Muammar Khadafi: O fim do coronel
Em 2009, seis dias de extravagantes festividades, que incluíam um "show de mil camelos e 40 balões de ar quente", assinalaram quatro décadas de poder de Muammar Khadafi e a transformação da Líbia de pária em parceiro de europeus e americanos.
Na altura, a analista Molly Tarhuni, do Royal Institute of International Affairs (Chatham House), em Londres, descrevia as cerimónias como “um ponto de viragem", ou “a prova de que Khadafi é um sobrevivente e que muitos o subestimaram”. Ele pode ser um excêntrico, salientava Tarhuni, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone, mas o Ocidente precisa dele. “Porque a Líbia possui reservas confirmadas de petróleo que ascendem a 41,5 mil milhões de barris e de gás natural num total de 1490 biliões de metros cúbicos de gás natural entre as dez maiores do mundo. A sua importância económica, política e de segurança não se alterou em 40 anos.”
Foi, pois, um Ocidente embaraçado que primeiro assistiu e depois protestou contra a sanguinária repressão de milhares de manifestantes que, na sequência das revoluções contra Ben Ali, na Tunísia, e de Hosni Mubarak, no Egipto, se viraram contra o seu tirano. Quando o balanço de mortos já ultrapassava os 200, segundo a organização de direitos humanos Human Rights Watch, o filho favorito do líder, Saif al-Islam (Espada do Islão) Khadafi, foi à televisão prometer concessões, alertar para o risco de uma guerra civil, mas também deixar uma ameaça: o seu pai resistiria “até à última bala”. Observou um comentador citado pela Al-Jazira: “Khadafi mata ou morre”.
Foi a 1 de Setembro de 1969 que Khadafi, um capitão do Exército de 27 anos, tratado pelos amigos como al-jamil (o bonitão), derrubou a monarquia e instituiu uma “jamahiriya” (Estado de massas) um dos seus muitos neologismos. O rei Idris al-Sanussi estava em tratamento na Turquia e não regressou. O príncipe herdeiro, o sobrinho Hassan, foi obrigado a abdicar.
No dia 8, o chefe do novo governo era Sulayman al-Maghribi, um dos oficiais golpistas, mas, no dia 13, Khadafi, formado numa academia militar britânica, já era o "Líder Irmão" e "Guia da Revolução", os únicos títulos que reteve, a par da patente de coronel (recusou ser promovido a general).
A "revolução socialista", sem sangue, foi apresentada por Khadafi como reacção contra a corrupção da dinastia Sanussi e a sua "subserviência aos imperialistas" desde a independência, em 1951. Uma das primeiras decisões que tomou foi ordenar o encerramento das bases do Reino Unido e dos EUA, e a retirada das tropas. Seguiram-se expropriações e nacionalizações de outros interesses estrangeiros.
Como uma nova doutrina a que chamou "Terceira Teoria Internacional", nem capitalismo nem comunismo, Khadafi tentou mobilizar os árabes para o sonho de uma união, sob a liderança do seu ídolo, o egípcio Gamal Abdel Nasser. Os árabes viam nele "um louco" e recusaram segui-lo.
Desiludido, trocou o pan-arabismo pelo pan-islamismo, competindo com os sauditas pela influência muçulmana em África. Tinha muito dinheiro para gastar, e não só em mesquitas.
Também foi banqueiro da Organização de Libertação da Palestina (OLP) e da Frente Polisário; do IRA e de grupos rebeldes da Libéria e Serra Leoa; de Carlos, O Chacal, e de Abu Nidal.
Berlim, Lockerbie, Al-QaedaOs anos 1980 ficaram marcados por dois brutais atentados: em 1986, na discoteca La Belle, em Berlim (três mortos e 200 feridos, alguns soldados americanos); em 1988, na cidade escocesa de Lockerbie (270 mortos na explosão de um avião da Pan Am). Ronald Reagan amaldiçoou o "Mad Dog do Médio Oriente" e ripostou, mandando bombardear Trípoli e Benghazi. Morreram 60 militares e civis, incluindo a filha adoptiva de Khadafi.
