fonte da sua poesia", diz Diawara.

Glissant teria hoje 83 anos. "Entre pessoas de origem africana, africanos ou antilheses, eram sobretudo os poetas e os rappers que gostavam muito dele", nota Diawara. "Entre os poetas, ele era rei."

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