"Um festival acordado para o mundo", disse-se na conferência de imprensa em que se apresentou, no princípio de Outubro, a edição 2011 do DocLisboa. Um mundo em crise, feito de mudança, colapso, metamorfose - "não são tempos fáceis e estamos de olhos abertos para eles".
Dito e feito: o que aí vem, ao longo de dez dias de festival que vão obrigar os interessados a desmultiplicarem-se por uma programação riquíssima e desafiadora, é um olhar lúcido, resoluto, não sobre "o mundo", mas sobre "os mundos" (tantos quantos podem caber dentro do planeta em que vivemos) e sobre os desafios à sua sobrevivência. O Doc abre hoje (Culturgest, 21h) com um olhar sobre um microcosmos - "Crazy Horse", de Frederick Wiseman, sobre os bastidores do célebre cabaré parisiense (em sala a 27 de Outubro) - e fecha a 29 (Culturgest, 21h), com um olhar sobre o tempo que passou na vida de um cineasta - "Photographic Memory", de Ross McElwee.
Entre ambos, o Doc 2011 promete ser um festival de apocalipses - palavra que significa, no seu sentido mais restrito, "revelação". O que descobrimos, no Doc 2011, são mundos que acabam, que começam, que acabam para que outros comecem.
O melhor exemplo desse fim que é também um princípio é o filme mais abertamente desafiador de gavetas da competição internacional - e que, ainda por cima, é português: "É na Terra, Não é na Lua", de Gonçalo Tocha (Culturgest, dias 25, 21h, e 29, 14h45), "diário de bordo" de quatro anos de longas estadas na ilha açoriana do Corvo compactadas em três horas. Na encruzilhada do diário pessoal, do documentário de autor e do registo etnográfico, é um filme sobre a liberdade que se pode encontrar numa comunidade de 300 pessoas no meio do Atlântico; e também sobre um local em constante equilíbrio entre as tradições que se perdem e os recém-chegados atraídos pelos seus mistérios.
A ilha do Corvo de Gonçalo Tocha, entre passado que se dissolve e futuro difuso, tem muitos pontos de contacto com a aldeia belga de Doel ou a comunidade indígena argentina de Kolla Tinkamaku. Mas tem conseguido escapar ao destino da primeira, tal como mostrado no tocante filme do holandês Tom Fassaert, "An Angel in Doel": o camartelo em nome da expansão do porto de Antuérpia, a trasladação do cemitério, o lento desocupar de casas à qual só Emilienne Driesen, uma velhota casmurra, resiste (Culturgest, amanhã, 17h, e dia 24, 18h30).
E não está ainda em riscos de desaparecimento como o modo de vida do grupo indígena da província argentina de Salta registado pelo alemão Thomas Heise no magistral ensaio "Solar System": rodado em quatro aldeias, o filme celebra um ritmo ancestral e orgânico de vida, ameaçado por uma "civilização" urbana cada vez mais próxima (Culturgest, dias 22, 16h, e 23, 21h45).
Nem todos os fins de mundo são maus - como o provam a celebração da Primavera Árabe em Tahrir - "Liberation Square", do italiano Stefano Savona (São Jorge, dia 24, 22h), e "Plus Jamais Peur", do tunisino Mourad Ben Cheikh (Culturgest, dia 28, 21h30, e Londres, dia 30, 18h45). A nostalgia irá inevitavelmente colorir as memórias dos mundos antigos - como o olhar de Martin Scorsese sobre o "Beatle sossegado" George Harrison em "Living in the Material World" (São Jorge, dias 22 e 23 às 22h, em DVD em Novembro) ou o comunismo irredutível de Armando Cunha em "A Nossa Forma de Vida", de Pedro Filipe Marques (Culturgest, dias 22, 17h, e 25, 18h30), espantoso olhar para um Portugal íntimo e caseiro quase parado no tempo que é o ponto alto da competição nacional de longas.
Mas alguns fins de mundo são dolorosos e espelham os momentos que vivemos actualmente. É o caso do desequilibrado "Wadan"s World", onde o alemão Dieter Schumann acompanha, ao longo de dois anos, um estaleiro da região de Hamburgo apanhado no turbilhão da crise económica (Culturgest, dias 22, 21h30, e 26, 16h). É o caso do perturbante e controverso "Vol Spécial", do suíço Fernand Melgar (Culturgest, dias 22, 19h30, e 27, 21h), que se concentra nos custos humanos das políticas europeias para com os imigrantes clandestinos, ou de "Les Éclats", de Sylvain George, "distilação" do olhar sobre a expulsão pelas autoridades francesas dos imigrantes romenos que o realizador tem acompanhado(Londres, dias 21, 18h45, e 23, 21h45). As perguntas que estes filmes levantam: como testemunhar aquilo que não pode ser registado? Como filmar aquilo que não pode ser filmado?
É isso que "Barzakh" do lituano Mantas Kvedaravicius (Culturgest, dias 23, 16h00, e 24, 17h00), sobre os "desaparecidos" durante a guerrra civil na Tchetchénia, ou os outros todos que vão preencher as salas da Culturgest e dos cinemas Londres e São Jorge até dia 30, perguntam. Como podemos falar do mundo para que o mundo ouça?