No final dos anos 1990, submetido a quase uma década de sanções internacionais e enfrentando uma oposição islamista, o beduíno que corre o mundo na sua tenda mudou de rumo. Em 1998, foi o primeiro a pedir um mandado de captura para Bin Laden. Bill Clinton ignorou a sua proposta de cooperação, mas George W. Bush não lhe virou as costas. A 12 de Setembro de 2001, um dia depois dos ataques da Al-Qaeda, o então chefe dos serviços secretos líbios, Musa Kusa, contactou a CIA e disse-lhes: "Esta é a nossa lista de suspeitos." Em troca, teve autorização para os seus agentes interrogarem presos líbios em Guantánamo.
É claro que antes, em 1998, Khadafi já havia concordado em entregar os dois suspeitos de Lockerbie para serem julgados, e aceitara "responsabilidade" (mas não culpa) pelo ataque. Pagou 2,7 mil milhões de dólares em indemnizações às famílias das vítimas. No ano seguinte, após a suspensão das sanções, os investimentos estrangeiros na Líbia atingiram os 8000 milhões de dólares.
A 20 de Agosto, Khadafi conseguiu a libertação do único condenado, Abdel Basset al-Megrahi, supostamente, membro da sua tribo. Os britânicos invocaram "razões humanitárias" para Megrahi não cumprir 27 anos de uma pena perpétua sofre de cancro e tem "menos de três meses de vida", mas especula-se que foi trocado por lucrativos acordos comerciais com o mais próspero país do Norte de África.
A reabilitaçãoEm 2003, o imprevisível Khadafi tomou a mais inesperada das decisões: anunciou o fim do programa de armas químicas e nucleares. Seguiram-se cimeiras com Tony Blair (e um contrato com a British Petroleum/BP no valor de 90 milhões de dólares); com Nicolas Sarkozy (que assegurou acordos de 10 mil milhões, a maioria no sector da defesa); e com Silvio Berlusconi (que garantiu negócios de 5000 milhões e o controlo da imigração clandestina, após ter pedido perdão pelo período colonial italiano).
A Líbia atrai os europeus porque o custo de transportar o seu petróleo, pelo Mediterrâneo, é inferior ao dos países produtores do Golfo Pérsico. Os líbios, por seu turno, a dar os primeiros passos para uma economia de mercado (reduziram subsídios, privatizaram mais de cem empresas desde 2003 e pediram adesão à Organização Mundial do Comércio/OMC), estão sedentos de capitais para modernizar as suas obsoletas infra-estruturas e fazer face a um elevado desemprego.
Khadafi estava a colher os frutos de ter mudado de campo. "Hoje, a Líbia é membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU [dois anos de mandato iniciado em Janeiro], fez parte do conselho de governadores da Agência Internacional de Energia Atómica, participou na cimeira do G8 como presidente da União Africana, e vai ascender [em Setembro] à presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas", notou Molly Tarhuni na entrevista ao PÚBLICO.
Ter chegado aqui foi mérito do coronel que tomava “todas as decisões, e tinha “a última palavra", acrescentou a analista. A grande questão que Tarhuni colocava não era se ele seria alguma vez derrubado – algo que ela considerava “muito improvável” num país com menos de seis milhões de habitantes, politicamente pouco activos e sob controlo rígido das forças de segurança – mas “o que vai acontecer quando ele sair de cena."
Khadafi não tinha um herdeiro designado, embora dois dos seus oito filhos estivessem, aparentemente, a preparar-se para lhe suceder.
Um era Seif al-Islam (cuja captura ou morte foi noticiada esta quinta-feira mas está ainda por confirmar), director de uma fundação de "caridade" internacional, que ajudou a negociar as indemnizações de Lockerbie e a libertação de cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestiniano, condenados sob a acusação de terem "deliberadamente infectado" doentes de um hospital com o vírus da sida. Outro era Mutassim Billah, morto no mesmo ataque que o pai.
Mutassim tentou derrubar o pai num golpe militar mas escapou ao destino que tem sido reservado aos dissidentes (executados por esquadrões da morte). Foi perdoado, regressou de um esconderijo no Egipto e é agora o principal conselheiro de segurança nacional. Seif, Mutassim e os restantes irmãos estiveram entre os milhares convidados a assistir às festas em honra do filho de camponeses que, em 1969, destronou o rei Idris para, em 2009, se coroar a ele próprio "rei dos reis de África".
Texto substituído às 14h33